Paolo
Benanti: A democracia à prova do poder dos computadores
"Como
viveremos e o que faremos desta década de 2030 será o que deixaremos em herança
às gerações futuras após a queda da Babel digital", escreve Paolo Benanti,
frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia
Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a
Vida, Em português, é autor de “Oráculos: Entre ética e governança dos
algoritmos”.
O
que fazer após o fim do sonho da Internet? Essa é a pergunta que serve de
subtítulo e ponto de partida para o novo ensaio do Frei Paolo Benanti, Il
crollo di Babele. Che
fare dopo la fine del sogno di Internet? (A queda de Babel. O que fazer depois do fim do sonho da Internet)em tradução
livre, San Paolo, páginas 318, 22,00 euros) nas livrarias a partir de hoje, do
qual antecipamos um trecho das conclusões.
Entre
Elon Musk, psicopolítica e poder digital, o autor - teólogo franciscano, um dos
maiores especialistas em ética das tecnologias e presidente da Comissão IA para
a Informação - descreve a queda do sonho da Internet e o advento de uma nova
época liderada pela Inteligência Artificial. Com base no conto bíblico de
Babel, Benanti reconstrói como, na primeira década do novo milênio, a sociedade
construiu com a Internet e os smartphones uma torre global, culminando nas
Primaveras Árabes de 2011, quando se convenceu de que os meios digitais
poderiam unir e libertar povos e democracias. Na segunda década, com o advento
das grandes plataformas e com sua necessidade radical de monetizar os dados dos
usuários, o mundo testemunhou a queda da torre: inquietações, fake news,
exaltação do eu e das contraposições que agora desafiam o debate democrático e
a manutenção da paz que culminaram com os tumultos no Capitólio em 2021. A
pergunta crucial reaparece, no fim: o que aguarda o homem após a queda de
Babel?
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Eis o artigo.
Se
a primeira década do século terminou com as chamadas Primaveras Árabes, a
segunda teve como evento simbólico as chamadas revoltas do Capitólio: em 6 de
janeiro de 2021, se verificou um dos eventos mais dramáticos e controversos da
história política recente dos EUA. [...]
A
sequência de eventos mostra uma interpenetração total dos mundos
físico-analógico e digital, com consequências do primeiro sobre o segundo, mas,
acima de tudo, revela ao mundo que o digital, longe de ser um puro contexto
virtual e sem consequências, é uma força que conseguiu moldar os eventos que
fizeram a história: cinco pessoas morreram durante o ataque, incluindo um
policial e quatro manifestantes, enquanto mais de cento e quarenta policiais
ficaram feridos e a invasão causou danos estimados em mais de um milhão e meio
de dólares ao Capitólio. Nos meses que se seguiram, o Departamento de Justiça
indiciou mais de mil e duzentas pessoas por crimes relacionados ao ataque, com
centenas de confissões de culpa e condenações. Trump foi acusado de incitação à
insurreição pela Câmara dos Deputados, mas foi posteriormente absolvido pelo
Senado. Em um Comitê Especial da Câmara para Investigar o Ataque de 6 de
janeiro, as investigações e as audiências concluíram que Trump foi o principal
responsável pelo ataque, recomendando acusações penais contra ele. O público
estadunidense reagiu de forma altamente polarizada e os debates on-line
continuaram por meses.
Esse
evento é visto como o símbolo desta segunda década do século porque as
plataformas digitais desempenharam um papel crucial nos acontecimentos. Redes
sociais como Facebook, Twitter e YouTube foram usadas para espalhar
desinformação sobre as eleições presidenciais: essa desinformação alimentou as
teorias de conspiração que levaram à invasão do Capitólio. Donald Trump usou
maciçamente as mídias sociais para se comunicar diretamente com seus
apoiadores, ignorando a intermediação das mídias tradicionais: essa estratégia
permitiu que Trump consolidasse uma base de apoiadores fieis e divulgasse
rapidamente sua mensagem, incluindo apelos para contestar os resultados
eleitorais. Por fim, as plataformas sociais foram usadas para organizar e
coordenar o ataque. Em sites como o “Gab” e o “Parler”, os partidários de Trump
compartilharam instruções sobre como evitar as forças policiais e sobre que
ferramentas usar para forçar as portas do Capitólio. Além disso, os posts em
tempo real nas mídias sociais documentaram e incitaram ainda mais a violência
durante o ataque. Se os eventos da Praça Tahir e as chamadas Primaveras Árabes
fizeram com que as plataformas sociais globais fossem vistas como instrumentos
de liberdade e democracia, os eventos de 6 de janeiro lançaram uma
definitivamente sombra sinistra sobre seu papel e atuação, embora após o ataque
as principais plataformas sociais tenham tomado medidas para conter a
desinformação e o incitamento à violência.
O
bloqueio das contas de Trump em várias plataformas levantou debates sobre a
liberdade de expressão e a responsabilidade das plataformas digitais: a
suspensão de Trump foi vista como uma medida necessária para prevenir mais
violências, mas também levantou questões éticas e jurídicas sobre a censura e a
regulamentação dos conteúdos on-line. A invasão do Capitólio demonstrou o poder
das plataformas digitais de mobilizar as massas e transformar a desinformação
on-line em ações reais e violentas. Esse evento evidenciou a necessidade de uma
regulamentação mais rigorosa e de uma maior responsabilidade por parte das
plataformas digitais, embora até o momento não se registrem tentativas
bem-sucedidas nesse sentido, e desponta uma forte dúvida sobre como tornar esse
poder computacional compatível e domesticado às instituições democráticas.
(...)
• Os desafios que nos
aguardam
Durante
a Segunda Guerra Mundial, os primeiros computadores foram desenvolvidos para
fins bélicos (...) No período imediatamente posterior à guerra, a partir da
década de 1950, a introdução dos transistores de silício possibilitou a criação
de computadores menores, mais rápidos e mais confiáveis, enquanto os circuitos
integrados, que surgiram na década de 1960, reduziram ainda mais os tamanhos e
os custos e aumentaram a funcionalidade dos computadores. Abriu-se, assim, uma
temporada em que a capacidade de cálculo se espalhou por toda a sociedade.
Naqueles anos, a distribuição do poder de cálculo estava confinada aos
mainframes.
Originalmente,
esse termo se referia aos grandes gabinetes, chamados mainframes, que continham
os processadores e as memórias dos primeiros computadores. Foi somente na
década seguinte, nos anos 1970, com o advento dos microprocessadores, que esse
poder de cálculo foi democratizado e difundido entre as pessoas.(...) No
entanto, foi o surgimento de uma nova corrente cultural que podemos definir, se
nos for permitido o trocadilho, de geração Bit, que produziu o profundo
mecanismo de descentralização das décadas seguintes. A revolução tecnológica
foi alimentada pela semente da contracultura californiana da década de 1960. O
centro dessa maneira de ver os computadores e a informática foi e é o Vale do
Silício, a área entre São Francisco e São José. Foram, acima de tudo, o ideal
comunitário dos “flower children”, sua natureza libertária, seu desejo de
ampliar os horizontes e seu desprezo pela autoridade centralizada que serviram
de base para as bases filosóficas e éticas da Internet e de toda a revolução
dos computadores pessoais.
A
Rede está agora se encaminhando para o crepúsculo daquela experiência. Ao lado
da vertente californiana, há outra corrente, mais fria e importante, que tem
sua identidade em uma forma diferente de desajuste e desconforto, aquela dos
nerds. Seu centro está em Seattle, onde fica a sede da Microsoft, fundada por
Bill Gates. A orientação que impulsionou Gates e os pertencentes a essa
vertente está centrada não tanto na contracultura, mas na convicção da
centralidade da tecnologia. Não apenas para o futuro de nossas sociedades e o
bem-estar das pessoas, mas também por sua capacidade de ser um veículo direto
de afirmação pessoal e de poder. A conclusão desse processo de democratização
ocorreu no final da primeira década deste século com o advento do smartphone.
No momento em que o poder computacional pessoal começou a habitar os nossos
bolsos, também começou a nos privar de uma certa autonomia: o smartphone
precisa de um substrato invisível e fundamental, a rede, que garante seu
funcionamento e que alimenta o poder computacional de bolso de que dispomos.
(...)
Hoje,
as nossas existências democráticas são existências computacionais. A democracia
que hoje se tornou computacional também explora o potencial das tecnologias
informáticas para tornar mais eficaz e inclusiva a participação dos cidadãos
nos processos de tomada de decisões públicas. (...) O advento da inteligência
artificial está novamente mudando o horizonte. Os serviços de inteligência
artificial tornam nebulosa a linha entre o poder computacional pessoal e o
poder centralizado na nuvem: quando usamos nossos telefones, dificilmente
sabemos o que é executado localmente e o que é executado na nuvem. Entretanto,
essa nova forma de centralização na nuvem também traz consigo uma centralização
do poder computacional pessoal associado à democracia. A questão a ser
enfrentada será, portanto, como tornar democrático o poder centralizado da
nuvem e da IA, evitando que a democracia computacional entre em colapso em uma
oligarquia da nuvem. [...]
Os
mestres da suspeita tiveram uma influência significativa no pensamento
pós-moderno, contribuindo para desestabilizar as bases da modernidade e abrindo
caminho para novas formas de crítica e interpretação. Os mestres da suspeita
forneceram ferramentas críticas fundamentais que permitiram aos pensadores
pós-modernos desafiar as estruturas consolidadas da modernidade, promovendo uma
visão de mundo caracterizada por pluralismo, relativismo e um questionamento
contínuo das verdades absolutas. Após esses turbulentos anos 20 de nosso
século, o cenário provavelmente mudou ainda mais. Da suspeita, passamos à
dúvida: não uma dúvida existencial, filosófica ou científica, porque essa
mutação não é resultado do pensamento racional e filosófico, mas da tecnologia
dos algoritmos, com a qual tecemos a sociedade nestes últimos anos. A dúvida
existencial tem como pressuposto a suspeita que desconstrói as certezas e a
isso acrescenta a subtração de qualquer base possível para a nossa
subjetividade: estamos em uma contemporaneidade que se define, dependendo dos
comentaristas, como época da pós-verdade, das fake news, das câmaras de eco,
das conspirações ou dos populismos.
O
tipo de sucessão que poderemos dar à modernidade dependerá principalmente de
como saberemos pensar esses acontecimentos e de como saberemos decidir como
realizar e defender uma democracia computacional, protegendo-a do poder
esmagador das plataformas. Como viveremos e o que faremos desta década de 2030
será o que deixaremos em herança às gerações futuras após a queda da Babel
digital.
Fonte:
IHU
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