Morcegos
infestam escolas indígenas no Xingu construídas para compensar Belo Monte
Pelo
menos duas escolas de aldeias indígenas no Médio Xingu, no Pará, estão tomadas
por infestações de morcegos que impedem a realização de aulas para cerca de 150
alunos.
Imagens
exclusivas obtidas pela Agência Pública mostram o piso de lajotas das
construções coberto por uma espessa camada de cor marrom. As paredes brancas
estão sujas de rastros de fezes. Em várias salas, o forro do teto cedeu,
tamanho o peso dos dejetos. Nos banheiros, insetos se aglomeram em cima da
sujeira. Em um vídeo gravado para a reportagem, é possível escutar o som dos
morcegos.
É
nesta situação insalubre que se encontram as escolas da aldeia Iriril,
localizada na Terra Indígena Cachoeira Seca, lar de quase 2.000 indígenas
Arara, e da aldeia Ita’Aka, na Terra Indígena Koatinemo, onde vivem cerca de
300 pessoas da etnia Assurini do Xingu. A maior parte dos dois territórios
indígenas está no município de Altamira.
Ambas
as escolas foram construídas pela empresa Norte Energia como parte das ações de
compensação pela Usina Belo Monte. A segunda maior hidrelétrica do Brasil afetou 13 Terras
Indígenas, barrou o fluxo do rio Xingu – impactando dezenas de espécies – e
expulsou ribeirinhos e beiradeiros de suas casas, empurrando-os para periferias
de centros urbanos, como o de Altamira.
Há
relatos de outros casos de infestação, porém eles não foram documentados. Como
todas as escolas da Norte Energia foram construídas da mesma forma, com o mesmo
forro, é possível que o problema se repita em mais lugares.
A situação vem à tona no momento em que a licença de operação de Belo Monte
completa três anos vencida. A autorização expirou em 24 de novembro de 2021,
mas como a empresa pediu a renovação dentro do prazo estipulado por lei, a
usina pode continuar operando até a manifestação definitiva do Ibama, que ainda
não se pronunciou sobre a renovação ou não da licença.
“O
odor é muito forte. A gente tem medo de causar doença. Dá muita dor de cabeça
nos nossos filhos”, relata Tyapompo Arara, da aldeia Iriri, onde a presença dos
animais já comprometeu a rede elétrica, deixando a escola no escuro.
A
preocupação com a saúde é justificada, já que morcegos podem transmitir doenças
infecciosas graves, como raiva e leptospirose.
“A
estrutura está cada vez mais sendo danificada. Isso nos deixa muito
preocupados. A gente vem passando essa informação para a Norte Energia, para os
órgãos e até agora não tomaram providências”, afirma Kwai Assurini, cacique da
aldeia Ita’Aka.
As
infestações começaram há cerca de quatro anos atrás. Mas, segundo os indígenas,
nenhuma medida foi tomada pela Norte Energia ou pela Secretaria Municipal de
Educação (Semed) de Altamira, apesar de terem conhecimento da situação pelo
menos desde o ano passado.
Em
uma reunião realizada nos dias 16 e 17 de novembro de 2023 entre os Arara da TI
Cachoeira Seca e representantes da Norte Energia, da Semed, do Conselho
Distrital de Saúde Indígena (Considi) e do Distrito Sanitário Especial Indígena
(DSEI), o primeiro item da pauta foi a infestação na escola.
As
lideranças indígenas relataram que o teto estava caindo por causa do peso da
grande quantidade de fezes dos morcegos e expressaram preocupação com a saúde
das crianças e eventual contaminação das merendas. Nas imagens obtidas pela
reportagem, é possível ver fezes até nas paredes da cozinha onde as refeições
eram preparadas.
“A
Norte Energia explica que foi criado um GT (Grupo de Trabalho) que reúne Semed,
TEEMX (Território Etnoeducacional do Médio Xingu), Funai (Fundação Nacional dos
Povos Indígenas), arquitetos, engenheiros da Norte Energia e da prefeitura para
vistoriar e realizar tratativas para o que deve ser reformado e ampliado na
infraestrutura das escolas do Médio Xingu. Explica que já foi realizada duas
vistorias [sic]”, aponta a ata da reunião, disponível publicamente no site da Rede Xingu+, uma
articulação da sociedade civil contrária ao barramento do rio Xingu.
Na
ocasião, a Semed disse que o grupo de trabalho melhoraria o processo das
construções, “uma vez que não será somente a empreendedora que vai decidir as
plantas”. Entre os encaminhamentos previstos, estava a possibilidade de fazer a
reforma em duas etapas, primeiro nas salas em piores condições, “evitando
prejudicar o ano letivo”.
Alguns
meses antes da reunião, em abril do ano passado, a coordenação da escola da
aldeia Iriri havia enviado um ofício à Semed, com fotos da escola, solicitando
uma reforma urgente. “Informo que o forro do banheiro e da cozinha caiu devido
a grande quantidade de fezes de morcego, e o odor insuportável [torna] inviável
a manipulação de alimentos no local”, diz o documento.
Desde
então, porém, nada foi feito. A inação pode ser explicada, em parte, pela falta
de clareza sobre a responsabilidade pelas estruturas escolares. Isso porque a
Semed ainda não recebeu formalmente as escolas construídas pela Norte Energia.
O recebimento é uma etapa formal que indica que o órgão público reconhece que a
estrutura e todos os itens combinados foram de fato entregues. Enquanto essa
etapa não é completada, empresa e Semed ficam numa espécie de jogo de empurra.
O
42º relatório de Monitoramento Socioambiental Independente da Belo Monte, feito
pela JPG Consultoria e Participações para o BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social), publicado em dezembro do ano passado, já afirmava que a Norte Energia precisava reformar “todas as
19 escolas já construídas e entregá-las definitivamente” às secretarias de
educação, obrigações que, conforme o relatório, “se arrastam desde o início do
licenciamento”.
O
documento não menciona as infestações de morcegos nas escolas, mas há citação
ao problema em Unidades Básicas de Saúde Indígenas (UBSI) também construídas
pela empresa como medidas compensatórias por causa da usina.
“Os
pontos de atenção para as reformas já foram identificados, sendo um dos
problemas a infestação por morcegos, que será tratada com a reforma nos
telhados”, afirma o relatório. Segundo a consultoria, a ideia da Norte Energia
era “realizar as obras de saúde e educação em conjunto, a fim de minimizar o
tempo de mobilização de mão de obra no interior das aldeias”.
Segundo
os Arara, a unidade de saúde da aldeia Iriri também foi infestada por morcegos.
Procurada
pela reportagem, a Norte Energia afirmou que, entre 2016 e 2020, 21 escolas e
31 UBSI foram “devidamente construídas e totalmente equipadas pela companhia” e
estão em uso, respectivamente, pelas Secretarias Municipais de Educação e pelo
Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). A empresa afirmou, ainda, que os
órgãos públicos não teriam promovido as “manutenções e as adequações
necessárias ao bom funcionamento e conservação das 52 estruturas”.
“Ciente
de suas responsabilidades no processo de licenciamento ambiental, a Norte
Energia esclarece que, como parte da política da empresa, para qualquer nova
ação relacionada a essas infraestruturas, construídas ou por construir, a
companhia necessita do recebimento oficial das edificações já implementadas”,
afirmou a empresa em nota (leia a íntegra ao final da reportagem).
Já
a Semed de Altamira não respondeu às perguntas da Agência Pública até
a publicação deste texto.
·
Igreja e galinheiro viraram escolas
Nas
aldeias Assurini e Arara, os indígenas se viram obrigados a parar de usar as
escolas feitas pela Norte Energia e mover as aulas de crianças e adolescentes
para outros espaços.
As
crianças da aldeia Ita’Aka estão estudando em um galinheiro. Já os alunos do
ensino médio estão sem aula por falta de um local adequado.
Finalizada
pela Norte Energia em 2017, a escola da aldeia foi usada por apenas dois anos,
segundo o cacique.
“Depois
disso, foi impossível realizar aula na escola, por conta dos morcegos”, contou.
Ao longo dos últimos quatro anos, os animais foram tomando todo o forro da
estrutura, enquanto os avisos dos indígenas sobre a situação eram ignorados.
“A
gente vem cobrando, por meio de reunião, por meio de ofício, pela nossa
associação. Mas não tivemos resposta deles de quando vão consertar”, disse Kwai
Assurini.
Na
aldeia Iriri, a Norte Energia terminou a construção em 2020, segundo os
indígenas. Há cerca de três anos, os morcegos começaram a invadir, conta o
cacique Mobu Odo Arara. Conforme a infestação se agravou, primeiro a comunidade
parou de usar os banheiros, o pátio, a cozinha, além de algumas salas de aula,
onde os morcegos se instalaram primeiro e que começaram a ficar cheios de
excrementos. O alojamento dos professores também ficou inviabilizado.
Ao
longo de 2023, a empresa fez duas vistorias no local, mas nada de uma reforma
começar, diz o cacique.
Em
novembro deste ano, os indígenas decidiram suspender totalmente o uso da
escola. Agora, os estudantes estão tendo aula em uma igreja evangélica na
comunidade.
“A
escola está numa igreja agora, eles também tinham um alojamento e cederam para
a gente fazer a merenda dentro do alojamento”, afirma Tyapompo Arara.
·
Condicionantes descumpridas
Construída
entre 2011 e 2015, Belo Monte só foi autorizada depois de a Norte Energia se
comprometer com uma série de medidas condicionantes para mitigar e compensar os
impactos socioambientais da usina – como implementar atividades produtivas,
providenciar saneamento básico urbano e reassentar milhares de famílias
removidas.
Até
hoje, no entanto, a empresa não cumpriu todas as condicionantes estabelecidas.
“É
um conjunto tão grande de problemas, que a gente tem dificuldade de fazer o
controle social do que de fato a Norte Energia faz ou não faz”, relata a
antropóloga Luisa Molina, analista sênior do Instituto Socioambiental (ISA).
“Belo Monte sempre foi um bicho de sete cabeças, mas agora vemos uma
extrapolação disso, o que torna ainda mais difícil acompanharmos [as
condicionantes].”
Em
junho de 2022, um parecer do Ibama já tinha apontado que, de 46 medidas
condicionantes, apenas 13 tinham sido totalmente cumpridas pela empresa até
então.
Entre
as medidas previstas está a construção de 34 escolas indígenas, definidas pelo
Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI), aprovado durante o
licenciamento ambiental da empresa e com ações previstas para 35 anos. Até
agora, 21 foram construídas.
“Algumas
estão sendo utilizadas, outras precisam ser reformadas”, diz outro relatório de
monitoramento da JPG Consultoria para o BNDES, de junho deste ano. O documento,
novamente, não menciona as infestações de morcegos nos prédios das aldeias da
Terras Indígenas Cachoeira Seca e Koatinemo.
Além
de escolas, bases operacionais e postos de saúde foram erguidos pela empresa
como compensação. Mas, segundo a consultoria, nenhuma das “mais de 80 obras de
grande porte já realizadas foi formalmente recebida pelas instituições”. Para
concluir esses programas, aponta o relatório, “é necessário qualificar o
diálogo com instituições como Funai, DSEI e Semed”.
Outras
ações previstas também não foram realizadas, segundo os povos indígenas
afetados.
“Uma
das nossas condicionantes era fazer saneamento básico, fazer os banheiros com o
esgoto. Eles não fizeram, fizeram casas de alvenaria, mas sem banheiros”, diz
Kwai Assurini.
Como
no caso das escolas, os problemas se arrastam há anos. “Há inequívoca
existência de diversos passivos e insatisfações dos indígenas com relação à
execução do PBA-CI e da condicionante do Plano de Proteção Territorial
Indúgena”, informou a Defensoria Pública da União em uma recomendação já em
agosto de 2022.
Em
outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Direitos Humanos também se
manifestou e recomendou que o Ibama não renove a licença de operação “enquanto
não forem integralmente cumpridas as condicionantes”.
Em
setembro deste ano, manifestantes das etnias Arara, Assurini e Juruna
bloquearam a rodovia Transamazônica, em Vitória do Xingu, para protestar contra
a Norte Energia e pedir uma revisão do Plano Básico Ambiental.
Nesta
terça-feira (26), cerca de 70 indígenas Kayapó ocuparam a sede da Norte Energia
em Altamira. Segundo jornais locais, o protesto foi motivado pelo abandono dos projetos que
deveriam ser executados pela empresa.
·
O que diz a Norte Energia
A
reportagem fez várias perguntas específicas à Norte Energia, entre elas: quais
medidas a empresa já tinha tomado ou pretendia tomar em relação às infestações
de morcegos e por que, passado mais de um ano da realização de uma reunião com
os indígenas Arara, em que a empresa afirmou ter estabelecido um grupo de
trabalho para reformar as escolas, nada ainda foi feito.
Também
questionou se a empresa tem conhecimento de outras escolas nesta situação, além
das UBSI afetadas pelo problema. E, ainda, por que as outras 13 escolas
determinadas no licenciamento não foram construídas até agora. E, por fim,
quais ações concretas estão sendo tomadas para cumprir as condicionantes
indígenas, como demandam diversas etnias da região.
A
empresa respondeu por meio de uma única nota, disponível na íntegra abaixo:
“A
Norte Energia, concessionária da Usina Hidrelétrica Belo Monte, assumiu as
construções de 34 escolas indígenas e de 34 Unidades Básicas de Saúde Indígenas
(UBSI) como parte das obrigações do licenciamento ambiental. Desse total, entre
2016 e 2020, 21 escolas e 31 UBSI foram devidamente construídas e totalmente
equipadas pela companhia.
Desde
então, as 21 unidades de ensino, cujos projetos e edificações seguiram o padrão
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), vinculado ao
Ministério da Educação (MEC), estão em uso pelas Secretarias Municipais de
Educação. Da mesma forma, as 31 UBSI, construídas de acordo com o projeto do
Ministério da Saúde, encontram-se em funcionamento pelo Distrito Sanitário
Especial Indígena (DSEI).
As
unidades foram implantadas dentro das conformidades técnicas, o que permitiu
que fossem utilizadas ao longo de todos esses anos, contudo, apenas cinco
escolas foram oficialmente recebidas pelo órgão competente. Embora em uso pelas
instituições, essas não promoveram as manutenções e as adequações necessárias
ao bom funcionamento e conservação das 52 estruturas.
A
mesma conjuntura se repete em relação aos Sistemas de Abastecimento de Água
(SAA), incluindo aqueles construídos na TI Koatinemo, do povo Assurini.
Assim,
ciente de suas responsabilidades no processo de licenciamento ambiental, a
Norte Energia esclarece que, como parte da política da empresa, para qualquer
nova ação relacionada a essas infraestruturas, construídas ou por construir, a
Companhia necessita do recebimento oficial das edificações já implementadas.
Cabe
lembrar que desde 2011, início da construção de Belo Monte, a Norte Energia já
destinou R$ 1,2 bilhão de investimentos para comunidades indígenas, com
destaque em educação, saúde, preservação do patrimônio cultural, atividades
produtivas e proteção territorial.
A
empresa também estruturou e mantém desde 2015 o Centro de Monitoramento Remoto
da Funai, que vigia 98% das Terras Indígenas do país, onde vivem 868 mil
indígenas. O sistema é usado para fiscalizar e ajudar a combater desmatamentos,
degradação, incêndios florestais e ocupação e uso criminosos em cerca de 600
TIs da Amazônia Legal.”
Fonte:
Por Isabel Seta, da Agência Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário