MDB é o
partido brasileiro com mais políticos que seriam descendentes de escravagistas
O
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) é o partido que reúne o maior número de
políticos que teriam antepassados escravizadores. É o que revela a investigação
inédita da Agência Pública sobre as genealogias de políticos e autoridades
brasileiras.
A
partir da consulta e análise de centenas de documentos foi possível constatar
ancestrais que teriam sido escravistas nas genealogias de pelo menos seis
políticos do MDB. Nesse ranking, o segundo partido é o PL, com cinco nomes. O
PP e o PT têm quatro cada um. União Brasil, Podemos, PSB e PSDB, três. A
investigação encontrou um político com antepassados que teriam escravizado
pessoas nos partidos Novo, Republicanos e PRD.
Dois
dos emedebistas que teriam antepassados escravistas são os ex-presidentes
Itamar Franco e José Sarney. Outros dois são pai e filho: o senador Jader
Barbalho e o governador do Pará, Helder Barbalho. Os demais políticos são os
senadores Fernando Dueire e Veneziano Vital do Rêgo.
• Políticos de berço
O
economista pernambucano Fernando Antônio Caminha Dueire, 65 anos, iniciou em
novembro de 2022 seu primeiro mandato no Senado Federal. Integrante da bancada
ruralista, ele era o primeiro suplente na chapa de Jarbas Vasconcelos, um dos
fundadores do MDB nos anos 1960. Vasconcelos exerceu numerosos cargos políticos
– incluindo o de governador de Pernambuco e senador. Foi reeleito para o Senado
em 2018, mas licenciou-se do mandato por questões médicas.
Dueire
é filho de Maria Carmelita Monteiro e Pedro Dueire do Nascimento. Carmelita foi
presidenta do Banco da Providência, braço filantrópico da Igreja Católica,
durante o bispado de dom Hélder Câmara, de quem era amiga. Pedro, seu esposo,
foi comerciante e deputado estadual por Pernambuco. Mas, muito antes dos pais
do senador, a família já contava com uma longa tradição no exercício do poder
político, econômico e militar.
Nascido
em 1751, o trisavô de Carmelita, João de Castro e Silva, foi um dos homens
fortes de Portugal na região do Ceará: era capitão-mor, responsável, portanto,
pela defesa da colônia ultramar. Também seu pai, o português José de Castro e
Silva, exerceu a função de capitão-mor, e, segundo a Revista do Instituto do
Ceará, editada desde 1887, “territorialmente ampla e temporariamente longa foi
a influência econômica de sua descendência”.
José
de Castro e Silva é o sexto avô do senador Fernando Dueire que teria tido
escravizados durante o período colonial. O documento que atesta é o Livro de
Batismos de Aracati (CE), de 1797. Consta nele a ata de batismo de Francisca,
“parda, filha legítima de Bento, escravo do capitão-mor José de Castro, e de
Gertrudes da Conceição, índia”. Pela alta posição que ocupava na administração
colonial, é possível que José de Castro tenha escravizado mais pessoas – o
registro de Bento, porém, foi o único ao qual a Pública teve acesso.
• “17 escravizados”
Hoje,
aos 54 anos, o emedebista Veneziano Vital do Rêgo Segundo Neto está na política
desde os 27, quando se elegeu vereador de Campina Grande (PB). Sua carreira só
fez ascender: aos 35 venceu a disputa pela prefeitura da cidade. Dez anos e
dois mandatos de prefeito depois, sagrou-se deputado federal, e na eleição
seguinte, em 2018, alcançou o Senado – do qual se tornou vice-presidente em
2021.
O
senador descende de uma família de políticos e de alguns dos senhores de
engenho mais ricos da Paraíba, como o major Antônio Bento Duarte, nascido em
1851, e o coronel Francisco Duarte, que nasceu em 1842. Os tataravós de
Veneziano foram o coronel Santos da Costa Gondim e Maria Franca Torres. O
coronel nasceu em 1815 e morreu em 1894, pouco depois da abolição da
escravidão, e Maria nasceu em 1826, falecendo em 1871.
A
informação de que o coronel teria tido escravos consta no testamento de Maria.
Aos seus seis filhos, ela legou “17 escravos, casas de sobrado, casa de taipa,
safra de canas, propriedade de terras”, patrimônio que fazia da família “uma
das maiores riquezas da cidade de Areia-PB”, como analisou a historiadora
Eleonora Félix da Silva em sua dissertação de mestrado, “Escravidão e
resistência escrava na ‘Cidade d’Areia’ oitocentista”, defendida em 2010 na
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
A
família rica tem uma grande tradição política. Vital do Rêgo Filho, irmão do
senador, chegou ao Senado, sendo indicado ministro do Tribunal de Contas da
União (TCU) por Dilma Rousseff (PT) em 2014, cargo que ocupa até hoje. A mãe
dos dois, a também emedebista Ozanilda Gondim Vital do Rêgo, foi colega do
filho no Senado até o ano passado. Nilda, como é conhecida, era a primeira
suplente do senador José Maranhão (MDB) e assumiu a vaga após a morte dele. Já
o pai de Veneziano, Antônio Vital do Rêgo, foi deputado estadual e federal,
tendo passagem por oito partidos, entre eles a Arena, que dava sustentação à
ditadura militar, e também pelo MDB, que lhe fazia oposição.
Os
avós paternos e maternos do senador também foram políticos. O pai de seu pai,
conhecido como major Veneziano, nascido em 1907, presidiu a Assembleia
Legislativa de Pernambuco entre 1950 e 1958, enquanto o pai de sua mãe, Pedro
Moreno Gondim, governou por dois mandatos a Paraíba, de 1958 a 1966.
A
reportagem procurou os políticos citados e seus representantes para esclarecer
os achados sobre suas árvores genealógicas e a relação dos seus antepassados
com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no
Projeto Escravizadores. Não recebemos respostas até a publicação.
• Do protagonismo ao
governismo
A
ditadura militar, instaurada com o golpe de 1964, pôs fim ao pluripartidarismo.
Surgiram, então, a Arena e o MDB. No início, o MDB era como uma frente ampla.
Havia egressos do Partido Comunista Brasileiro, do Partido Trabalhista
Brasileiro de João Goulart, presidente deposto pelos militares, centristas do
extinto Partido Social Democrático (PSD), como Tancredo Neves, e quadros à
direita, saídos da União Democrática Nacional (UDN), que apoiou o golpe.
Embora
tenha surgido como a oposição tolerada pela própria ditadura, o MDB alcançou
uma popularidade não prevista pelos militares e foi, ao lado do movimento
sindicalista, de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de
setores progressistas da Igreja Católica, um dos protagonistas na restauração
da democracia no Brasil.
Nos
anos 80, durante a redemocratização, as disputas internas do MDB começaram a
ficar evidentes. De um lado, estavam os chamados “autênticos”, políticos de
ideologia definida, à centro-esquerda, e que participaram da fundação do
movimento, como Ulysses Guimarães e Roberto Requião; do outro, os “moderados”,
muitos ligados a grandes produtores rurais e que pregavam uma atuação
pragmática da legenda, contando inclusive com ex-quadros da Arena – José
Sarney, por exemplo, assim como o pai e o avô materno do senador Veneziano
Vital do Rêgo.
Com
o retorno do pluripartidarismo em 1979, os políticos à esquerda do MDB
refundaram o PCB, o PCdoB e o PSB, migrando para estes partidos. Seis anos
depois, em 1985, morreu Tancredo, eleito indiretamente para a Presidência da
República, e o MDB, de oposição, tornou-se situação pela primeira vez. Os
“autênticos”, porém, negaram apoio a Sarney, enquanto os “moderados”
participaram do seu governo.
Para
Rodrigo Patto Sá Motta, 58 anos, professor titular de História na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), a chegada do MDB ao poder foi determinante para
que o partido assumisse a face que tem hoje, “mais comprometido com as elites
econômicas do que com um programa de centro-esquerda”. “Enquanto era oposição à
ditadura, o partido não tinha acesso a recursos e cargos, e portanto, salvo
raras exceções, não atraía políticos de perfil oportunista. Depois da
redemocratização, o MDB cresceu muito, elegendo grandes bancadas, governadores
e prefeitos, o que favoreceu a entrada de personagens à direita no partido”,
explica.
Além
disso, desde a origem do MDB o que unia suas diferentes correntes era a luta
contra a ditadura e pela democracia. Com o fim do regime, essa bandeira perdeu
parte do sentido. “Isso contribuiu para a saída de pessoas de esquerda e
centro-esquerda, atraindo, por outro lado, ex-arenistas e políticos mais
jovens, sem um compromisso ideológico fixo”, completa o professor.
Por
discordâncias com a chegada de novos quadros, emedebistas históricos, como
Fernando Henrique Cardoso, abriram uma dissidência no partido, fundando, em
1988, o PSDB. No ano seguinte, na primeira eleição presidencial após o fim da
ditadura, os “autênticos” prevaleceram, lançando a candidatura de Ulysses
Guimarães. O resultado do pleito foi desanimador para os “autênticos”: com 4%
dos votos, Ulysses amargou um sétimo lugar na disputa. Os “moderados”, então,
ganharam espaço na direção do MDB, e muitos seguem dando as cartas no partido
ainda hoje, como Renan Calheiros, Michel Temer e Jader Barbalho. Como resultado
da predominância desse grupo, de 1990 até a atualidade, o único presidente que
não contou com o apoio formal ou informal do MDB foi Fernando Collor.
• Proprietária que
reivindica terras em Jericoacoara é sobrinha de governadores da ditadura
Quem
é a família que reivindica 80% da Vila de Jericoacoara, um dos principais
destinos turísticos do Brasil? Na última quarta-feira (7), De Olho nos
Ruralistas publicou uma reportagem em vídeo mostrando as conexões — até então
ignoradas — entre Iracema Correia São Tiago, reclamante de três fazendas
sobrepostas ao Parque Nacional de Jericoacoara, e o banco cearense Bancesa,
liquidado em 1995 após uma série de fraudes contra a União.
A
instituição pertencia à família de José Maria de Morais Machado, ex-marido de
Iracema, e deixou uma dívida em tributos e contribuições previdenciárias de R$
134 milhões — equivalentes hoje a R$ 1,4 bilhão. Os dois se divorciaram no
mesmo ano da liquidação pelo Banco Central, conforme aponta a matrícula de um
dos imóveis. A Fazenda Junco I foi transferida para o nome de Iracema na mesma
semana em que a Justiça confirmou a falência do Bancesa, em agosto de 2003:
“Clã que se diz dono de Jericoacoara foi condenado por fraude milionária em
banco cearense“.
Embora
o patrimônio da família venha, em grande parte, do clã Machado, a proprietária
que reivindica as terras de Jericoacoara possui conexões importantes no
universo político.
A
tia materna de Iracema São Tiago, Luísa Correia Távora, era esposa de Virgílio
Távora, que governou o Ceará por dois mandatos. De 1963 a 1966, quando apoiou o
golpe militar e ajudou a fundar o Arena, partido de sustentação da ditadura.
Ele teve uma segunda passagem pelo Palácio da Abolição de 1979 a 1982, bem na
época em que o clã Machado chegou a Jeri. Virgílio foi ainda senador, ficando
no cargo até sua morte, em 1988.
Segundo
reportagem assinada por Carlos Madeiro, do UOL, o clã chegou à região em 1979
sob incentivo do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF),
órgão criado pela ditadura. O projeto envolvia a instalação de monoculturas de
coco e caju na região, então pertencente ao município de Acaraú. Segundo as
matrículas fundiárias, a compra das fazendas foi efetivada em 1983.
TIOS
ARENISTAS, SOBRINHA EXILADA
Outros
dois tios de Iracema foram políticos durante a ditadura. Flávio Portela
Marcílio comandou o Ceará nos anos 1950 e foi o presidente da Câmara dos
Deputados que passou mais tempo no cargo. Somando as três passagens, ele ocupou
a cadeira durante seis anos: de 1972 a 1975, no governo Médici; e nos biênios
1979-1981 e 1983-1985, ambos sob João Figueiredo.
Alberto
Tavares Silva teve duas passagens pelo governo do Piauí: a primeira de 1971 a
1975, e a segunda de 1987 a 1991. Ele presidiu a Empresa Brasileira de
Transportes Urbanos (EBTU) durante o governo Geisel, entre 1976 e 1978. Com a
redemocratização, ocupou assentos no Senado e na Câmara até 2009, quando
faleceu. Tanto Marcílio quanto Alberto Tavares pertenceram ao Arena de sua
fundação até 1979.
Os
dados sobre o histórico familiar de Iracema vêm da biografia política de sua
irmã, a deputada constituinte Moema Correia São Tiago. Exilada pelo regime
militar, ela foi líder estudantil e participou da Ação Libertadora Nacional, de
Carlos Marighella. Passou por Chile, Cuba, Argentina e Portugal.
Moema
retornou ao Brasil em 1979, com a reabertura, e ajudou a fundar o PDT, pelo
qual concorreu à prefeitura de Fortaleza em 1985. No ano seguinte, foi eleita
deputada constituinte — sendo a primeira mulher a representar o Ceará no
parlamento — e assumiu o posto de vice-líder do partido na Câmara. Após romper
com Leonel Brizola, tornou-se uma das fundadoras do PSDB. Em 2018, tentou se
eleger deputada federal, sem sucesso.
Fonte:
Por Leandro Aguiar, da Agência Pública/De Olho nos Ruralistas
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