AquilombaSUS:
o protagonismo negro na saúde
Ainda
é preciso avançar muito para acabar com o racismo SUS, embora a equidade esteja
em seu cerne. Mas iniciativas que combatem as desigualdades raciais nas
estruturas do sistema público de saúde sempre existiram – basta que se escute.
É o que tenta fazer um projeto encabeçado por Emiliano de Camargo, Rachel
Gouveia e Tadeu de Paula, que compõem a Frente Nacional de Negros e Negras da
Saúde Mental (FENNASM). Os três pesquisadores concederam entrevista conjunta ao
Outra Saúde para falar sobre seu novo projeto.
Em
uma parceria com o selo Diálogos da Diáspora, da editora Hucitec, eles
idealizaram um novo livro construído a muitas mãos. Abriram um edital para
receber relatos de experiências coletivas que tratem da temática racial nos
processos de produção de saúde – o que chamam de aquilombasus. Serão 20
experiências selecionadas, e as inscrições estão abertas até dia 20 de dezembro
– a publicação deve sair em meados de 2025.
Como
esse racismo se revela? “No campo da saúde, ele tem uma dimensão mais
macroestrutural, que está no próprio sucateamento do SUS. A gente sabe que a
maioria da população que depende exclusivamente do SUS é de pardos e pretos”,
introduz Tadeu, que é psicólogo e professor da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
Mas
essa é só uma das faces: “Também está na estrutura do SUS uma reprodução do
racismo nas categorias profissionais: a maioria de médicos e pessoas que estão
em lugares de poder são homens e mulheres brancas, enquanto negros e negras
estão em cargos de menor remuneração. Eles foram, inclusive, os profissionais
da linha de frente que mais morreram durante a pandemia de covid”, relembra
Tadeu.
Uma
das chaves para a mudança dessas estruturas pode estar na organização
antirracista coletiva que já desponta no SUS – e que os pesquisadores chamam de
aquilombamento. “Há um protagonismo de negros presente nessa construção. Não é
só uma reunião de pessoas, mas tem uma direção ético-política, clínica, de
perspectiva antirracista que resgata a cultura, os valores, as experiências
forjadas na diáspora e que são trazidas para o interior do Sistema Único de
Saúde”, conta Raquel, que coordena o projeto de pesquisa e extensão da luta
antimanicomial e feminismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Emiliano,
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) contribui com um
exemplo do que seria uma experiência de aquilombamento no SUS: o Kilombrasa,
coletivo da cidade de São Paulo, que “começou a discutir as relações raciais
dentro do território da Brasilândia, de um Centro de Atenção Psicossocial
(Caps) infanto-juvenil, e foi fazendo relação com os diversos setores que
compõem a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para as suas ações antirracistas
dentro do equipamento”.
Tadeu
enxerga que o aquilombasus pode ter um papel de articulação, ao “poder acionar
essa potência que existe nos territórios, movimentos de produção de cuidado, de
rede de proteção, de enfrentamento ao racismo – que tem toda uma carga de
ancestralidade, de cultura que vem desse manancial da afrodiáspora”. E então
enfrentar os processos sociais, que não nascem dentro do SUS, que são muito
mais antigos que ele – como o hospital, a medicina, a psicologia,
frequentemente reprodutoras do racismo.
A
saúde mental é a área de atuação dos três pesquisadores – e talvez não à toa é
daí que venham as principais experiências do aquilombasus descritas por eles.
Para Raquel, “o aquilombasus está se propondo a fortalecer estratégias que são
produzidas no território, que trabalham com a perspectiva da escuta, do
acolhimento, centradas na liberdade e na defesa de uma perspectiva em que a
loucura não é identificada por uma perspectiva do estigma, da discriminação”.
Essa é a lógica que reforça o próprio racismo, explica ela.
• Saúde da
população negra, 15 anos após a PNSIPN
Instituída
em 2009, a importância Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
(PNSIPN) é destacada pelos pesquisadores pelo seu papel de garantir a
universalidade como princípio do SUS. “Para que o sistema de saúde possa
cumprir sua função universal, ele sustenta políticas específicas, mas que não
intencionam uma fixação na particularidade”, ensina Emiliano. Ele acredita que
a PNSIPN “radicaliza a dimensão pública e universal do SUS”, mas também ajuda a
cumprir o princípio de equidade do sistema.
Mas
Tadeu oferece uma visão crítica sobre a situação dessa política no Brasil de
hoje: “Em um país estruturalmente racista, se essas políticas não se pensam a
partir de uma perspectiva antirracista, elas não estão cumprindo efetivamente
seu papel. Então, nesse sentido, ela ainda ocupa uma posição marginal na
estrutura do SUS. Precisa ser colocada mais na centralidade da agenda, dos
investimentos, dos esforços institucionais”. Ele defende que os movimentos
sociais precisam mobilizar projetos para “constuir um sentido pleno de política
pública” pois, reconhece, “ela não vai se efetivar somente a partir da
iniciativa estatal”.
Nesse
sentido, qual o papel do governo Lula? Emiliano reflete que é preciso colocá-lo
em perspectiva histórica. Nos primeiros governos do petista, houve a
implementação de programas sociais que eram muito defendidas pelo movimento
negro, como as cotas raciais. “Isso também aconteceu no SUS, com a criação de
uma série de instâncias de participação do movimento negro, de mulheres negras,
de forma até então nunca alcançadas na democracia brasileira”. Essas políticas
geraram efeitos concretos, defende ele.
Agora,
o Brasil vive um contexto mais complexo, após um golpe contra a presidente
Dilma e uma tentativa de golpe militar em 2022. A democracia está em risco.
“Contudo, também há os limites de um governo que se estabeleceu em frente
ampla. Há um certo fisiologismo que exige uma análise conjuntural, pois
configura limites para que políticas importantes passem no Congresso”. Isso
frustra, de certa forma, os movimentos negros, segundo Emiliano.
“O
governo está absolutamente absorto em garantir uma condição de governabilidade
de um ‘Centrão’, de uma ultradireita que atenta contra a democracia e as
condições básicas da vida”, completa Tadeu. “Então, evidentemente, esperar do
governo uma radicalidade que tem que vir do movimento social é um equívoco de
leitura. Alguns enfrentamentos só são possíveis se houver uma base social
fortalecida em algumas agendas que precisam ser mais radicais para garantir a
democracia para além do discurso de governabilidade”, termina ele.
Fonte:
Por Gabriela Leite, em Outra Saúde
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