Manuel
Congo e o maior motim de escravos do Vale do Paraíba
Camilo
Sapateiro decidiu ir sem autorização da fazenda Freguesia, onde era
escravizado, para a fazenda Maravilha, na mesma região de Paty do Alferes, no
Rio de Janeiro. Era a noite de 5 de novembro de 1838. O feitor surpreendeu
Camilo e não teve dúvidas: matou-o a tiros.
A
situação foi o estopim de uma revolta entre os demais escravizados da fazenda.
Eles tentaram linchar o feitor. Foram contidos, mas começaram a se organizar
para uma fuga. Para tal, se aproveitaram de uma instabilidade política
regional.
"O
ano de 1838 é sintomático de um momento de fratura dentro da classe senhorial
de Vassouras e Paty do Alferes", comenta o historiador Vitor Hugo Monteiro
Franco, pesquisador da Biblioteca Nacional e integrante do grupo de pesquisa A
Cor da Baixada.
O
dono da fazenda, o capitão-mor Manuel Francisco Xavier, estava no centro de uma
rixa com oligarcas da região. Alguns escravizados, que trabalhavam próximos a
seus senhores, sabiam disso. Eles viviam à espera de um gatilho para uma
revolta, e este gatilho foi o assassinato de Camilo.
O
líder da rebelião foi Manuel Congo, que tinha se tornado um dos homens de
confiança de Xavier. Era ferreiro, uma habilidade muito valorizada entre
escravizados, pois ele podia fazer ferramentas e armas. Descrito como homem
forte e habilidoso, geralmente quieto e sério, ele provavelmente adotou o
prenome português em homenagem ao seu proprietário. Congo, como era costume,
denotava sua nação de origem.
Manuel
Congo era tido como astuto. "Teve conhecimento, na própria África, da
ilegalidade do tráfico internacional de escravos. De alguma forma que os
documentos não aludem, este africano já se relacionava com o universo lusitano
atlântico", comenta a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro
da Rede de Historiadorxs Negrxs e autora de Entre a Escravidão e a Liberdade:
africanos e crioulos nos tempos da Abolição, entre outros livros.
• A fuga
Monteiro
Franco explica que a morte de Camilo Sapateiro criou comoção na senzala.
"Geralmente a gente imagina a escravidão como a ausência de negociação, a
permanente violência", mas o que acontecia no Brasil é que primeiramente
os escravizados tentavam negociar. A escravidão era negociação e conflito. Não
só conflito", aponta.
O
historiador conta que alguns escravizados tentaram argumentar com Xavier que o
feitor havia extrapolado os limites, "cometido uma infração dentro da
lógica senhorial e deveria ser punido". Como o proprietário não acatou a
reclamação, veio a revolta.
Por
volta da meia-noite do dia em que Camilo Sapateiro foi morto, um grupo de cerca
de 80 escravizados arrombou as portas das senzalas da fazenda Freguesia. Eles
invadiram o pátio, chamaram as escravas domésticas que dormiam no sobrado da
casa grande. Também foram aos paióis, onde puderam pegar suprimentos, facões e
uma garrucha (arma de fogo de cano curto).
Esconderam-se,
então, nas matas da fazenda Santa Catarina, que era de outro proprietário. Na
noite seguinte, foram até a fazenda Maravilha, também possessão de Xavier. E lá
expandiram o motim.
Renderam
o feitor e ameaçaram matá-lo — e ele acabou fugindo. Então, abriram as senzalas
e convocaram outros escravizados a se juntarem a eles. Arrombaram todos os
depósitos e levaram comida, ferramentas e armas. Até porcos conseguiram
carregar.
No
caminho, passaram pela fazenda Pau Grande, de outro proprietário, e lá também
libertaram cativos. A essa altura, o grupo já congregava mais de cem
revoltosos.
Quando
a notícia se espalhou por outras fazendas, rebeliões começaram a ocorrer em
série na região. Todos seguiam em direção à Serra da Taquara, o que indica que
havia algum combinado prévio. Calcula-se que cerca de 400 pessoas tenham sido
reunidas. Não houve registro de violência contra os brancos.
• O ferreiro e
o místico
"Era
uma luta contra o sistema da escravidão, que pressupunha um processo de
liberdade para aqueles escravizados da região do Vale do Paraíba. Mas no fim
das contas estava integrado com várias outras ações de fuga desde o período
colonial", analisa o historiador Phillippe Arthur dos Reis, pesquisador na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
"A
insurreição quilombola de Manoel Congo e Marianna Crioula foi a maior revolta
negra do meio rural brasileiro, causando grande repercussão na corte, a ponto
de ter deixado indignados os fazendeiros da província, surpreendidos com o fato
de um bando de escravos maltrapilhos desafiar o modelo econômico e social
pré-estabelecido pelos donos do poder da época", afirma Santos.
Marianna
Crioula era da mesma fazenda. Manuel Congo se juntou a ela e foram aclamados
como rei e rainha da comunidade. "Isso ocorreu nesse processo de formação
do quilombo", pontua Reis.
Para
especialistas, a liderança de Manuel Congo pode ter sido consequência de seu
trabalho como ferreiro. "Na lógica centro-africana, a forja é ligada aos
deuses. Então ser um ferreiro o colocava em conexão com os espíritos
ancestrais, que, para eles, são o que balanceia a vida", explica Monteiro
Franco. "Provavelmente a liderança [de Manuel Congo] vinha desde a
ocupação na fazenda. Não é trivial que o líder da revolta fosse um africano
como ele."
• Captura e
julgamento
No
dia 11 de novembro, 160 homens da Guarda Nacional, sob o comando de Luís Alves
de Lima e Silva (1803-1880), mais tarde Duque de Caxias, se embrenharam na mata
com a missão de recapturar os fugitivos — de preferência, sem matá-los, pois
eram mão de obra importante para seus senhores. Como os escravizados foram
abrindo uma picada na mata fechada, foi fácil rastreá-los: em algumas horas, já
haviam cercado o grupo.
Nem
todos foram recapturados. "Houve repressão, prisão e mortes, mas alguns
desses escravizados conseguiram de fato formar um quilombo", afirma
Monteiro Franco.
"[Este
é] considerado o maior quilombo do Vale do Paraíba. Mas foi uma experiência
efêmera", diz o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade
Federal de Sergipe (UFS). "Cerca de um mês depois, o quilombo foi debelado
pelas forças de repressão."
Dezesseis
dentre os líderes foram levados a julgamento. Todos das fazendas de Xavier.
Foram condenados a 650 chibatadas cada um, 50 por dia. E obrigados a usar um
gonzo de ferro no pescoço por três anos, de acordo com informações trazidas
pelo sociólogo Clovis Moura (1925-2003) em seu Dicionário da Escravidão Negra
no Brasil.
Manuel
Congo, apontado como líder do grupo, foi condenado à forca e executado no dia 4
de setembro de 1839, em praça pública na cidade de Vassouras.
"Vítima,
como milhões de outros africanos na diáspora, desta experiência de
desterritorialização, Manuel Congo foi obrigado a refazer sua vida em
cativeiro, frente ao campo de possibilidades que lhe era possível ter acesso,
tendo de levar em conta, na conformação de sua experiência e projetos, os
limites impostos pelo arranjo social no qual estava inserido", pontua a
historiadora Santos.
"Assim,
acredito que sua luta limita-se à aquisição da liberdade do seu grupo ou, em
última instância, daqueles que como ele eram escravizados ilegalmente por ter
sido traficados após a lei de 1831 [que proibia o tráfico internacional de
escravos]. Nesse sentido, a vivência de Manuel Congo expressa muito sobre a
normalidade da experiência de africanos livres no Brasil", conclui.
Fonte:
DW Brasil
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