Mais duas
ou três palavras sobre um general de Exército e um tenente-brigadeiro do ar
Nem
precisa de relatório de 884 páginas. A linha do tempo da trama golpista de 2022
ficou muito clara desde as horas subsequentes às eleições daquele ano.
Após
meses de diuturna campanha para desacreditar as urnas eletrônicas – por
Bolsonaro, parlamentares e blogueiros bolsonaristas, e via assédio militar ao
TSE -, multidões rebentaram simultaneamente na frente de quartéis de norte a
sul do país tão logo saiu o resultado da eleição para presidente – a vitória de
Lula. E lá ficaram, pedindo “intervenção militar” contra a fraude eleitoral que
acreditavam ter existido em favor do “ladrão”.
Mas
está lá, logo na página 10 do relatório final do inquérito do golpe, que o
estímulo às suspeitas, ou melhor, à certeza de fraude eleitoral foi “a
narrativa construída para manter mobilizadas as manifestações, que serviriam de
suporte para a execução do golpe de Estado”.
Está
lá também na página 34 da decisão de Alexandre de Moraes que autorizou a
Operação Contragolpe, contra os militares do plano “Punhal Verde e Amarelo” –
plano para assassinar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, no âmbito da
maquinação golpista:
“Trata-se
de um planejamento estratégico que tinha como objetivo final um golpe de
Estado, visando anular o pleito presidencial de 2022, com fundamento na falsa
narrativa disseminada pela organização criminosa de vulnerabilidade e fraude no
sistema eletrônico de votação, com o objetivo de manter o então presidente da
República, Jair Bolsonaro, no poder”.
As
Forças Armadas, todas elas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, participaram
ativamente tanto dos ataques às urnas eletrônicas e ao TSE quanto da
permanência, sustentação e insuflação dos acampamentos golpistas na frente dos
quartéis. Não apenas maçãs pobres fardadas agindo à revelia dos seus comandos,
mas também os próprios comandos militares de terra, mar e ar.
Aos
fatos:
• Destacamento equitativo
de oficiais – três do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica – para
composição da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico
de Votação (EFASEV), ponta-de-lança do assédio militar ao TSE, Cavalo de Tróia
com o qual o Ministério da Defesa azucrinou a Justiça Eleitoral e envenenou a
sociedade brasileira, lançando e nutrindo suspeitas sem fundamentação contra as
urnas eletrônicas.
• Coronel da ativa do
Exército Brasileiro, chefe da EFASEV, dizendo em uma sessão do Senado da
República que “é possível que um código malicioso tenha sido inserido na urna e
fique lá latente esperando algum tipo de acionamento”. Isso no dia 14 de julho
de 2022, quatro dias antes de Bolsonaro reunir embaixadores para pôr o TSE e as
urnas eletrônicas definitivamente sob suspeição.
• Três militares da EFASEV
assinando como “representante da Força Aérea Brasileira”, “representante do
Exército Brasileiro” e “representante da Marinha do Brasil” uma requisição ao
TSE de acesso a dados de votação das eleições de 2014 e 2018. Isso no dia 28 de
julho de 2022, 10 dias após Bolsonaro apresentar aos embaixadores um powerpoint
“mostrando tudo o que aconteceu nas eleições de 2014 e 2018”.
• Aprovação pelos
comandantes das três Forças Armadas de um plano de trabalho para a EFASEV que
previa, se necessário, prolongar até o dia 5 de janeiro de 2023 a “verificação
pós-pleito em busca de anomalias nos dados fornecidos pela Justiça Eleitoral”.
Ou seja: a manutenção do ambiente de suspeita de fraude até quando o novo
presidente da República já deveria estar empossado e governando.
• Publicação de uma nota
do Exército, a poucas horas do primeiro turno das eleições, desmentindo uma
matéria do Estadão segundo a qual o comando da Força iria respeitar o resultado
das eleições. A publicação, feita no site do Exército, teve direito a tarja de
“fake news” sobre um print do título da matéria, que dizia: “Alto-Comando do
Exército diz que ‘quem ganhar leva’ a presidência e se afasta de auditoria dos
votos”.
• Publicação de outra nota
do Exército, esta do dia 10 de novembro de 2022, com tarja de “fake news” agora
em notícia intitulada “Generais relatam ao STF que comando do Exército é contra
relatório das urnas”. A nota afirmava que “não há divergências entre o Comando
do Exército e o Ministério da Defesa”. No mesmo dia, as redes sociais do
Exército repercutiram, compartilharam uma nota oficial da Defesa dizendo, 10
dias após o segundo turno, que “o relatório das Forças Armadas não excluiu a
possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas”.
• A carta “Às Instituições
e ao Povo Brasileiro”, publicada no dia seguinte, 11 de novembro. Na carta, os
então comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica declararam publicamente
apoio ao “povo brasileiro” que pedia na frente dos quartéis “intervenção militar”
contra o resultado eleitoral, além de ameaçarem com o “cumprimento das nobres
missões de Soldados Brasileiros” as instituições que tentassem mandar os
acampados para casa.
• As mensagens de Mauro
Cid ao comandante do Exército com informes sobre o andamento do golpe – que é
do que se tratava, de um golpe em plena execução -, com direito a informes
sobre ajustes em decreto golpista – “aquele que o senhor viu” – e, atente, informando
ao general que a nota dos chefes das Três Forças tinha deixado os
“organizadores” do golpe “se sentindo seguros” para “canalizar todos os
movimentos previstos” para a Praça dos Três Poderes.
Porém,
dos três comandantes das Forças Armadas quando do golpe em execução, apenas o
comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, apenas Garnier foi indiciado pela
PF no inquérito do golpe, porque não teria oferecido resistência à decretação
de estado de sítio.
Porque
teria “tanques prontos no arsenal”.
Se
o general Marco Antonio Freire Gomes, à época comandante do Exército, e o
brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da FAB, não
tinham; se realmente pisaram no freio na hora agá, se de fato negaram
atravessar a porta do chiqueiro, mas com quepes e coturnos já sujos de golpe,
isso – o quociente do que participaram e do que não participaram na marcha
golpista – não parece razão para escaparem de indiciamento por golpe de Estado.
Nunca,
jamais para escaparem de indiciamento por golpe de Estado, mas sim para
“individualização de condutas” e posterior “dosimetria das penas”.
Em
defesa de Freire Gomes e Baptista Junior, circula a “narrativa” de que um e
outro contribuíram como contribuíram para o golpe no ardil de simular
aquiescência, ainda que circunspecta, à conspiração. Aquiescência ou vista
grossa, mas de qualquer maneira, segundo a “narrativa”, a fim de não serem
trocados no Forte Apache e no Comaer (Comando da Aeronáutica) por um general de
Exército e um brigadeiro do ar que topariam dar o “soco na mesa” final.
Baptista
Junior, por exemplo, disse em depoimento à PF que utilizou “uma estratégia para
ganhar tempo e evitar que o então presidente assinasse alguma medida de
exceção, que subvertesse o Estado de Direito”. Nem parece o “bolsonarista raiz”
que em junho de 2021, semanas antes de a “PEC do Voto Impresso” ir a votos no
plenário da Câmara, declarou – um comandante militar – ter votado na autora da
PEC, a deputada Bia Kicis, nas eleições de 2018.
Nem
parece o comandante militar que, semanas depois, no início de julho de 2021,
afirmou ao jornal O Globo que tinha “base legal” para agir contra a CPI da
Covid-19, que naquela altura desnudava a participação de militares da ativa nas
negociatas com vacinas do governo Bolsonaro. Nem parece o homem que,
perguntando se aquilo era uma ameaça, respondeu: “homem armado não ameaça”.
“Como
a dizer que ele (o homem armado) age”, notou, na época, Miriam Leitão.
Quanto
ao general Freire Gomes, consta – delação de Mauro Cid, depoimento de Baptista
Júnior – que o general ameaçou prender Bolsonaro se Bolsonaro insistisse em
levar o golpe adiante. A curiosa ameaça de voz de prisão da parte de quem
fingia adesão ao crime, conforme a “narrativa”, teria acontecido no dia 24 de
novembro de 2022. “Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a
prendê-lo”, teria dito o chefe do Exército a Bolsonaro.
Pois
os golpistas seguiram – e seguiram muito – “em frente com isso”: ataque à sede
da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula, quando um ônibus em chamas por
um triz não foi arremessado de um viaduto em Brasília; tentativa de explodir
caminhão-tanque no aeroporto da capital federal; kids pretos em campo para
sequestrar, talvez matar, Alexandre de Moraes; o comandante das Operações
Terrestres do Exército, maior tropa da Força, chamado ao Palácio da Alvorada e
pondo a tropa à disposição do golpe de Estado, etc.
Rendido
no Forte Apache ainda em 2022, Freire Gomes, ex-kid preto, nunca botou a boca
no trombone, nunca denunciou os conspiradores que, supostamente, teria
engambelado com o dom de iludir. Nem logo depois – permitindo o 8/1, rebote do
golpe que tinha acabado de explodir na trave -, nem até hoje.
Até
hoje, Freire Gomes é um túmulo. Não obstante, o general e o brigadeiro Baptista
Júnior são os heróis da vez, da semana, nas capas dos jornais e dos portais
noticiosos, com base no inquérito da Polícia Federal, inquérito referido na
imprensa sem o mais pálido sinal de estranhamento quanto ao livramento, pela
PF, das altas esferas militares de terra e ar.
Além
de ler as 884 páginas do inquérito do golpe, jornalistas bem que podiam reler
uma entrevista de novembro de 2018 com o general Eduardo Villas Bôas, na Folha
de S.Paulo, para se instruírem sobre generais que dizem ter agido como agiram –
criminosamente – porque apenas tentavam conter radicalismos, livrar o “povo
brasileiro” de um mal maior.
Sobre
a ameaça que tinha feito ao STF meses antes, via Twitter, na véspera do
julgamento do Habeas Corpus que poderia ter colocado Lula nas eleições daquele
ano contra Bolsonaro, disse Villas Bôas na entrevista:
“Ali
nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos
que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque
outras pessoas, militares da reserva e civis que se identificavam conosco,
estavam se pronunciando de maneira mais enfática”.
Deveriam
se envergonhar, os colegas jornalistas que aderem de maneira apriorística
àquilo que Conrado Hübner Mendes chamou na última quarta-feira, 27, na Folha de
S.Paulo, de “a grande anistia”: anistiar a instituição militar.
Mas,
na verdade, ficarão orgulhosos quando fizerem companhia a Alexandre Garcia no
rol dos agraciados com a Medalha do Exército Brasileiro, concedida a “civis que
se destacaram na prestação de relevantes serviços em prol do interesse e do bom
nome do Exército”.
Fonte:
Por Hugo Souza, em Come Ananás
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