sábado, 30 de novembro de 2024

Mais duas ou três palavras sobre um general de Exército e um tenente-brigadeiro do ar

Nem precisa de relatório de 884 páginas. A linha do tempo da trama golpista de 2022 ficou muito clara desde as horas subsequentes às eleições daquele ano.

Após meses de diuturna campanha para desacreditar as urnas eletrônicas – por Bolsonaro, parlamentares e blogueiros bolsonaristas, e via assédio militar ao TSE -, multidões rebentaram simultaneamente na frente de quartéis de norte a sul do país tão logo saiu o resultado da eleição para presidente – a vitória de Lula. E lá ficaram, pedindo “intervenção militar” contra a fraude eleitoral que acreditavam ter existido em favor do “ladrão”.

Mas está lá, logo na página 10 do relatório final do inquérito do golpe, que o estímulo às suspeitas, ou melhor, à certeza de fraude eleitoral foi “a narrativa construída para manter mobilizadas as manifestações, que serviriam de suporte para a execução do golpe de Estado”.

Está lá também na página 34 da decisão de Alexandre de Moraes que autorizou a Operação Contragolpe, contra os militares do plano “Punhal Verde e Amarelo” – plano para assassinar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, no âmbito da maquinação golpista:

“Trata-se de um planejamento estratégico que tinha como objetivo final um golpe de Estado, visando anular o pleito presidencial de 2022, com fundamento na falsa narrativa disseminada pela organização criminosa de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação, com o objetivo de manter o então presidente da República, Jair Bolsonaro, no poder”.

As Forças Armadas, todas elas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, participaram ativamente tanto dos ataques às urnas eletrônicas e ao TSE quanto da permanência, sustentação e insuflação dos acampamentos golpistas na frente dos quartéis. Não apenas maçãs pobres fardadas agindo à revelia dos seus comandos, mas também os próprios comandos militares de terra, mar e ar.

Aos fatos:

•                        Destacamento equitativo de oficiais – três do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica – para composição da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação (EFASEV), ponta-de-lança do assédio militar ao TSE, Cavalo de Tróia com o qual o Ministério da Defesa azucrinou a Justiça Eleitoral e envenenou a sociedade brasileira, lançando e nutrindo suspeitas sem fundamentação contra as urnas eletrônicas.

•                        Coronel da ativa do Exército Brasileiro, chefe da EFASEV, dizendo em uma sessão do Senado da República que “é possível que um código malicioso tenha sido inserido na urna e fique lá latente esperando algum tipo de acionamento”. Isso no dia 14 de julho de 2022, quatro dias antes de Bolsonaro reunir embaixadores para pôr o TSE e as urnas eletrônicas definitivamente sob suspeição.

•                        Três militares da EFASEV assinando como “representante da Força Aérea Brasileira”, “representante do Exército Brasileiro” e “representante da Marinha do Brasil” uma requisição ao TSE de acesso a dados de votação das eleições de 2014 e 2018. Isso no dia 28 de julho de 2022, 10 dias após Bolsonaro apresentar aos embaixadores um powerpoint “mostrando tudo o que aconteceu nas eleições de 2014 e 2018”.

•                        Aprovação pelos comandantes das três Forças Armadas de um plano de trabalho para a EFASEV que previa, se necessário, prolongar até o dia 5 de janeiro de 2023 a “verificação pós-pleito em busca de anomalias nos dados fornecidos pela Justiça Eleitoral”. Ou seja: a manutenção do ambiente de suspeita de fraude até quando o novo presidente da República já deveria estar empossado e governando.

•                        Publicação de uma nota do Exército, a poucas horas do primeiro turno das eleições, desmentindo uma matéria do Estadão segundo a qual o comando da Força iria respeitar o resultado das eleições. A publicação, feita no site do Exército, teve direito a tarja de “fake news” sobre um print do título da matéria, que dizia: “Alto-Comando do Exército diz que ‘quem ganhar leva’ a presidência e se afasta de auditoria dos votos”.

•                        Publicação de outra nota do Exército, esta do dia 10 de novembro de 2022, com tarja de “fake news” agora em notícia intitulada “Generais relatam ao STF que comando do Exército é contra relatório das urnas”. A nota afirmava que “não há divergências entre o Comando do Exército e o Ministério da Defesa”. No mesmo dia, as redes sociais do Exército repercutiram, compartilharam uma nota oficial da Defesa dizendo, 10 dias após o segundo turno, que “o relatório das Forças Armadas não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas”.

•                        A carta “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, publicada no dia seguinte, 11 de novembro. Na carta, os então comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica declararam publicamente apoio ao “povo brasileiro” que pedia na frente dos quartéis “intervenção militar” contra o resultado eleitoral, além de ameaçarem com o “cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros” as instituições que tentassem mandar os acampados para casa.

•                        As mensagens de Mauro Cid ao comandante do Exército com informes sobre o andamento do golpe – que é do que se tratava, de um golpe em plena execução -, com direito a informes sobre ajustes em decreto golpista – “aquele que o senhor viu” – e, atente, informando ao general que a nota dos chefes das Três Forças tinha deixado os “organizadores” do golpe “se sentindo seguros” para “canalizar todos os movimentos previstos” para a Praça dos Três Poderes.

Porém, dos três comandantes das Forças Armadas quando do golpe em execução, apenas o comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, apenas Garnier foi indiciado pela PF no inquérito do golpe, porque não teria oferecido resistência à decretação de estado de sítio.

Porque teria “tanques prontos no arsenal”.

Se o general Marco Antonio Freire Gomes, à época comandante do Exército, e o brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da FAB, não tinham; se realmente pisaram no freio na hora agá, se de fato negaram atravessar a porta do chiqueiro, mas com quepes e coturnos já sujos de golpe, isso – o quociente do que participaram e do que não participaram na marcha golpista – não parece razão para escaparem de indiciamento por golpe de Estado.

Nunca, jamais para escaparem de indiciamento por golpe de Estado, mas sim para “individualização de condutas” e posterior “dosimetria das penas”.

Em defesa de Freire Gomes e Baptista Junior, circula a “narrativa” de que um e outro contribuíram como contribuíram para o golpe no ardil de simular aquiescência, ainda que circunspecta, à conspiração. Aquiescência ou vista grossa, mas de qualquer maneira, segundo a “narrativa”, a fim de não serem trocados no Forte Apache e no Comaer (Comando da Aeronáutica) por um general de Exército e um brigadeiro do ar que topariam dar o “soco na mesa” final.

Baptista Junior, por exemplo, disse em depoimento à PF que utilizou “uma estratégia para ganhar tempo e evitar que o então presidente assinasse alguma medida de exceção, que subvertesse o Estado de Direito”. Nem parece o “bolsonarista raiz” que em junho de 2021, semanas antes de a “PEC do Voto Impresso” ir a votos no plenário da Câmara, declarou – um comandante militar – ter votado na autora da PEC, a deputada Bia Kicis, nas eleições de 2018.

Nem parece o comandante militar que, semanas depois, no início de julho de 2021, afirmou ao jornal O Globo que tinha “base legal” para agir contra a CPI da Covid-19, que naquela altura desnudava a participação de militares da ativa nas negociatas com vacinas do governo Bolsonaro. Nem parece o homem que, perguntando se aquilo era uma ameaça, respondeu: “homem armado não ameaça”.

“Como a dizer que ele (o homem armado) age”, notou, na época, Miriam Leitão.

Quanto ao general Freire Gomes, consta – delação de Mauro Cid, depoimento de Baptista Júnior – que o general ameaçou prender Bolsonaro se Bolsonaro insistisse em levar o golpe adiante. A curiosa ameaça de voz de prisão da parte de quem fingia adesão ao crime, conforme a “narrativa”, teria acontecido no dia 24 de novembro de 2022. “Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”, teria dito o chefe do Exército a Bolsonaro.

Pois os golpistas seguiram – e seguiram muito – “em frente com isso”: ataque à sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula, quando um ônibus em chamas por um triz não foi arremessado de um viaduto em Brasília; tentativa de explodir caminhão-tanque no aeroporto da capital federal; kids pretos em campo para sequestrar, talvez matar, Alexandre de Moraes; o comandante das Operações Terrestres do Exército, maior tropa da Força, chamado ao Palácio da Alvorada e pondo a tropa à disposição do golpe de Estado, etc.

Rendido no Forte Apache ainda em 2022, Freire Gomes, ex-kid preto, nunca botou a boca no trombone, nunca denunciou os conspiradores que, supostamente, teria engambelado com o dom de iludir. Nem logo depois – permitindo o 8/1, rebote do golpe que tinha acabado de explodir na trave -, nem até hoje.

Até hoje, Freire Gomes é um túmulo. Não obstante, o general e o brigadeiro Baptista Júnior são os heróis da vez, da semana, nas capas dos jornais e dos portais noticiosos, com base no inquérito da Polícia Federal, inquérito referido na imprensa sem o mais pálido sinal de estranhamento quanto ao livramento, pela PF, das altas esferas militares de terra e ar.

Além de ler as 884 páginas do inquérito do golpe, jornalistas bem que podiam reler uma entrevista de novembro de 2018 com o general Eduardo Villas Bôas, na Folha de S.Paulo, para se instruírem sobre generais que dizem ter agido como agiram – criminosamente – porque apenas tentavam conter radicalismos, livrar o “povo brasileiro” de um mal maior.

Sobre a ameaça que tinha feito ao STF meses antes, via Twitter, na véspera do julgamento do Habeas Corpus que poderia ter colocado Lula nas eleições daquele ano contra Bolsonaro, disse Villas Bôas na entrevista:

“Ali nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis que se identificavam conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática”.

Deveriam se envergonhar, os colegas jornalistas que aderem de maneira apriorística àquilo que Conrado Hübner Mendes chamou na última quarta-feira, 27, na Folha de S.Paulo, de “a grande anistia”: anistiar a instituição militar.

Mas, na verdade, ficarão orgulhosos quando fizerem companhia a Alexandre Garcia no rol dos agraciados com a Medalha do Exército Brasileiro, concedida a “civis que se destacaram na prestação de relevantes serviços em prol do interesse e do bom nome do Exército”.

 

Fonte: Por Hugo Souza, em Come Ananás

 

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