sábado, 30 de novembro de 2024

Plataformas: O viver e morrer sobre rodas

Uma nova realidade de trabalho vem tomando forma no Brasil: o serviço de entregas e transportes por aplicativos. Essas atividades econômicas têm sido porta de entrada para o processo de plataformização do trabalho (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021) por aqui. Além de associado ao rebaixamento da proteção trabalhista e previdenciária, o trabalho no molde como tem sido proposto por plataformas digitais de trabalho sob demanda traz à tona graves questões de saúde e segurança dos trabalhadores e trabalhadoras.

Com a contratação sem vínculo empregatício, a modalidade de trabalho por plataformas, desresponsabiliza as empresas pela oferta de condições mínimas de segurança e saúde no trabalho, como equipamentos e formação, assim como pela prevenção e indenização por adoecimentos e acidentes de trabalho. O resultado é um agravamento dos riscos à saúde associados ao trabalho (Christo et al, 2023), os quais intensificam ou se somam a antigos riscos, ampliando a possibilidade de sofrimento, adoecimentos, acidentes e mortes.

Chama-se a atenção para o comprometimento de recursos públicos no tratamento dos efeitos sociais da operação dessas empresas, impactando a previdência social e, especialmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) com a atenção a patologias e ao atendimento emergencial e de reabilitação de vítimas de acidentes (Abílio e Santiago, 2024).

Com o objetivo de contribuir para o debate social e a construção de políticas públicas de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, uma pesquisa qualitativa realizada em parceria entre a Fiocruz, a UFRJ e a UFF, desde 2019, traz evidências de mudanças significativas nas relações e condições de trabalho e no modo de controle operado por empresas-plataforma, com o uso de algoritmos.

•                        Características do trabalho e contexto da plataformização

Antes de falar dessas mudanças, é necessário conhecer as características que já estavam presentes nas configurações de trabalho dessas categorias profissionais anteriores à plataformização. Dentre elas, elevada carga física de trabalho; exposição a gases, poeira e intempéries, assim como a riscos de acidentes; relações de trabalho muitas vezes autoritárias por parte de empresas/restaurantes contratantes; e diversos tipos de violência, como o racismo e a discriminação de classe e de gênero.

É justamente reconhecendo o quadro de precariedade social no Brasil, assim como do alto grau de informalidade do mercado de trabalho e a precariedade dos contratos de trabalho que podemos compreender a grande adesão dos trabalhadores e trabalhadoras ao trabalho por plataformas digitais (Christo & Masson, 2023), as quais negam de pronto o acesso aos direitos trabalhistas, assim como à garantia de condições mínimas de trabalho, saúde e segurança.

Outro dado de contexto que contribui para o surgimento dessa modalidade de trabalho sem proteção trabalhista são as práticas e políticas neoliberais que endossam a flexibilização de direitos sociais e de relações contratuais de trabalho. Sustentadas em um ideário do trabalhador como empreendedor de si (Abílio, 2020) contribuem para a desmobilização de discussões acerca do bem comum, assim como para ampliar a fragmentação dos coletivos de trabalho e da organização dos trabalhadores. Dentre seus efeitos estão as práticas antissindicais, o estímulo à competição e dificuldade de identificação dos profissionais como parte da classe trabalhadora (Antunes, 2024).

•                        Individualização dos riscos e culpabilização dos trabalhadores

Dentre as características do modo de organização do trabalho por plataformas digitais, destaca-se a ampliação da exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a riscos ambientais e de acidentes, os quais não são devidamente computados como acidentes de trabalho. Com a informalidade do contrato, é negado também o acesso a medidas de prevenção e proteção à saúde e segurança no trabalho previstas em lei, como o fornecimento de equipamentos de proteção individual e coletiva, assim como a formação profissional. Isto porque, nem as empresas respeitam, nem o Estado fiscaliza o cumprimento das exigências de qualificação profissional e de proteção à saúde e segurança previstos em leis já existentes, como a lei do motofrete (12.009/2009) e a lei Habib’s (12.436/2011).

O Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre acidentes de motociclistas no Brasil entre 2011 e 2021 (BRASIL, 2023a) aponta que as lesões de trânsito são um importante problema de saúde pública global e foram responsáveis, em 2020, por mais de 190 mil internações em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus hospitais conveniados, sendo 61,6% destas de motociclistas. Dentre as pessoas envolvidas em lesões de trânsito, os motociclistas são também aqueles que apresentam as consequências mais graves. Chama a atenção ainda a correlação entre tais dados e o trabalho de entrega realizado cada vez mais massivamente para empresas-plataforma com o uso de motocicletas como equipamento de trabalho – o que faz com que diversos acidentes com motociclistas possam ser considerados acidentes de trabalho típicos (BRASIL, 2023a).

Chama a atenção o discurso comum que enfatiza a relação dos acidentes com fatores comportamentais dos motociclistas como irresponsabilidade, imprudência e desrespeito às leis de trânsito, endossando uma perspectiva individualizante e culpabilizante dos que se acidentam, “mesmo reconhecendo que os modos de condução desses trabalhadores estejam relacionados a prazos rígidos de entrega, sobrecarga de trabalho ou remuneração por produção” (Moraes e Athayde, 2014, p. 328).

Enquanto isso, empresas que controlam plataformas digitais não são responsabilizadas pelos acidentes e não arcam com os custos de afastamento do trabalho, de reparo dos instrumentos ou com qualquer responsabilidade relativa à indenização das pessoas envolvidas. Nesse sentido, não são instadas a mudar as regras que contribuem para determinar os acidentes, como as que definem os tempos para realizar as entregas; as rotas que desconsideram as regras de trânsito; assim como as punições financeiras e desligamentos por atraso (Liberato, 2021). A lógica de responsabilização individual é central para o modelo de negócios das plataformas digitais de trabalho.

•                        Insegurança e pressão psicológica constante

Uma característica marcante da plataformização do trabalho é o apagamento da atividade dos trabalhadores e trabalhadoras, isto é, a invisibilidade social de todos esforços e custos das gestões que têm que fazer cotidianamente frente aos imprevistos e variabilidades nas situações concretas de trabalho, os quais as plataformas (e muitos clientes) não querem tomar conhecimento, haja visto a dificuldade de acesso aos canais de comunicação com elas, não garantindo suporte para situações de dúvidas, emergências ou tratamento de acidentes ou incidentes no trabalho. Esse apagamento do que se enfrenta nas situações concretas contribui para o não reconhecimento da complexidade do trabalho realizado, o que interfere na atribuição de valor a ele.

Outro ponto a se considerar é a adoção de um sistema de remuneração que paga por somente o que as empresas consideram como tempo produtivo, deixando de remunerar todo o tempo e esforço gasto em atividades de busca, espera e preparação para o trabalho, como, por exemplo, a manutenção dos equipamentos usados. Além disso, ao nomear os trabalhadores e trabalhadoras como “parceiros”, as empresas negam a condição de subordinação jurídica dos trabalhadores a elas, contribuindo para a ampliação de diversas inseguranças no trabalho, especialmente em relação às incertezas sobre a remuneração e mesmo sobre a permanência nas plataformas e ao risco de sofrer acidentes e diversas violências.

Uma coisa que pesa muito, na minha opinião, com relação à saúde mental, é a gente não ter amparo para conserto do nosso veículo de transporte porque… Eu passo meu dia preocupada em pedalar em lugares que eu sei que minha bicicleta não vai furar o pneu, não vai me dar prejuízo, porque se o meu pneu furar, por exemplo, eu já perdi o dinheiro daquele dia, se o meu pneu furar. Então, é o dia inteiro de preocupação. Eu me preocupo com assédio o dia inteiro, me preocupo o dia inteiro se meu pneu vai furar, senão perdi meu dia de trabalho, basicamente, pra ter que comprar outro pneu (Bike-entregadora, em 1 set.2020).

A insegurança alimentar e nutricional também é um efeito da precarização do trabalho no setor de entregas e transporte urbano. Além de diretamente articulada à baixa remuneração e ao não fornecimento de alimentos ou vale-refeição/alimentação pelas plataformas digitais, ela também se relaciona com a falta de tempo e de espaço apropriado para a realização de pausas. As consequências mais ou menos imediatas e perceptíveis são principalmente problemas gastrointestinais, emagrecimento entre ciclistas e aumento de peso entre motoristas, além de problemas relacionados à baixa hidratação, como pedras nos rins.

A gente se alimenta muito mal, a gente come muitos lanches. E algo normal nos entregadores é a gastrite, porque não se alimenta direito, às vezes fica um período gigantesco. Eu mesmo cansei de ficar com fome o dia inteiro mesmo assim, tipo, é… ficar com tanta fome que a fome passava, né… Então… Outra situação que a gente vê é pedras nos rins. O cara não quer parar nem pra mijar, então ele bebe… desculpa, urinar [risos]. Então, ele, tipo, não para nem para usar o banheiro, aí ele evita beber água, então, pedra nos rins é algo comum (Motoboy, em 1 set.2020).

Outra insegurança que aparece com centralidade no cotidiano dos entregadores/as refere-se aos acidentes de trânsito. Elementos como a gestão algorítmica e gamificada e a necessidade de manusear o celular enquanto se locomovem em seus veículos contribuem para caracterizar as condições perigosas em que se dão as atividades. Muitas vezes a experiência dos acidentes é trazida quase como uma norma no trabalho de entrega, algo que todos ou passaram ou passarão algum dia. Ressalta-se a convivência permanente com o medo não só do trânsito agressivo, mas de se acidentar, de adoecer e, especialmente, de não poder mais trabalhar.

A gente já é uma profissão de risco, começa por aí. Nunca nada foi mil maravilhas, mas infelizmente a gente vê que a cada dia piora… Quando você tinha maus patrões que pagavam mal etc., você tinha um subemprego ou seja lá o que for, você tinha a Justiça do Trabalho, tinha um registro, uma seguridade social, querendo ou não, você tinha um acesso talvez um pouco menos difícil à saúde… E a partir do momento do advento da tecnologia e da vinda dos aplicativos, essa nova forma de renda, de relacionamento ou seja lá o que for, não tendo nenhum tipo de regramento, não tendo quem possa acolher, a gente acaba sofrendo tudo isso que a gente já disse, né? (Motoboy, 17 set.20)

Identificam-se ainda inseguranças e medos relacionados a diversas violências, como a violência urbana (assaltos e agressões), a violência policial, desconfiança e falta de respeito, assédios e discriminações (racismo, preconceito em relação à classe social e ao gênero) por parte de empresas, clientes e estabelecimentos.

Sim, eu ainda vou trabalhar sim, daqui a dez anos. Hoje eu estou com 33 anos. Eu espero que muitas coisas tenham mudado. A estrutura, a saúde, a segurança. O olhar das pessoas com as adversidades, com os gêneros. Que não tenha mais aquele preconceito, que é um conceito que as pessoas têm em relação a mulher trabalhar, a dirigir, entendeu? E que as mulheres não venham mais se sentir inseguras a transitar no trânsito à noite ou de dia, entendeu? Que não se sintam inferiores. Eu espero que, daqui a dez anos, tudo mude, e a minha situação também mude. Que não seja um trabalho como hoje, que eu necessito, mas, sim, que daqui a dez anos seja um trabalho extra. Mas sim… eu pretendo ainda trabalhar (Motorista mulher, em resposta à questão: “Como você acha que estará daqui a dez anos se continuar a trabalhar nas plataformas da mesma forma que faz hoje?”, feita em atividade da pesquisa em 17.mai.23).

Há ainda a insegurança quanto à permanência no trabalho, já que são comuns desligamentos e bloqueios feitos pelas plataformas de forma autocrática, sem justificativa ou possibilidade de defesa, deixando os trabalhadores e trabalhadoras sem acesso ao seu histórico de trabalho como referência para trabalhos futuros.

•                        Sofrimento e adoecimento físico e mental

A articulação entre a intensificação do trabalho, o medo de não ser bem avaliado e as dinâmicas subjetivas que degradam a autoimagem e a autoconfiança são associados pelos trabalhadores a uma fadiga crônica, um cansaço que se acumula ao longo do tempo. Fadiga que se expressa no corpo com problemas osteomusculares, relacionados a exigências posturais e intensificação do trabalho e à falta de tempo ou recursos para práticas de autocuidado, mas que é transpassada por sofrimento mental, manifestando-se em distúrbios de sono, irritabilidade, desânimo, dores diversas e alterações no apetite. Destacam-se a pressão de tempo para a realização das entregas; a falta de tempo para pausas, para o lazer, para estar com a família; assim como o sentimento de impotência e indignação com as injustiças, especialmente quando as empresas fazem bloqueios e desligamentos sem lhes dar direito à defesa ou quando vivenciam a violência do racismo e de outras formas de discriminação e de desrespeito.

A gamificação do trabalho (Woodcock & Johnson, 2018) tem aparecido como importante elemento do gerenciamento algorítmico para incentivar trabalhadores/as a cumprirem as metas do trabalho. Essas metas são apresentadas na forma de jogos, com níveis, provas e classificações, a partir das quais as plataformas tentam explorar o desejo dos trabalhadores e trabalhadoras de superação pessoal, assim como de reconhecimento social. Uma consequência recorrentemente relatada pelos trabalhadores e trabalhadoras é a vivência do que chamam uma “noia”, um vício, resultando em ansiedade, medo e mesmo euforia, associados à necessidade de controlar essas sensações, envolvendo autovigilância e autoexigência.

[…] não basta ter só um aplicativo, porque não está me sustentando naquele aplicativo, então eu faço dois. Aí, eu pego duas entregas de uma vez, as duas entregas é o caminho pra retirar, mas é o inverso pra entregar, e aí é onde eu tenho que ficar doido, onde eu pego uma pra mim correr pra um lado, e eu tenho que voltar que nem uma bala pro outro, pra poder… pra não ser bloqueado, porque o medo de todos é o bloqueio, entende? É tipo o justa causa, se fosse CLT. Só que é a justa causa que você não sabe nem o porquê que você foi bloqueado. Então, aí você sai igual uma bala pro outro lado, e você vira um míssil, aonde você pegar, você vai explodir, entendeu? Por causa da velocidade. Aí entra o estresse quando você é bloqueado, ou quando você tem um problema que não consegue resolver, te dá aquela sensação de impotência assim, que você fica assim, agoniado, que você quer descontar em alguma coisa, em alguém (Motoboy, em 1 set.2020).

Todavia, o sofrimento, além de um ponto de chegada, se revela também como um ponto de partida (Dejours, 2012) para a luta contra a exploração. E essa luta passa pelo reforçamento da identidade, na qual o outro, especialmente, os pares, o coletivo de trabalhadores, têm um papel fundamental. Observa-se, portanto, que nesse processo de precarização do trabalho não deixa de haver iniciativas de resistência e de mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras.

•                        Iniciativas de resistência e organização coletiva

Tentar encontrar saídas, brechas e respiros também é atividade constante de trabalhadores e trabalhadoras que atuam por plataformas digitais, algo que se dá inclusive na participação e na organização de uma luta política mais ampla voltada para o fortalecimento da profissionalização do trabalho e a conquista de direitos. Há uma diversidade de formas como o enfrentamento da precarização do trabalho é levado a cabo pelos trabalhadores e trabalhadoras. Diversidade presente tanto nas estratégias cotidianas para a realização das atividades, quanto na organização para a luta política e social por melhores condições de trabalho e de vida. Dentre as mais cotidianas, estão ações de cooperação, como a formação para o trabalho entre os próprios trabalhadores, com o compartilhamento de dicas e orientações de youtubers; criação de grupos para operar serviços fora das plataformas; “vaquinhas” em caso de acidentes e roubos. Dentre as mais amplas, envolvendo a luta coletiva pela garantia de condições de trabalho justas e o fortalecimento da profissionalização do trabalho, observam-se desde a formação de sindicatos, associações, cooperativas e federações, até a realização de movimentos de greve, exigindo das empresas e do Estado melhores condições de trabalho.

Um exemplo foi a mobilização denominada Breque dos Apps que, em julho de 2020, reivindicou melhores remunerações e medidas de saúde e de segurança do trabalho durante a pandemia de Covid-19, assim como o fim dos bloqueios e desligamentos injustificados. Para tal, buscou apoio da sociedade, sensibilizando consumidores a respeito de suas condições de vida e de trabalho. Outro exemplo foi a constituição, em dezembro de 2022, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA)1, que reivindicou e conseguiu assentos no grupo de trabalho tripartite (com representações de trabalhadores/as, empresas e governo federal) instituído em 2023, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, com a finalidade de elaborar uma “proposta de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas” (BRASIL, 2023b).

Ressaltamos que tais categorias vêm enfrentando grandes desafios, já esperados frente à configuração precária do emprego com a plataformização do trabalho e ao jogo de forças desequilibrado em que se situam frente ao capital. Mas também apresentando novos elementos, em um processo intenso de criação e aprendizado sobre a luta coletiva.

•                        Para finalizar…

As experiências de motoristas e entregadores evidenciam a necessidade de repensar a permeabilidade da sociedade e do poder público a uma configuração de trabalho que priva os trabalhadores de direitos e condições mínimas de garantia da saúde e da vida. Regular o trabalho por plataformas, garantir proteção e promover o reconhecimento social dessas categorias profissionais são medidas essenciais para que esses trabalhadores e trabalhadoras possam exercer seu trabalho com dignidade, segurança e saúde. Daí a importância da luta pela regulamentação dessas atividades profissionais, no sentido de frear a lógica de desresponsabilização das empresas pelos custos materiais e humanos de suas operações.

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Este texto é uma síntese de um capítulo das mesmas autoras, intitulado “Sobre viver no trabalho por plataformas digitais: saúde, sofrimento e luta de entregadores/as e motoristas”, do livro “Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado por plataforma digital”, organizado por Ricardo Toledo Neder e Flávio Chedid Henriques.

 

Fonte: Por Letícia Masson e Cirlene Christo, em Outras Palavras

 

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