quarta-feira, 20 de novembro de 2024

“Terrorismo” de Campos Neto esconde estrago dos juros nos gastos do Tesouro

Não satisfeito com a virada recente na política de juros, em grande parte resultante de manobras arquitetadas pelo próprio, Roberto Campos Neto, ainda na presidência do Banco Central (BC), escancarou a liderança que exerce também na “esquadrilha austericida” numa entrevista concedida a um jornalão paulista e publicada no dia 14, quinta-feira, véspera de feriado. Sem o menor rubor nas faces e nenhuma consideração de caráter ético, exercitando um nível de cinismo típico de figuras que circulam nas vertentes mais à direita do espectro político e do pensamento econômico, Campos Neto decretou que, sem cortar despesas “na carne” e realizar um “ choque fiscal”, sem truques que produzam apenas aumento de receitas, a economia vai soçobrar e a “percepção de risco” do Brasil, evidentemente, vai piorar.

Já seria estranho um presidente de banco central, em qualquer outro país, disparar críticas à política econômica. Pior ainda quando argumenta que, mesmo diante da queda da inflação, o “choque fiscal” não pode ser adiado. O episódio, que se tornou rotineiro numa fase mais recente, ganha maior gravidade quando a autoridade monetária se encarrega de manipular dados, escondendo-se atrás das tais expectativas dos mercados para expressar opiniões com as quais não apenas concorda, mas tem dado suporte em encontros reservados e, muito frequentemente, em manifestações públicas.

“Olhando as pesquisas que a gente recebe de mercado”, responde ele ao jornalão, “tenho escutado [a defesa de cortes de despesas] entre R$ 30 bilhões e R$ 50 bilhões no ano de 2025 e alguma coisa estrutural. No estrutural, não é uma opinião do Banco Central, o que a gente tem visto os economistas falando é que enderecem o ponto da indexação e da vinculação”. Para deixar mais claro, o que Campos Neto está defendendo é o fim da correção anual do salário mínimo, tomando a inflação como base, e a extinção dos pisos constitucionais definidos para as despesas com saúde e educação, de forma a permitir seu achatamento já na sequência.

•                                    Sob ataque

Como não poderia deixar mais claro, a entrevista reforça que o Estado brasileiro continua sob ataque ferrenho da “esquadrilha austericida”, num momento em que a equipe econômica discute alguma forma de “ajuste” nas despesas, supostamente para “tranquilizar” os mercados. A ofensiva continuada, amplamente reproduzida por dez a cada dez analistas e comentaristas econômicos abrigados na Faria Lima, centro financeiro paulistano, e na grande imprensa corporativa, certamente tem sob mira os gastos com as faixas da população que mais necessitam e utilizam os serviços prestados pelo setor público.

Propositadamente, como faz Campos Neto, os ataques deixam de fora a segunda maior rubrica na lista de despesas consolidadas do governo central, na soma dos gastos da União, da Previdência e do Banco Central (BC). Nos nove meses iniciais deste ano, a conta dos juros respondeu por 46,5% do aumento geral dos gastos, mas isso não gera temores entre os que se alinham ao “esquadrão austericida” – muito ao contrário.

Na métrica convencionalmente mais aceita pelos gestores da política fiscal, em dados devidamente atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as receitas líquidas totais do governo central avançaram com certo vigor no acumulado dos nove primeiros meses deste ano diante de idêntico intervalo de 2023, subindo de R$ 1,472 trilhão para qualquer coisa em torno de R$ 1,567 trilhão. A variação de 6,50% em termos reais, depois de descontada a inflação, resultou num acréscimo de R$ 94,161 bilhões na ponta da receita.

Ainda sem acrescentar a conta dos juros, o governo central realizou gastos de quase R$ 1,672 trilhão entre janeiro e setembro deste ano, frente a R$ 1,570 trilhão nos mesmos nove meses do ano passado, o que representou um aumento de 6,46%, não muito distante do avanço realizado pelas receitas. Mas, em valores absolutos, o avanço traduziu-se num gasto adicional próximo de R$ 101,441 bilhões (em torno de R$ 7,280 bilhões a mais do que o total de receitas arrecadadas a mais pelo governo no mesmo período). Esse número determinou um aumento real de 7,45% para o resultado primário (a diferença entre receitas e despesas, excluídos os juros), que avançou de R$ 97,730 bilhões para R$ 105,010 bilhões, sempre no acumulado entre janeiro e setembro em cada ano analisado.

•                                    Peso maior

Em valores correntes, quer dizer, sem correção pelo IPCA, o déficit primário saiu de R$ 94,330 bilhões para R$ 105,187 bilhões, na série de dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelo Banco Central (BC) para os nove meses iniciais de cada ano, o resultado negativo saiu de 1,18% para 1,23%, ou seja, uma elevação de “gigantescos” 0,05 pontos percentuais. Não deixa de ser irônico que a “grande batalha” dos austericidas tem se dado em torno dessa variação minúscula, quase desprezível em termos estatísticos. Mesmo porque, o resultado total das contas do governo central, com o acréscimo dos juros, apresentou desempenho muito pior.

Considerados de forma isolada, os gastos com juros subiram 17,68% em termos reais, passando de R$ 498,014 bilhões para pouco menos do que R$ 586,065 bilhões, acrescentando R$ 88,050 bilhões às despesas. Numa contabilidade um tanto fora do figurino adotado pelo governo, por seus críticos e especialistas em contas públicas em geral, na soma entre despesas primárias e juros, os gastos totais experimentaram alta geral de 9,16%, sempre em valores atualizados com base no IPCA.

Neste caso, o governo central desembolsou até setembro deste ano em torno de R$ 2,258 trilhões, em torno de 35,06% acima dos valores anotados quando se consideram apenas os gastos primários. No mesmo intervalo do ano passado, a despesa geral havia alcançado R$ 2,068 trilhões, superando o gasto primário em 31,72%. A comparação entre aqueles dois valores mostra um acréscimo de R$ 189,491 bilhões, dentre os quais, em torno de 46,47% tiveram como origem o aumento nos gastos com juro (aqueles R$ 88,050 bilhões a mais já relacionados acima).

O resultado final foi um salto real de 16,0% no déficit total, que subiu de R$ 595,744 bilhões para R$ 691,075 bilhões, registrando variação de praticamente R$ 95,331 bilhões. Na comparação com o PIB, considerando dados nominais, o rombo avançou de 7,06% para 7,98%, o que significou uma variação de 0,92 pontos percentuais. Nitidamente, faria mais efeito, sob o ponto de vista das contas totais do setor público, algum controle sobre os gastos com juros.

Uma redução de R$ 60,0 bilhões, como os mercados têm defendido (mas escolhendo como alvo exclusivamente as despesas primárias), traria o déficit final para 7,28% do PIB, num ajuste de 0,7 pontos, mais substancial do que o resultado que seria alcançado com o sacrifício de despesas muitas vezes mais essenciais, sob o ponto de vista das contas públicas, mas sobretudo considerando seu impacto para as populações de menor renda.

O perfil das despesas gerais, somando gastos primários e financeiros, mostra participação de 32,25% para o pagamento de benefícios previdenciários nos primeiros nove meses deste ano, somando em torno de R$ 728,049 bilhões, crescendo perto de 3,48% em relação ao igual período do ano passado. Em 2023, os benefícios demandaram R$ 703,585 bilhões, com participação de 34,02% na composição do total das despesas. A despeito dessa participação, a contribuição dos benefícios da Previdência para o aumento das despesas gerais ficou limitada a apenas 12,91%.

•                                    “Bolsa juros” supera gastos sociais

Os gastos com juros surgem como a segunda maior despesa do governo central, com sua participação no geral avançando de 24,08% para 25,96%. O governo gastou mais com juros do que a soma das chamadas “despesas sociais”, incluindo abono salarial e seguro desemprego, benefícios de prestação continuada e renda mensal vitalícia, Bolsa Família, saúde e educação (acrescentando aqui a complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb).

Nessa conta, os gastos saíram de R$ 449,637 bilhões nos nove primeiros meses de 2023 para R$ 501,687 bilhões neste ano, num avanço real de 11,58% (em torno de R$ 52,050 bilhões). A participação em relação às despesas gerais, já com a inclusão dos juros, flutuou de 21,74% para 22,22% e sua contribuição para o incremento dos gastos totais chegou a 27,47%. Como parece claro, a influência dos juros no avanço geral das despesas foi muito mais relevante, quase 70% maior do que a contribuição dos gastos sociais. Na comparação entre os dois valores, a despesa com juros superou os chamados gastos sociais em 16,8% nos nove primeiros meses deste ano.

 

•                                    A taxa de juros e a concentração de renda. Por Luís Nassif

O passo inicial foi a ultra financeirização da economia ocidental. A relação inicial entre produção e preços foi para o espaço. Todos os negócios foram financeirizados e os preços passaram a ser fixados por movimentos especulativos de ondas.

Processo similar ocorreu na grande onda especulativa de fins do século 19 até a grande crise de 1929. Não bastavam os ativos tradicionais – ações, empresas. Criaram-se toda espécie de derivativos, derivativos de derivativos, em um processo exponencial de criação de bolhas.

O mesmo acontece agora com derivativos, títulos de dívida, criptomoedas, bets. O mundo virou um cassino. E esse cassino transborda para a política monetária.

A política monetária não reflete o nível real de atividade econômica, mas as expectativas dos agentes econômicos, manipuladas por uma parceria ignominiosa com a imprensa. É o terrorismo com a tal da gastança, ou então com a taxa de emprego nos Estados Unidos, com o nível de inflação, qualquer motivo é invocado para aumento de juros.

Blair Fix, um economista baseado em Toronto, preparou um paper comprovando o óbvio: as taxas de juros são, antes de qualquer coisa, uma variável distributiva, e não uma variável para trazer “mercados ao equilíbrio financeiro”.

Em vez de “taxa de juros” ele emprega o termo “taxa salarial”. Uma das razões é que ambas são taxas de retorno: os salários são o retorno sobre o emprego; as taxas de juros são o retorno sobre o crédito. E as taxas de retorno são “variáveis distribucionais”, que determinam como o bolo de renda é dividido.

Lá fora, como aqui, quando se fala em aumento do salário mínimo, empresas e muitos economistas reclamam sobre a redução dos juros. Mas quando os credores aumentam as taxas de juros, falar de distribuição de renda é um tema ausente do debate público. “Em vez disso, temos uma enxurrada de jargões econômicos, termos como “taxa natural de juros” ou “taxa de desemprego não aceleradora da inflação”.

Irônico, ele diz que uma possibilidade é que os economistas saibam algo que os mortais comuns não conhecem. Talvez eles tenham olhado para as evidências e concluído que as taxas de juros têm efeito “neutro” na distribuição de renda. Outra possibilidade, continua ele, é que o jargão macroeconômico seja principalmente uma distração.

Quando o estudo da economia política ganhou fôlego, no século 19, pensadores como Karl Marx e Henry George reconheceram que distribuir renda envolvia conflito óbvio. Aí entra John Bates Clark tentando mostrar que o conflito era desnecessário, “provando” que, em um mercado competitivo, cada agente recebe de volta a riqueza que criou. Assim nasceu a teoria da “produtividade marginal”. Ou seja, todos ganham o que merecem e em uma economia de mercado não existe a luta de classes. Para ser correta a teoria, teria que se assumir que a sociedade produz uma única mercadoria. “Então, por que os economistas estabeleceram uma teoria que estava claramente errada?”, indaga ele.

A primeira explicação é que a teoria da produtividade marginal dizia às pessoas poderosas o que elas queriam ouvir – que a distribuição de renda é “justa”.

A segunda explicação é que a teoria combinava bem com a obsessão emergente com o crescimento econômico. Se tratassem toda sociedade como uma única empresa, os economistas poderiam usar uma função de produção para “explicar” o crescimento econômico. Essa função assumia não apenas que cada classe ganhava seu “produto marginal”, mas que suas parcelas de renda eram constantes. Enfim, poderiam criar seus modelos tratando a questão da distribuição de renda como uma questão não problemática. A teoria ficou muito mais fácil.

Blair foi buscar no Google a frequência de utilização de “crescimento econômico” e “distribuição de renda” nas publicações econômicas..

Agora, à medida que a era dos combustíveis fósseis diminui, diz ele, o crescimento econômico se tornará uma relíquia do passado e os economistas serão arrastados de volta ao negócios de estudar como o bolo da renda é dividido.

<><> A divisão do bolo

Aí se entra em um conceito, o da sabotagem estratégica , desenvolvido pelos economistas políticos Jonathan Nitzan e Shimshon Bichler. Trata-se da prática de restringir a capacidade produtiva ou limitar o potencial econômico de uma sociedade para maximizar os lucros e o poder de grupos dominantes, especialmente corporações e elites financeiras. Esse conceito entra na teoria que definir o capital como relação de poder, não como um recurso físico ou produtivo.

Há várias maneiras de exercer esse poder. Os autores dão três exemplos de sabotagem estratégica:

•                                    Indústria Farmacêutica : Restrição ao acesso a medicamentos por meio de patentes ou controle de preços.

•                                    Setor Energético : Redução da produção de petróleo ou gás para criar volatilidade e aumentar lucros.

•                                    Financeirização : Priorizar ganhos especulativos em vez de investimentos em setores produtivos, restringindo o crescimento econômico real.

Voltando a Blair Fix, ele desenvolve o seguinte raciocínio:

1.                                   Crédito gera renda. Ou seja, o tomador recebe o crédito e vai montar seu negócio ou adquirir algum bem, gerando renda.

2.                                   Juros são os royalties pagos pelo uso do crédito. Quanto maior os juros, maior o royaltie sobre um insumo básico.

Há um bordão dos financistas, de que o dinheiro que administram é a poupança do trabalhador. Blair montou um gráfico comparando o percentual de renda do trabalho e de juros dos americanos. O eixo horizontal classifica os americanos pelo percentil de renda; o eixo vertical plota a relação juros-salário. À medida que se chega à crosta superior dos assalariados, a renda de juros explode.

Por isso, qualquer aumento de juros aumenta a concentração da renda e envia mais dinheiro para as pessoas que possuem mais crédito. E as que possuem mais crédito são justamente as que mais ganham.

A conclusão óbvia é que as taxas de juros são uma arma de guerra de classes – não  apenas entre capital e trabalho, mas entre finanças e produção.

Ao contrário do que dizem os economistas neoclássicos, não há forças de mercado neutras, que alocam renda em proporção à produtividade. Há apenas ideias e poder de implementá-las.

 

Fonte: Por Lauro Veiga Filho, no Jornal GGN

 

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