Ferrogrão:
A Amazônia fora dos trilhos
Dez
anos depois de ser oficialmente apresentado, o maior projeto de infraestrutura
de transportes do governo federal, estimado em mais de R$ 25 bilhões, se vê
hoje convertido em uma gigantesca ferrovia de papel, à espera de um veredicto
sobre a sua viabilidade. Desde a primeira “manifestação de interesse” feita por
empresários, em 2014, a Ferrogrão ameaçou com idas e vindas, mas segue
estacionada no mesmo lugar, dentro dos escaninhos de Brasília.
Idealizada
ainda no primeiro governo Dilma Rousseff, a malha de 933 km, prevista para
ligar o berço nacional da soja, em Sinop, Mato Grosso, até as margens do rio
Tapajós, em Itaituba, no Pará, só serviu para produzir, até hoje, um comboio de
impasses ambientais e administrativos, questionamentos jurídicos, pilhas de
documentos, relatórios e teses sobre a abertura de uma nova ferrovia na
Amazônia. Durante a gestão Bolsonaro, foram várias as tentativas de viabilizar
a obra, sem sucesso. Até que chegou ao Supremo Tribunal Federal, em março de
2021, quando o ministro Alexandre de Moraes acatou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade sobre a obra e deu uma liminar que suspendia seu processo
de licenciamento. Da corte, nunca mais saiu.
Hoje,
o governo Lula 3 tenta, mais uma vez, colocar a ferrovia para rodar. Em outubro
do ano passado, o Ministério dos Transportes criou um grupo de trabalho para
discutir o projeto com organizações civis, lideranças indígenas e comunidades
impactadas pelo empreendimento. O objetivo era sentar-se à mesa para atualizar
os estudos, discutir os impactos e analisar a viabilidade socioambiental e
econômica da ferrovia. Reuniões chegaram a ocorrer nos meses seguintes, mas
representantes de organizações afirmaram que, na prática, não houve “discussão,
participação ou transparência” sobre o projeto.
Em
julho, por meio de uma carta enviada ao Ministério dos Transportes, o Instituto
Kabu, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor da ação enviada ao STF, e
a Rede Xingu+, membros da sociedade civil que integravam o grupo de trabalho,
anunciaram a saída do GT.
“O
que deveria ser um espaço de diálogo transversal e interministerial terminou
esvaziado, sem que a Casa Civil enviasse sequer um representante a uma única
reunião. O que deveria ser um espaço com participação da sociedade, dependeu da
mobilização logística das próprias organizações e movimentos para assegurar
suas presenças. E o que deveria ser um espaço de debates profundos terminou
sendo um ambiente secundarizado e sem ressonância nos processos de tomada de
decisão”, afirmaram as organizações.
Segundo
as ONGs e lideranças, a tramitação dos estudos apresentados não incluiu suas
participações e o governo programou o leilão da ferrovia para 2025,
“desrespeitando a urgente e obrigatória consulta livre, prévia e informada aos
povos e comunidades da região”.
O
governo federal tem outra versão sobre a história. Cloves Eduardo Benevides,
subsecretário de sustentabilidade da Secretaria-Executiva do Ministério dos
Transportes, disse ao ((o))eco que os estudos encaminhados ao STF contemplam
demandas apresentadas pelas organizações civis e lideranças, como a análise do
traçado e suas adaptações, o custo-benefício da obra, a sua indução ao
desmatamento e impactos de descarbonização, entre outros temas.
Benevides
afirma ainda que, para além das consultas já feitas nesta etapa preliminar,
todo o rito de apresentação formal e de consulta prévia às comunidades
impactadas pela obra está garantido, quando for autorizado o processo de
licenciamento ambiental prévio da ferrovia, que é realizado pelo Ibama.
“Ainda
estamos na etapa do estudo de viabilidade técnica e econômica, e não do
licenciamento ambiental. O que foi feito no grupo de trabalho é uma atualização
de demanda, de risco de desmatamento, comparação com outros modais, discussão
sobre descarbonização. Tudo isso nos trouxe para essa nova versão”, disse o
porta-voz do Ministério dos Transportes. “Compreendemos as manifestações
sociais, que são sempre legítimas e devem ser ouvidas. Fizemos isso. Esse é só
mais um passo na etapa de planejamento. É um traçado referencial, que pode até
passar por alterações com estudos mais profundos do projeto executivo. Nós
precisávamos responder a uma demanda do STF, e isso está sendo cumprido.”
Os
novos estudos apresentados confirmam que a Ferrogrão teria boa parte de seu
traçado correndo ao lado da BR-163, estrada federal que liga o Mato Grosso ao
Pará. Neste trajeto, a ferrovia prevê a construção de 81 obras especiais, como
pontes e viadutos, além de 247 passagens de fauna silvestre, 196 passagens
superiores, 150 passagens de veículos e 222 passagens de gado. A estrutura
também inclui centenas de quilômetros de contenções, muros de terra armada,
proteção vegetal de taludes e fechamento de faixa de domínio.
• Terras indígenas
Ao
todo, 16 municípios são interceptados pelo empreendimento, se considerada uma
área de impacto de 10 km em relação ao traçado previsto para a ferrovia. Os
estudos enviados ao Supremo apontam que 20 terras indígenas se sobrepõem
integral ou parcialmente aos municípios da área de estudo.
Se
somadas as áreas das 20 terras indígenas, chega-se a cerca de 16 milhões de
hectares, sendo que a terra Menkragnoti representa 31% do total, com quase 5
milhões de hectares. A segunda terra de maior tamanho é a Munduruku, com quase
2,4 milhões de hectares, respondendo por 15% da área total somada. Em termos
populacionais, os 20 territórios indígenas contam com uma população total de
33.656 pessoas, sendo que 43% delas estão na terra Andirá-Marau; e outros 28%
na terra Munduruku.
Ao
detalhar a distância dos territórios demarcados em relação ao traçado da
ferrovia e da BR-163, os estudos enviados ao STF apontam que todas as terras
indígenas teriam distância superior a 10 km da ferrovia. A terra Sawré Bap’im
(Apompu) está a cerca de 15 km do traçado. Praia do Índio e Praia da Mangue
estariam a pouco mais de 20 km do local.
Segundo
o Ministério dos Transportes, as terras indígenas Sawré Muybu (Pimental), Praia
do Mangue, Praia do Índio, Baú, Panará e Menkragnoti estão entre 20 e 46 km da
rodovia.
Já
as que possuem maior distância possuem todo ou parte de seu território no
município de Altamira, no Pará, município com maior extensão territorial do
país. É o caso das terras Trincheira-Bacajá, da Ituna-Itatá, Koatinemo,
Araweté, Igarapé Ipixuna, Kararaô e Arara, localizadas entre 250 e 410 km de
distância do traçado, segundo o relatório. Cachoeira Seca, Xipaya e Kuruaya
estão entre aquelas com distância de 100 a 110 km do empreendimento.
Esses
números pouco significam para Doto Takak Ire, líder caiapó na terra indígena
Menkragnoti. “Isso tudo é um absurdo, porque não estão olhando para o futuro. É
claro que toda a região passará a sentir o impacto dessa ferrovia. Querem criar
pontos de carregamento do agro no meio do caminho. Só de dizerem que estão
estudando a ferrovia, o agro já encostou na terra indígena. O impacto já está
sendo sentido e vai aumentar”, disse ao ((o))eco.
Doto
diz que seu povo já prepara uma grande mobilização contra o projeto, para o
início do ano que vem. “Vamos organizar e preparar uma mobilização grande.
Vamos brigar enquanto pudermos. Entendemos que essa ferrovia é inviável, porque
não houve consulta. Estamos na área de influência da ferrovia e somos contra o
empreendimento.”
Luísa
Molina, antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA), organização que
acompanha de perto o projeto da Ferrogrão, também lamenta a forma como o
assunto tem sido conduzido pelo governo.
“Causa
preocupação o fato de a Ferrogrão seguir em pauta considerando, de partida, que
o projeto se situa em uma região com sérios problemas de governança territorial
e se insere em um corredor logístico que já impacta gravemente a população do
interflúvio Tapajós-Xingu. E isso não está sendo encarado pela centralidade do
governo”, disse Molina.
A
especialista também afirma que não há clareza se o governo planeja fazer a
consulta prévia aos povos indígenas, tampouco de que forma isso seria feito.
“Não houve o devido debate sobre os resultados da atualização dos estudos. É
preocupante o modo como o processo tem sido conduzido, com risco de
sobrecarregar o licenciamento ambiental com passivos que não competem a essa
etapa. Com isso, se contratam problemas sérios que tendem a repetir os erros de
Belo Monte, por exemplo.”
Para
Bruna Balbi, assessora jurídica e coordenadora do Programa Amazônia da Terra de
Direitos, o governo precisa avaliar o projeto de forma cumulativa, conectado
aos demais projetos do corredor logístico da região do Tapajós e baixo
Amazonas.
“São
impactos de mais de 40 portos de transporte de cargas e da hidrovia do Rio
Tapajós, além dos passivos da BR-163. O momento atual, de planejamento, é
crucial. O governo deve avaliar todas estas questões que estão sendo trazidas
pela sociedade civil quanto ao passivo socioambiental existente de outros
projetos ligados a este corredor logístico, e dos impactos cumulativos e
sinérgicos sobre a região”, disse.
Além
da necessidade de participação popular na etapa de planejamento, reafirma
Balbi, é imprescindível a realização de consulta prévia, livre, informada e de
boa-fé aos povos originários, quilombolas e comunidades tradicionais, incluindo
os que já estão sendo e os que podem vir a ser impactados por esses
empreendimentos.
“A
manutenção do projeto entre os planos prioritários do governo federal fere o
direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
desconsidera a inconstitucionalidade da redução de unidade de conservação (no
caso, o Parque Nacional do Jamanxim) por meio de medida provisória e viola o
direito dos povos à autodeterminação.”
• Acúmulo de projetos
Os
responsáveis pelos estudos garantem que as consultas estão garantidas, que o
governo já avalia o efeito cumulativo de outros projetos e que a sobreposição
com a unidade de conservação do Jamanxim já foi resolvida com o traçado atual.
A
empresa Estação da Luz Participações (EDLP), envolvida com a concepção do
projeto desde o seu início, uma década atrás, afirmou ao ((o))eco que os novos
estudos da Ferrogrão já consideram os efeitos de competição com outros
empreendimentos logísticos que surgiram nos últimos anos e que já estão em
andamento.
“A
construção da FICO (Ferrovia do Centro-Oeste, em Mato Grosso) e a extensão da
RMN (Rumo Malha Norte, também em Mato Grosso), assim como outros investimentos
e empreendimentos de infraestrutura de transportes que estão no pipeline do
Ministério dos Transportes (FNS, FIOL, Transnordestina, concessões rodoviárias,
etc), foram considerados no estudo de demanda da Ferrogrão”, declarou a EDPL.
Segundo
a empresa, os resultados mostram que, uma vez que a Ferrogrão entre em
operação, ela captaria mais de 50% da carga de grãos e farelos do estado do
Mato Grosso, “por ter a metade da distância e pelo empenho energético do
corredor entre Ferrogrão e hidrovia do Tapajós ser a metade do empenho
energético das demais alternativas de transporte que atendem ou atenderão o
Estado, até os portos de exportação”.
O
Ministério dos Transportes também reage em relação à potencialização de danos
ambientais, afirmando que, com o uso dos trilhos, haveria uma redução de 40% em
emissões de gases de efeito estufa, por causa da mudança na matriz de
transporte. O cálculo é de 3,4 milhões de toneladas de CO² a menos, por ano.
Já
a Climate Policy Initiative, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), está longe de ver um horizonte tão promissor. Os
pesquisadores analisaram o projeto e chegaram a conclusões preocupantes. Eles
acreditam que a construção da ferrovia pode incentivar agricultores e
pecuaristas a ampliarem a produção, aumentando a demanda por terras. Caso
nenhuma medida de mitigação seja implementada, as projeções indicam que a obra
poderia induzir a o desmatamento de 2.043 km² de vegetação nativa, em quase 40
municípios do Mato Grosso. As emissões de carbono decorrentes do desmatamento
têm custo estimado em US$ 1,9 bilhão.
O
governo também afirma que o traçado atual da Ferrogrão está fora da área do
Parque Nacional do Jamanxim. Segundo os estudos, embora o caminho definido
“seja contíguo ao Parque Nacional do Jamanxim ao longo de 49 km”, estaria
inteiramente inserido na área que deixou de ser protegida, após uma lei de 2017
que alterou a sua poligonal.
A
redefinição da área do Parna do Jamanxim foi o que levou à paralisação do
processo pelo STF. O Parque Nacional do Jamanxim tem uma área total de 862,8
mil hectares e foi criado a partir de decreto, em fevereiro de 2006. A unidade
de conservação faz parte de um mosaico de áreas protegidas e está inserido em
uma região da Amazônia de rica biodiversidade, o que inclui os rios Jamanxim,
Tocantins e Aruri.
Como
o traçado proposto para a ferrovia passa ao lado da BR-163, que cruza o parque,
o governo de Michel Temer decidiu, em dezembro de 2016, publicar uma Medida
Provisória (758/2016), para excluir do parque a área alcançada pela faixa de
domínio da ferrovia. Seis meses depois, em junho de 2017, o Congresso aprovou a
MP, que foi sancionada pelo então presidente e transformada em lei federal (Lei
13.452/2017).
Ainda
em 2016, também foi aprovada a Medida Provisória 756/2016, que reduzia a
categoria de proteção de 305 mil hectares de outra unidade de conservação, a
Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim. Na tramitação no Congresso, houve ainda
ampliação das áreas excluídas dessas suas unidades, para 600 mil hectares,
sendo 486 mil hectares da Flona do Jamanxim e 101 mil hectares do Parna do
Jamanxim.
Foi
em reação a esse movimento que o Psol entrou com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 6553) no STF, questionando a constitucionalidade da
Lei Federal 13.452/2017. Em março de 2021, o ministro Alexandre de Moraes
acatou o pedido e paralisou o licenciamento e a eficácia da lei.
Em
maio de 2023, uma nova decisão do STF manteve a suspensão da eficácia da lei,
mas autorizou a retomada dos estudos e processos administrativos da Ferrogrão.
Então, em julho do ano passado, ocorreu no Supremo uma “audiência de
conciliação para solução das controvérsias”. Como resultado, foi dado um prazo
de seis meses ao Ministério dos Transportes para atualizar os estudos de
viabilidade econômica e socioambiental da ferrovia, o que foi realizado pelo
grupo de trabalho constituído pela pasta.
“Na
região do Parque Nacional do Jamanxim, fez-se necessária a adoção de raio
mínimo admissível para inserir o traçado da Ferrogrão dentro na faixa de
domínio da rodovia BR-163, de modo a não ocorrer intervenção no interior do
Parque. Hoje, a ferrovia se encontra na faixa de domínio da rodovia BR-163,
estando, portanto, fora da área do parque”, diz o ministério.
O
estudo da Ferrogrão mostra que a ferrovia intercepta um total de 643,22
hectares de Áreas de Preservação Permanentes (APPs), equivalente a 12% do
traçado do empreendimento. O traçado tem proximidade inferior a 3 km de duas
unidades de conservação de proteção integral, o Jamanxim e a Reserva Biológica
Nascentes Serra do Cachimbo, na divisa entre Mato Grosso e Pará.
Para
tentar viabilizar a obra e atrair interessados no projeto, o Ministério dos
Transportes considera a possibilidade de fazer um “leilão casado”, com oferta
da ferrovia e da BR-163, em um único pacote. Hoje, o trecho da rodovia BR-163
entre Sinop e Miritituba é administrado pela concessionária Via Brasil, da
empresa Conasa Infraestrutura, de Londrina (PR). Esse contrato acaba em 2032.
Como o tempo de obra da Ferrogrão é estimado em pelo menos 8 anos, fora o
período de licenciamento, a empresa interessada poderia gerar receita já em
2032, quando assumisse a rodovia, enquanto estaria com as obras ferroviárias em
andamento. Não está certo, porém, que este caminho será efetivamente adotado.
No
Supremo Tribunal Federal, o assunto é tratado com sigilo. Dentro do governo,
apesar de toda a expectativa com relação à possibilidade de retomar em breve o
processo de licenciamento da obra, não se sabe se o ministro Alexandre de
Moraes irá deliberar sobre o assunto amanhã, na próxima semana, mês ou no ano
que vem.
Se
o processo de licenciamento for autorizado, este continuará a ser tocado pela
Infra SA, estatal do governo federal que substituiu a Valec. A intenção do
governo, porém, é colocar o edital da ferrovia na rua logo em seguida, por meio
da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), e fazer o leilão do
empreendimento antes mesmo de o Ibama liberar a licença prévia, já que este
processo não tem prazo determinado.
Fonte:
Por André Borges, em O Eco
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