Antonio
Stagliano: A espiritualidade cristã ente teologia e teiologia
A
pergunta feita pelo jovem niilista Hipólito ao Príncipe Mychkin - o
protagonista de O Idiota, de Dostoievski - é intrigante: “é verdade, Príncipe,
que certa vez você disse que o mundo será salvo pela beleza? [...] Que beleza
salvará o mundo?”. Na verdade, não existe beleza autêntica que não acerte as
contas com o sério drama da imensa dor do homem na história, do escândalo do
sofrimento do inocente, do fato incontestável de que o homem está condenado à
morte. A beleza pode resplendecer no mal, na desordem, na indiferença? Que
possibilidade o esplendor da beleza tem de ser percebido nas formas históricas
do negativo e do mal?
Toda
filosofia da beleza deve enfrentar esse questionamento perturbador que surge
das profundezas da ambiguidade radical da beleza, na condição trágica do homem.
A filosofia da beleza (mas também toda sabedoria humana, antiga e nova) deverá,
sem negligência, deixar-se interpelar pela sabedoria da resposta dada pela fé
cristã à pergunta de Hipólito - “que beleza?”: “a beleza do ressuscitado não é
a beleza sedutora, mas não madura da inocência inviolada, da virgindade
inocente. Ela passou pela paixão da fidelidade e pelo fogo da prova” (P.A.
Sequeri). E a prova de uma solidariedade “a alto preço”. Passou pelas dores de
parto: aquelas do segundo nascimento, com a morte como parteira.
Jesus
de Nazaré, crucificado e ressuscitado, é a beleza que já salvou o mundo
inteiro, “de uma vez por todas”. Sem confessar isso, como se poderia continuar
sendo “cristãos”? Ele é o Verbum abbreviatum, o Todo no fragmento. Ele também é
a manifestação da Glória de Deus, na história paradoxal daquele que, para dar
testemunho da verdade, cumpre todo o “seu” bem e é crucificado por “seu” amor,
mostrando assim, desfigurado (sem decoro, nem beleza, como o Servo de JHWH de
Isaías), a beleza do Deus-ágape que o torna “o mais belo dos filhos do homem”.
Sem uma mediação cultural (= crítica) desse conhecimento, como se poderia
continuar sendo “teólogos” (católicos)?
Hipólito
deve entender que a beleza que salva tudo e todos (e também salva a beleza de
toda mistificação superficial) está precisamente no gesto de amor com que o
príncipe Mychkin o recebeu em sua casa: é a hospitalidade generosa (idiotamente
expressa, ou seja, na genuinidade humana que não pensa tanto em si mesma, mas
na dor dos outros) que manifesta o amor. “Esse” amor é a beleza que salva,
tornando-se como a ‘matriz’ de qualquer outro amor que possa conter em si a
salvação para os seres humanos. Por isso, Mychkin, o idiota, é uma figura de
Cristo que age levando o dom da vida até a morte, a fim de libertar, tirar da
miséria existencial e livrar do medo da morte. O príncipe é a figura enigmática
do Inocente que sofre por amor de todos (cf. R. Guardini). A hospitalidade
cristã é então o “onde” Deus sempre ressuscita, na caridade que se faz carne.
“O
que realizamos na vida ecoa na eternidade”, é uma bela frase que o comandante,
no filme - Gladiador -, grita solenemente a seus soldados, prontos para entrar
em batalha e talvez perder a vida. Sem problema! Eles se encontrarão felizes
caminhando nos Campos Elíseos. Quase como os vikings que desejavam morrer em
batalha para chegar ao Valhalla. No entanto, nós sabemos que a guerra é
desumana, porque destrói e mata seres humanos. E também porque é
“contranatural”: “agir com violência é contrário à natureza da alma e de Deus”,
disse Bento XVI na tragicamente famosa palestra de Regensburg. Os seres humanos
- criados à imagem e semelhança de Deus - são “imbuídos de amor”, as
informações originais que constituem o homem e o determinam são “pacíficas”,
“solidárias”, “fraternas”.
As
cordas esticadas no corpo dos seres humanos pelo criador são cordas de simpatia
e, no entanto, eles se odeiam, guerreiam e se transformam em mercadoria. Foi o
latino Horácio quem estabeleceu: video meliora proboque, deterioria sequor
(vejo as coisas boas e as aprovo, sigo as piores). Há uma fenda aviltante, uma
rachadura mortificante, um fundo de dor, de conflito que obscurece a luz, quase
um “nada que engole as coisas” ou um buraco negro que devora tudo que se
aproxima. E, no entanto, como Leonardo Cohen argumenta em seu Hino: “Há uma
rachadura em tudo, e é por ali que entra a luz”.
A
resiliência humana - capaz de ativar o poder empático daquelas cordas de
simpatias com as quais o homem toca as melodias “divinas” da amizade, dos
afetos, da fraternidade e da solidariedade - não será bem-sucedida apenas
porque o homem amadurece na “conscientização”, na consciência de conseguir dar
conta, cresce “na sabedoria”, “no conhecimento”: não se pode ser tanto
“pelagianos”, paradoxalmente, quanto “gnósticos” depois de dois mil anos de
cristianismo. Portanto, Gaudete et exsultate adverte contra os dois perigos,
até mesmo chamados de “inimigos” da santidade: primeiro o gnosticismo e depois
o pelagianismo. A espiritualidade cristã é a raiz última de toda ação
caritativa: ela não se define em termos de um emocionalismo inconcludente ou de
uma busca subjetiva de interioridade e de profundidade do humano. Muito pelo
contrário, a espiritualidade cristã é a “vida segundo o Espírito”.
O
saber da fé cristã - aquele da Revelação de Deus em Cristo, o eterno Filho de
Deus em carne humana, a eterna sabedoria do Pai que age no amor do
Ressuscitado, enviando, junto com o Filho, o Espírito Santo (Filioque) para
redimir todos os seres humanos do mal (“livrai-nos do mal”, como rezamos) -
fala da existência humana como luta e agonia e fala de um necessário “auxílio
da graça” para que o cristão vença suas batalhas contra o egoísmo, a soberba da
vida, a avareza e o apego ao dinheiro (“a cobiça das coisas”, que é a raiz de
todos os males, como diz Jesus, e a razão de todas as guerras, como Emanuele
Severino afirma ao reelaborar o ditado heraclitiano - “a guerra é a origem de
todas as coisas” - em “as coisas são a origem de todas as guerras”).
Ora,
a “graça” não é uma espécie de modelo externo ao qual se referir (como
afirmavam os pelagianos) ou uma admoestação autoritária, quase um conselho
externo para ajudar o homem em sua luta contra o pecado (pessoal e estrutural).
O poder de identificação - de empatia, no sentido fenomenológico de Edith Stein
- inscrito nas fibras mais profundas dos seres humanos, é reativado com a ajuda
da “graça incriada”, o Espírito Santo, “amor derramado” no coração humano,
segundo São Paulo, que age na essência da alma humana e a converte à caridade.
É essa existência no Espírito que é o fundamento da espiritualidade cristã, que
vive, agora e aqui (hic et nunc) da fé operante na caridade, porque corresponde
livremente (isto é, responde em liberdade) à caridade que grita de dentro do
coração, para que “se alarguem os espaços do amor” (=dilatentur spatia
caritatis, Santo Agostinho).
Não
é por outra razão que, na Igreja Católica, os santos são canonizados: eles são
a “prova provada” de que a graça de Cristo está à obra, de que Deus não é uma
vaga ideia de infinito que envolve tudo em expansão, mas é um Pai que fala e
age, que entra na história dos seres humanos, nos eventos históricos. A vida do
santo testemunha isso para qualquer pessoa que tenha olhos para olhar sem
preconceitos. É esse “positivismo teológico” (J. Ratzinger) que faz a diferença
entre a espiritualidade cristã e qualquer outra espiritualidade.
Se
isso não é uma “falácia teológica” (e não é), por menos do que isso não
poderíamos nos chamar de “cristãos católicos”: seguir Cristo “na carne” supera
a possível deriva do intimismo e da alienação religiosa. João Paulo II, na Novo
millennio ineunte, havia afirmado peremptoriamente isso: “há que rejeitar a
tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se
coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação” (n. 52).
O
fato de ter inventado uma fé em si mesma, consistente e autônoma - como adesão
intelectual às doutrinas - sem as obras da caridade, fez com que o catolicismo
perdesse o “esplendor da graça cristã”, esvaziando-o de cristianismo e,
portanto, tornando-o espiritualmente não mais interessante. É esse “catolicismo
convencional” que é espiritualmente inadmissível, como o bilhete devolvido ao
remetente de Ivan Karamazov. A obra que ecoa pela eternidade e destina à
alegria do paraíso é a da misericórdia corporal (dar de comer a quem tem fome,
dar de beber a quem tem sede, vestir os nus...) investindo - como bons
samaritanos - toda a sensibilidade participante “naturalmente humana” na dor e
no sofrimento dos outros.
O
ato de caridade é interior e não extrínseco ao ato de fé. A fé católica é
testemunhal, caso contrário, seria “fé morta” (São Tiago). E, no entanto,
também é “verdade teológica” que “se pode dar todos os bens aos pobres ou até
mesmo entregar o corpo para ser queimado” sem ter a caridade. Parece até que se
possa fazer milagres, mas sem a caridade nada ecoa na eternidade, para o
Paraíso, palavra de Jesus. Isso também pertence ao conhecimento cristão da fé,
que a teologia como “ciência” deve saber mostrar em sua inteligência e sensatez
humana. Menos do que isso, como se poderia continuar sendo teólogos
(católicos)?
A
consciência crente acolhe o conhecimento da Revelação de Deus sobre o mundo, o
homem e Deus: com relação a esse conhecimento, a consciência não cria nada, mas
é receptiva, em toda liberdade. Trata-se de uma liberdade “ativa” da
consciência, porque ela se coloca no ato de conversão para acolher a Palavra de
Deus tal como ela é, “Palavra de Deus e não palavra de homens”. A fé é
dogmática, haure seu conhecimento do crer, porque a autocomunicação de Deus
ocorre dentro das “palavras e fatos” de homens. Portanto, o cristão católico
“sabe o que crê” e “crendo sabe”: há uma longa tradição filosófica à qual
podemos nos referir, até a Katholische Weltanschauung de R. Guardini (concepção
global católica da realidade). É claro que não se deve ceder à armadilha iluminista
que, forjando a própria razão como única fonte de conhecimento, relega a fé à
mitologia antiga, depois de ter julgado toda a sabedoria do mito como se fosse
uma fábula.
Portanto,
existem muitos teólogos por aí - que se autodenominam teólogos por possuírem
títulos de doutorado das universidades eclesiásticas católicas e não católicas
(basta pensar na Alemanha, onde a teologia está presente nas universidades
estatais) - que permaneceram (talvez até conscientemente) presos no metaverso
iluminista que opõe preconceituosamente “crer e saber”, separa violentamente
“fé e razão”, acreditando (como cientistas) ter o dever com a própria razão de
desconstruir e manipular ou até mesmo eliminar - como se fossem um legado do
passado antigo ou de uma linguagem tradicional obsoleta - os dogmas da fé: e
então, Jesus de Nazaré é ou não é “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado e não criado da mesma substância do Pai”? É Jesus de
Nazaré - o encarnado há dois mil anos no ventre de Maria (Theotokos) - “antes
de Abraão, antes de Adão, antes que o mundo existisse”? E como a afirmação de
Pedro sobre a singularidade da salvação em Cristo poderia ser uma “falácia teológica”
sem pular ao mesmo tempo a fé em Jesus, a Palavra do Pai, Deus com Deus?
A
fé cristã sabe muito bem que “Deus ninguém o viu e ninguém pode vê-lo, mas
Jesus de Nazaré, o Filho unigênito de Deus, veio para nos dar a explicação”. A
singularidade da exegese sobre Deus - a revelação da face de ágape, somente e
sempre amor, como mistério escondido nos séculos e agora “esclarecido” - é
feita com “palavras e gestos” intrinsecamente conectados. Portanto, não é
comparável a nenhuma sabedoria que a mente de um homem tenha podido conceber.
Como o Evangelho é a pessoa de Jesus, a revelação cristã não pode sofrer uma
interpretação intelectualista, como se fosse um ensinamento doutrinário de
sabedoria, semelhante à de Buda ou Gandhi. É o evento do impacto “corpo a
corpo” com o Logos de Deus, a Sabedoria do Pai.
Sem
pensar criticamente sobre isso, como se pode continuar sendo teólogos
(católicos)? E se, ao dizer isso - dado o contexto cultural de secularização e
de exculturação do catolicismo - alguém se sentir ofendido ou escandalizado,
então pode-se, com toda a humildade, “pedir desculpas ou perdão”, ou usar a
frase ritual Absit iniura verbis. O teólogo católico não pode ficar calado,
mesmo que o clima cultural seja adverso e hostil. Seu testemunho não negligente
do conhecimento da fé está em jogo, enquanto ele permanece aberto ao diálogo
com todos e está pronto para um confronto dialético com toda sabedoria, seja
filosófica ou científica, religiosa ou mitológica.
Esse
conhecimento - que é um sàpere sapido, gostoso e fecundo na vida, todo sabor -
não pode ser diluído ou reduzido, deitado como se estivesse no leito de
Procusto das instâncias legítimas da cultura (como fez Ário) ou de exigências
inquestionáveis da razão (como fizeram Abelardo ou Berengário) ou de uma
aculturação do especialista em teologia que considera - por exemplo, com F.
Nietzsche e outros - São Paulo responsável pela invenção do cristianismo, com
uma falsificação substancial da mensagem de Jesus, que depois, em vez disso,
extrapolada do contexto neotestamentário, se descobriria “papale papale” já nas
antigas sabedorias gregas e romanas, ou nas religiões orientais. Aqui está o
veredicto dos sofiólogos: o que Jesus teria dito de novo? Nada! Um teólogo
católico que não focaliza a “singularidade de Jesus Cristo” e a “diferença
cristã” (entendida também como differAnce, à la Derrida), como poderia
continuar sendo “teólogo”? E isso não é exclusivismo de forma alguma! Porque um
saudável “cristocentrismo teológico” dispõe a espiritualidade cristã a ser
capaz de discernir e examinar os “bens” e as “riquezas” ou tesouros do Logos em
todas as tradições religiosas e até mesmo nas teosóficas. O verdadeiro teólogo,
porém, que pratica uma “teologia teológica” (W. Kasper) “julga” tudo na
sabedoria de Cristo, o ágape que revela o verdadeiro rosto de Deus-amor, cuja
beleza brilha nas ações do homem, se é verdade que “a Glória de Deus é o homem
vivo” (Santo Irineu). O cristocentrismo, de fato, não é cristomonismo, e a teologia
conciliar deixou isso bem claro. A mensagem da fé é destinada aos seres
humanos, para que o humano do homem possa ser libertado e salvo. A
espiritualidade do crente “conhece” o potencial de renovação antropológica
própria da experiência de fé. A verdade liberta, a adesão ao Evangelho é
redenção dentro da história: a sequela Christi permite o renascimento do homem
em sua verdade e beleza últimas. Assim, o homem verdadeiro - ou seja, o homem
novo de São Paulo, portanto, o cristão - mostra a qualidade bela de ser humano,
verificando-a diante da morte, aceita em absoluta liberdade por amor: a têmpera
do homem é essa solidariedade participante à dor e ao sofrimento dos outros que
leva o dom da vida até morrer por amor.
Menos
do que isso , a teologia católica não serve à missão da Igreja, cuja
evangelização tem o objetivo de sempre. Aquele de recriar uma “mentalidade
cristã” em todos os âmbitos da vida, superando o drama contemporâneo da
separação entre Evangelho e vivência cotidiana, entre fé e cultura (cf.
Evangelii gaudium, que retoma diretamente a Evangelii nuntiandi). O pressuposto
subjacente é a convicção crente de que o conteúdo de verdade do cristianismo,
manifestado no testemunho do amor, é existencialmente capaz de promover e fazer
avançar a cultura da liberdade do homem, de cada homem, estimulando a sua
criatividade.
Menos
do que isso, o teólogo não serve como “teólogo” para a anunciação do Evangelho
e talvez continue a se chamar de “teólogo” como até mesmo Platão era chamado
por sua teoria sobre a Ideia do Bem, ou Aristóteles pelo Motor Imóvel, ou
também os físicos naturalistas (conhecidos como pré-socráticos) que investigam
o Arqué de todas as coisas. Hoje em dia, até mesmo um Cacciari que, como
filósofo, investiga o Princípio ou concebe o fundamento de sua “Metafísica
concreta” como “abertura abissal” poderia ser chamado de “teólogo”. Ainda mais
Cacciari que, de acordo com o Cardeal Martini, fala “como um Padre da Igreja” e
trabalha filosoficamente sobre a Encarnação como evento, melhor do que alguns
que se denominam teólogos. No entanto, se a fenomenologia de Hegel não parece
se encaixar no campo da teologia - dada a atual consciência epistemológica da
teologia católica - então nem mesmo os filósofos acima mencionados são
“teólogos”, no máximo são “teiólogos” (eu preferiria no lugar de “sofiólogos”),
investigadores do mistério, do Theiòn, do “divino”.
De
fato, a Teologia poderia, no futuro, desenvolver-se como uma disciplina “ponte”
para um diálogo interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar entre a
teologia e todos os outros conhecimentos críticos, como almejava a Carta
Apostólica do Papa Francisco de 1º de novembro de 2023 Ad Theologiam
promovendam: “A transdisciplinaridade enquanto colocação e fermentação de todos
os saberes dentro do espaço de Luz e Vida oferecido pela Sabedoria que dimana
da Revelação de Deus” (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, Proem, 4c).
Deriva
disso a árdua tarefa para a teologia de ser capaz de valer-se de novas
categorias elaboradas por outras formas de conhecimento, a fim de penetrar e
comunicar as verdades da fé e transmitir o ensinamento de Jesus nas linguagens
de hoje, com originalidade e consciência crítica” (AThP n. 5).
É
um serviço que a boa teologia deve oferecer à proclamação do Evangelho para que
todos possam experimentar a alegria de sua beleza que salvou o mundo.
Fonte:
IHU
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