quarta-feira, 20 de novembro de 2024

"Crise climática não se resolve com mais capitalismo", diz filósofo e professor da Universidade de Tóquio

A atual fase do capitalismo, em que a busca pelo crescimento constante é baseada na produção e no consumo desenfreado, faz com que o planeta dê sinais de esgotamento, desaguando na atual crise climática, segundo o professor da Universidade de Tóquio e filósofo japonês Kohei Saito.

Autor do livro O Capital no Antropoceno (Boitempo Editorial), que está sendo lançado no Brasil e já vendeu mais de 500 mil unidades pelo mundo, Saito analisa como o filósofo alemão Karl Marx previu a atual crise do meio ambiente e critica algo comum no Brasil: os "verdes" que, segundo ele, tentam instituir práticas sustentáveis ínfimas – como o uso de ecobags – para fugir da realidade climática.

Para o professor, só um novo sistema, pautado pelo decrescimento econômico, com a produção social e a partilha da riqueza como objetivo central, é capaz de reparar os danos causados até aqui.

Em entrevista à DW, ele também critica planos econômicos verdes de países ricos por ver neles um potencial destrutivo para o resto do planeta.

"Especialmente em países como na América Latina, haverá mais extração de minerais, como o lítio. O capitalismo verde trará mais exploração de recursos naturais, mais exploração forçada sob o nome de ESG", enumera, referindo-se ao acrônimo do mundo corporativo que diz respeito à observância de padrões ambientais, sociais e de governança por uma empresa.

"Foi isso que Marx criticou: o perigo do capitalismo. Enquanto o capitalismo continuar, a expansão infinita da economia continuar, haverá sério problemas ecológicos."

LEIA A ENTREVISTA:

•                                    No começo do livro, o senhor critica quem usa "ecobags, reduz o consumo de embalagens ou troca o carro a combustão por um elétrico". Por que a crítica?

Kohei Saito: Essas atitudes simplesmente não são suficientes para realmente mudar a situação da crise climática, que é muito séria. É uma das maiores crises que a humanidade enfrentou na história, e muitas pessoas vão morrer por isso.

Quando você tem uma ecobag ou recicla alguns plásticos, você se sente bem. Acha que fez algo bom para o meio ambiente, é reconfortante, mas o problema é que esse tipo de atitude se tornou uma justificativa para continuar com o que nos trouxe aqui. Empresas produzem alguns produtos ecológicos, usam essa boa imagem, mas isso só é feito para vender mais produtos.

O importante é dizer que estamos, simplesmente, consumindo e produzindo demais. Ninguém fala sobre reduzir o consumo. Acho que não podemos esquecer que o problema é muito maior e, por isso, precisamos repensar esse sistema capitalista, que requer expansão constante da produção e consumo massivo apenas para manter nosso sistema funcionando.

•                                    O livro busca fazer uma leitura do nosso tempo e da urgência climática através da obra do alemão Karl Marx. Como Marx via essa crise que se desenha e o capitalismo?

Marx é frequentemente entendido como alguém que critica o capitalismo, principalmente a exploração da classe trabalhadora e a desigualdade do sistema. O problema é que frequentemente os socialistas que o estudam falam apenas sobre como podemos substituir o capitalismo por um sistema no qual essas novas tecnologias e as forças produtivas possam criar uma sociedade melhor, onde todos podem ser como capitalistas, sem exploração, mas com o mesmo padrão de consumo.

Eu acho problemática essa leitura de Marx. Quando passei a estudá-lo, prestei também atenção à ecologia. Problemas ecológicos no capitalismo são óbvios, segundo ele, dado que a tecnologia e qualquer inovação são criadas apenas para gerar mais lucro.

De acordo com Marx, humanos e natureza têm esse tipo de interação metabólica, mas o capitalismo é sempre maior e mais rápido. Por isso nós produzimos e vendemos mais, sem levar em consideração a sustentabilidade dos recursos naturais, fazendo com que essa interação tenha problemas, fazendo com que alguma discrepância apareça. Foi isso que Marx criticou: o perigo do capitalismo. Enquanto o capitalismo continuar, a expansão infinita da economia continuar, haverá sério problemas ecológicos.

•                                    O senhor cita o "decrescimento no sistema capitalista" como solução do problema. O que seria isso?

Hoje até os capitalistas estão cientes desse problema, dado que a mudança climática também os afeta. Então, agora, as pessoas falam sobre como descarbonizar a economia, mas também em como manter o capitalismo, porque capitalismo sem crescimento é um desastre.

Nosso atual sistema é baseado na suposição de que a economia crescerá no ano que vem. Então, o que eles fazem agora? Falam sobre investir mais em tecnologia verde, energia renovável, etc. Acreditam que é possível fazer a economia crescer, criar mais empregos investindo nessas novas fábricas, mas também descarbonizar ou reduzir a emissão de carbono ao mesmo tempo.

O problema é que, se tentarmos crescer mais, ainda temos que produzir mais veículos elétricos. E isso significa que também precisamos de mais energia renovável: mais painéis solares, mais turbinas eólicas, mais baterias e assim por diante. Isso também requer mais recursos e energia.

•                                    E por que isso é necessariamente ruim?

Precisamos de uma rápida descarbonização nos próximos 20 ou 30 anos. Temos um limite de tempo. Então, se produzirmos mais, isso não é bom. Talvez devêssemos reduzir algumas coisas desnecessárias.

Especialmente em países como na América Latina, haverá mais extração de minerais, como o lítio. O capitalismo verde trará mais exploração de recursos naturais, mais exploração forçada sob o nome de ESG.

É por isso que eu critico o "Green New Deal" americano. Ele é obviamente bom para os trabalhadores nos Estados Unidos, mas ruim para muitas pessoas neste planeta. Não é algo universalizável para que todos possam ser como os americanos. Isso é óbvio. Então eu acho que essa não é uma boa estratégia. Se você realmente se importa com a vida de todos, é necessário imaginar uma política melhor.

•                                    E como ficam os países mais pobres?

Não estou defendendo que deveríamos simplesmente permanecer no nível atual de desenvolvimento. Obviamente, os países pobres precisam de mais desenvolvimento. E também acredito que no Brasil há muitos lugares que precisam de mais infraestrutura, como estradas, eletricidade, água e esse tipo de coisa.

Mas mais produção e mais crescimento não resolvem o problema, porque pessoas ricas simplesmente pagarão mais e continuarão com seus iates, jatos, carros, gigantescos, casas e seu consumo excessivo.

Talvez o futuro seja uma sociedade mais igualitária com foco em sustentabilidade e democracia, nos concentrando mais em uma educação satisfatória, assistência médica, transporte público, ar limpo.

•                                    Ao final do livro, o senhor cita que 3,5% das pessoas podem fazer a diferença na atual crise. Pode explicar isso melhor?

Geralmente achamos que precisamos de mais de 50% das pessoas envolvidas para mudar algo, mas isso não é necessário. Há um estudo de uma professora de Harvard, chamada Erica Chenoweth, que demonstra que angariar 3,5% é o suficiente, caso elas estejam realmente envolvidas.

Em uma forma pacífica e não violenta, são 3,5% que se levantam para mudar algo. A sociedade mudou e mudará. Então, espero que o aprofundamento das mudanças climáticas, com o aprofundamento da crise do capitalismo, muitas pessoas vejam que nosso sistema atual é irracional, e que 3,5% delas se levantem e busquem alterar essa situação ao invés de simplesmente usarem sua ecobag ou reciclarem algumas garrafas pet.

 

•                                    Brasil não está preparado para desastres, mostra índice

No início de maio deste ano, enchentes devastavam o Rio Grande do Sul e evidenciavam o potencial destrutivo das mudanças climáticas. Na época, especialistas frisaram que, mesmo com a intensidade das chuvas, os impactos poderiam ter sido mitigados com mais investimento em defesa civil.

Passados mais de seis meses desde a tragédia, a capacidade de resposta das cidades brasileiras a desastres praticamente não mudou, de acordo com dados compilados pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional no Indicador de Capacidade Municipal (ICM).

O ICM monitora quais cidades têm estrutura e organização para responder a emergências semelhantes às chuvas que assolaram o Rio Grande do Sul. O índice abarca 20 critérios, entre eles a existência de um mapa das áreas de risco, a identificação de famílias vulneráveis e o funcionamento de sistemas de alerta.

A partir dessas informações, e considerando também fatores como tamanho da população e histórico de desastres em cada município, o ICM classifica as cidades em quatro categorias. Aquelas com melhor gestão de riscos ficam na categoria A, enquanto as menos preparadas ficam na categoria D.

No levantamento de junho de 2024, um mês depois das enchentes, o ICM indicava que 1.625 (29,1%) das 5.570 cidades brasileiras estavam na categoria D;  2.196 (39,4%), na categoria C; 1.268 (22,8%), na categoria B, e apenas 481 (8,6%), na categoria A.

A atualização mais recente mostra que pouco mudou desde então. No final de setembro, ainda havia 1.625 cidades na categoria D; 2.191 na categoria C; 1.271 na categoria B; e 483 na categoria A – praticamente a mesma proporção que no levantamento anterior.

<><> Após tragédia, poucos avanços práticos

Victor Marchezini, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), questiona alguns dos critérios escolhidos para classificar as cidades no ICM.  "Não estão claros os critérios técnico-científicos que levaram à escolha dessas variáveis", diz.

As poucas cidades que melhoraram de categoria, entre junho e setembro, após a tragédia no Rio Grande do Sul, implementaram apenas um ou dois novos mecanismos de gestão de risco, muitas vezes de ordem burocrática, como documentos e cadastros.

A cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul, é um exemplo. No levantamento de setembro, o município passou da categoria C para B. Entretanto, isso aconteceu graças a uma única mudança: a prefeitura ativou sua conta no sistema nacional de informações sobre desastres, usado para comunicar o governo federal quando uma tragédia ocorre.

O município, que fica na fronteira com o Uruguai e sofre com enchentes frequentes, segue sem medidas como um plano de contingência para desastres, um cadastro das famílias em zonas de risco e um sistema de alerta antecipado.

São Borja não é uma exceção. Todas as novas medidas reportadas pelos municípios desde junho envolvem a capacitação de servidores, a elaboração de documentos ou o cadastro no sistema de informações do governo federal. Nenhuma mudança envolve procedimentos práticos, como programas de habitação social ou mecanismos de drenagem.

<><> No Sul, cidades afetadas por enchentes seguem despreparadas

Devido às enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, o estado decretou calamidade pública em 46 cidades. Na prática, o decreto de calamidade pública reconhecia que esses municípios estavam diante de uma crise grave e precisavam de ajuda urgente de outras esferas do governo pois não tinham como lidar com a tragédia sozinhos.

Ainda hoje, a maior parte dessas 46 cidades não têm políticas concretas para diminuir os danos em uma nova crise. Apenas 18 afirmam contar com sistemas de alerta antecipado, por exemplo. Só 22 têm programas para monitorar e vistoriar áreas de risco; 11 têm um cadastro de famílias vulneráveis; e 17 contam com programas de habitação social para pessoas que precisem ser realocadas.

No extremo da falta de estrutura, estão cidades como São Jerônimo, às margens do rio Jacuí, que não conta com nenhuma medida de mitigação além de ter órgãos de Defesa Civil ativos e fornecer algum orçamento para o tema.

Isso acontece apesar de São Jerônimo ser a cidade que mais teve situações de desastre reconhecidas pelo governo federal entre 1991 e 2023, de acordo com o Atlas Digital de desastres no Brasil, publicado pela Secretaria Nacional de Defesa Civil.

Foram 28 registros no período, com danos estimados em aproximadamente R$ 25 milhões. O número de desalojados ou desabrigados chegou a 28 mil – o que leva em conta quem teve de sair de suas casas mais de uma vez no período e, por isso, resulta num número maior que a população atual do município, de 21 mil habitantes.

Para Marchezini, do Cemaden, há pouco acompanhamento da reconstrução desses municípios, e pouco se sabe sobre quais lições foram aprendidas pelos gestores públicos durante a tragédia.

"Eu não conheço nenhum estudo que tenha avaliado quais foram as lições aprendidas pelos governos municipais, estadual e federal", diz Marchezini. "É muito importante que a gente tenha financiamento de pesquisas que revisitem esses municípios e ajudem a entender as fragilidades e potencialidades antes do desastre."

<><> Norte e Nordeste mais vulneráveis

Ainda que a tragédia recente no Rio Grande do Sul tenha chamado a atenção para a falta de resiliência das cidades brasileiras, o Sul é a região do país onde há mais cidades bem avaliadas no ICM.

Aproximadamente 14% dos municípios do Sul estão na categoria A, o das cidades mais bem preparadas. O Sudeste tem um percentual semelhante de cidades na categoria mais alta (12%), e a realidade é ainda pior no Centro-Oeste (6%), no Norte (4%) e no Nordeste (4%).

Isso significa que essas regiões, que já têm indicadores econômicos e sociais menores, estão ainda mais vulneráveis no caso de um evento climático extremo. Em 2021, a Bahia, por exemplo, foi atingida por chuvas que afetaram cerca de 500 mil pessoas em dezenas de cidades. No estado, quatro de cada dez municípios está na categoria D, a de menor preparo.

<><> Atacar causas dos desastres

Para Marchezini, o Brasil tem um problema adicional, além da falta de capacidade de resposta das prefeituras: o modelo de desenvolvimento do país, que causa grande impacto na natureza e aumenta os efeitos de eventos climáticos extremos.

"Não adianta investir num aparelhamento das defesas civis, se as causas dos desastres não têm sido atacadas na raiz", diz o pesquisador.

"Não tem como pensar em redução de risco de desastre se não pensarmos em políticas que busquem reduzir o desmatamento, recuperar as bacias hidrográficas, lidar com consumo das águas, inclusive as subterrâneas, e com a qualidade delas", afirma.

 

Fonte: DW Brasil

 

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