Uma arma
na mão, uma mídia na outra: o resultado eleitoral de 2024
As
eleições de 2024 no Brasil chegaram ao fim com um saldo positivo para os
partidos e candidatos conservadores, que garantiram hegemonia em todos os
estados. Por trás desse resultado, há uma soma de fatores, dentre eles, o
controle dos meios de comunicação e o discurso “policialesco” que se prolifera
em programas de rádio e TV, além das redes sociais. A partir do projeto Mídia
Sem Violações de Direitos, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
mapeou candidaturas ligadas a políticos proprietários de mídia, candidatos
oriundos de programas policialescos e candidatos influenciadores com pauta
policial nas capitais e em duas outras cidades de todos os estados do Brasil.
A
pesquisa revela um cenário de violações e racismo estrutural que mantém
oligarquias familiares no poder local e amplia o terreno para o avanço de
pautas conservadoras. Entre elas, as que defendem um modelo de segurança
pública baseado na defesa da violência, no encarceramento em massa e em crimes
cometidos por agentes de segurança. Se, por um lado, o coronelismo e o
clientelismo que predominam nos municípios são heranças da República Velha e da
escravidão, por outro, o crescente discurso policialesco segue reverberando a
pauta bolsonarista, ampliada nos últimos anos.
• Donos da
Mídia
Não
são poucas as cidades brasileiras onde o poder local é disputado por famílias
de pessoas brancas, cujos herdeiros assumem a responsabilidade de manter as
terras, as riquezas e o controle regional acumulado por seus antepassados
escravocratas. São diversos os casos em que oligarquias familiares se revezam
na prefeitura ao longo de décadas. Esse domínio de poder também é perceptível
ao observarmos as propriedades de rádio e TV nos municípios.
Nas
eleições de 2024, ao menos 46 candidaturas, localizadas nas cidades
pesquisadas, eram de proprietários de mídia ou apoiadas diretamente por eles.
Enquanto vinte e seis dos candidatos não conseguiram se eleger, outros vinte
(43,5%) se elegeram, sendo dezesseis prefeitos, três vereadores e um
vice-prefeito. Dentre os eleitos, há dezoito homens e apenas duas mulheres,
sendo 60% autodeclarados brancos, 40% pardos e nenhum negro. O União Brasil foi
o partido que mais elegeu: cinco.
Das
vinte candidaturas eleitas, seis são de donos diretos de mídia. No
Centro-oeste, as prefeituras de Sinop (MT) e Dourados (MS) foram ganhas,
respectivamente, pelo proprietário do Sistema Dorner de Comunicação (SBT
Sinop), Roberto Dorner (PL) e pelo dono da rádio Dinâmica FM, Marçal Filho
(PSDB). No Nordeste, foi reeleito em Maceió (AL) o proprietário da TV e Rádio
Farol de Comunicação, o prefeito JHC (PL). Já em Ilhéus (BA), a prefeitura foi
ganha por Valderico Jr. (União), que controla a rádio Gabriela FM. Além deles,
outros dois vereadores se elegeram: Rodrigo Brasmar (PSDB) em Imperatriz (MA) e
Ramon Fernandes (PT) em Jequié (BA). Rodrigo é dono da Dinâmica FM, enquanto
Ramon comanda a Rádio 93 FM.
A
pesquisa também revela que muitos políticos “donos da mídia” possuem parentes
no quadro societário dos grupos de comunicação – uma prática recorrente,
sobretudo por quem tenta burlar a legislação que impede parlamentares de serem
proprietários de empresas que operam sob concessão pública, como é o caso das
emissoras de rádio e TV. Nessas eleições, por exemplo, as prefeituras de
Eirunepé (AM), Eunápolis (BA), Maracanaú (CE) e Patos (PB) foram vencidas por
candidatos cujos familiares são donos de rádios locais. Já em Belém (PA), foi
eleito Igor Normando (MDB), primo do governador Helder Barbalho, cuja família
controla a TV Band Pará e as rádios Clube do Pará, Carajás FM e SNC.
Também
houve casos em que os donos da mídia não concorreram, mas trabalharam para
eleger seu candidato. Em Boa Vista (RR), Romero Jucá, ex-senador e dono da TV
Imperial (Record) apoiou Arthur Henrique (MDB), que recebeu 75% dos votos. Em
Jequié, o eleito foi Zé Cocá (PP), apoiado pelo deputado Leur Lomanto Jr., dono
da Jequié FM. Já em Petrolina (PE) e Salvador (BA) o controle dos grupos que
transmitem a TV Globo local fica nas mãos das famílias Coelho e Magalhães,
respectivamente. Enquanto a primeira apoiou a eleição de Simão Durando (União),
na capital baiana o herdeiro ACM Neto foi o principal cabo eleitoral do
prefeito reeleito Bruno Reis (União).
Casos
semelhantes também ocorreram em municípios cujo resultado foi decidido no
segundo turno. Em João Pessoa (PB), o vitorioso foi Cícero Lucena (PP), apoiado
pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, cuja irmã é proprietária da Rádio Pop FM. Já
em Natal (RN), Paulinho Freire (União) se elegeu com o apoio do ex-senador
Agripino Maia, dono da TV Tropical (Record). Em Aracaju (SE), a prefeita eleita
Emília Corrêa (PL) é ligada à família Franco, que controla a TV Atalaia
(Record) e a TV Sergipe (Globo). Por fim, em Palmas (TO), Vanderlei Luxemburgo,
que além de ser treinador de futebol é proprietário da TV Jovem (Record),
comemorou a eleição de seu colega de partido Eduardo Siqueira (Podemos).
Algumas
famílias donas de mídia, no entanto, sofreram derrotas significativas. Em
Maceió (AL), o ex-presidente Fernando Collor, que é dono da TV Gazeta de
Alagoas (Globo), viu seu sobrinho homônimo receber apenas quinhentos e sessenta
e nove votos e não se eleger vereador. Algo semelhante ocorreu em São Luís
(MA), onde Karla Sarney (PSD) não foi eleita no município em que a TV Globo
local é comandada por seus familiares. O candidato Josiel Alcolumbre (União),
dono da TV Amazônia (SBT) e irmão do senador Davi Alcolumbre, também amargou a
derrota na disputa para vereador.
• Policialescos
de Rádio e TV
A
influência da mídia na política local e, consequentemente, nas disputas
eleitorais, não se restringe ao controle das emissoras. Diversos comunicadores
também aproveitam a visibilidade nos meios de comunicação para lançar
candidatos. Mas para além de artistas, ex-BBBs e jornalistas, um perfil chama a
atenção: apresentadores de programas policialescos. Com amplo espaço na grade
de programação local, esses programas costumam explorar a violência cotidiana
em busca de audiência, enquanto reafirmam um discurso que legitima e incentiva
o cometimento de crimes por policiais e que sequer questiona a política de
segurança dos estados, mesmo diante do fracasso desse modelo que vigora no país
há décadas.
Os
programas policialescos possuem características recorrentes: exposição de
imagens de cadáveres e operações policiais, humilhação de suspeitos
(majoritariamente negros), assistencialismo “barato” e humor. Tratadas como
entretenimento, a violência e a pobreza conquistam a audiência e ampliam a
visibilidade de apresentadores e repórteres que adotam soluções simplistas para
os problemas sociais, sem espaço para debate, contraditório ou narrativas
divergentes. Além de alimentar diariamente um discurso político conservador e
violador de direitos, esses programas também vêm sendo utilizados como
trampolim eleitoral.
A
pesquisa mapeou cinquenta e seis candidaturas ligadas a programas
policialescos, considerando comunicadores (apresentador, repórter) e, em quatro
casos, candidatos apoiados por eles. Cerca de 80% não conseguiram se eleger e
uma candidatura foi considerada inapta. Ainda que majoritariamente derrotados,
os policialescos ajudaram a puxar votos para seus partidos, enquanto dez
candidatos (18%) conseguiram ser eleitos.
Em
alguns municípios, eles se destacaram, como em Salvador (BA), onde o vereador
mais votado foi Jorge Araújo (PP), que recebeu 36.065 votos. Com passagem pelo
Balanço Geral BA (Record), o repórter atuou em programas policialescos e nos
últimos anos vem comandando quadros com entrevistas de rua sobre questões
cotidianas da cidade – o humor e o absurdo dos baianos já fizeram viralizar
diversos vídeos de Jorge nas redes sociais. Na Câmara, o repórter será colega
de Débora Santana (PDT), vereadora reeleita e esposa de Uziel Bueno,
apresentador do Brasil Urgente Bahia (Band).
Em
Curitiba (PR) e Itabaiana (SE) os campeões de votos para o cargo de vereador
também são comunicadores policialescos. Na capital paranaense, Jasson Goulart
(Republicanos), apresentador do Balanço Geral Curitiba (Record), recebeu 10.789
votos. Com carreira jornalística à frente de diversos programas e emissoras,
Jasson atingiu a terceira maior votação da história de Curitiba. Já na cidade
sergipana, Alex Henrique (União) foi eleito com 3.375 votos. O radialista do
Jornal da Capital (Capital FM) inicialmente teve sua candidatura impugnada por
ter sido condenado à prisão pelo crime de calúnia e até chegou a lançar sua
irmã como candidata. Após reverter sua inelegibilidade, Alex Henrique foi o
vereador mais votado.
Candidatos
apoiados por políticos policialescos também tiveram bons resultados. Em dois
municípios, os comunicadores ajudaram na eleição para prefeito. Em Vitória
(ES), Lorenzo Pazolini (Podemos) foi eleito com o apoio de Amaro Neto, deputado
e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record). Em Nossa Senhora do
Socorro (SE), o ex-deputado Fábio Henrique, que também apresenta o Balanço
Geral (TV Atalaia/Record), ajudou na vitória de Dr. Samuel (Cidadania).
• Agentes de
Segurança
Durante
a pesquisa, também foram identificados candidatos policialescos,
influenciadores e agentes de segurança com participação em programas de rádio e
TV. Das 33 candidaturas com esse perfil, nove foram eleitas (26,6%) ao cargo de
vereador. Com exceção de uma única candidata parda, os demais são todos homens
brancos. O PL e o PP foram os partidos que mais elegeram, com três cada.
Alguns
candidatos alcançaram a visibilidade midiática por meio de participações em
programas de rádio e TV, enquanto estavam à frente de alguma delegacia. É o
caso da Delegada Lia Valechi (União), que concedeu diversas entrevistas durante
o período em que conduzia a Delegacia da Mulher de Uberlândia (MG) e agora se
tornou vereadora da cidade mineira. Outro exemplo vem de Caruaru (PE), com a
eleição do Delegado Lessa (Republicanos).
No
entanto, os candidatos policialescos que mais se destacaram não alcançaram
visibilidade em programas de rádio e TV, mas sim nas redes sociais. Dentre os
influenciadores, há apresentadores de podcasts, donos de canais no YouTube ou
que usam suas redes pessoais para compartilhar conteúdos com uma linguagem
comum aos programas policialescos. Alguns, inclusive, produzem vídeos durante
operações policiais durante o serviço.
Em
algumas cidades os influenciadores policialescos tiveram votação expressiva. Em
Guarulhos (SP), o Delegado Gustavo Mesquita (Republicanos) se tornou o vereador
mais votado da história da cidade, com 18.841 votos. Com 104 mil seguidores no
Instagram e 57 mil no TikTok, Gustavo fez campanha usando um uniforme similar
ao da Polícia Civil e até publicou um vídeo em que aparece armado realizando
uma abordagem, mesmo estando vestido com camisa e boné com seu número de
campanha. À favor da “família” e do “porte de arma para o cidadão de bem” e
contra o “pancadão” e a “linguagem neutra e a ideologia de gênero”, Gustavo é
um exemplo de irregularidades envolvendo uma candidatura que se promove pelo
uso de uma instituição pública, que, por lei, é impedida de se associar a ou
beneficiar candidatos.
Já
na capital paulista, outro influenciador policialesco se destacou: Sargento
Nantes (PP) foi o quarto colocado, com 112.484 votos. Sargento da ROTA, o
influenciador participa frequentemente de podcasts e tem 611 mil seguidores no
Instagram, onde costuma publicar conteúdos com discurso em defesa do
cometimento de crimes por agentes de segurança e violações de direitos.
• “Mídia Sem
Violações de Direito”
Considerando
as candidaturas de “policialescos” e “donos de mídia”, foram 39 eleitos, de
acordo com a pesquisa. Os partidos PP e União se destacam, com sete candidatos
vitoriosos, seguidos de PL (6 eleitos), Republicanos (5), MDB (4), Cidadania,
PDT e PSDB (2 cada), Novo, Podemos, PSD e PT (1 cada). A hegemonia de partidos
de direita ratifica a influência do controle das emissoras de rádio e TV, e do
discurso conservador na disputa eleitoral. A violência como plataforma política
também tem sido uma estratégia vitoriosa para partidos, além de comunicadores e
policiais que buscam entrar na no meio.
De
acordo com a doutora em Ciências da Comunicação Franciani Bernardes, há
indícios de que “o crescimento desenfreado de agentes de segurança
influenciadores é mais uma tendência que ganhou raízes com o bolsonarismo”.
Franciani, que também integra o Intervozes e participou da pesquisa, afirma que
o discurso armamentista do ex-presidente e sua política de morte também vêm
influenciando candidaturas em todo o Brasil e inviabilizando propostas que
refutam a ideia de que a violência institucional é o único caminho possível
para garantir a segurança da população. “Não é de se estranhar que agentes de
segurança pública se lancem em seu marketing eleitoral como personagens saídos
das telas da Marvel ou justiceiros que buscam aniquilar todo o mal social, o
inimigo comum da nação”, destaca a pesquisadora, que também aponta para a
desinformação e o manejo das redes sociais como instrumentos que reforçam esse
legado bolsonarista.
Na
série “Eleições 2024: mídia e violência nas disputas municipais”, produzida a
partir da pesquisa realizada pelo Intervozes, outros fatores também são
apontados para a ascensão desse tipo de candidaturas, como a conivência das
plataformas digitais com conteúdos apelativos e violentos, além da passividade
dos órgãos públicos diante das ilegalidades nas concessões de emissoras de
rádio e TV e da ausência de medidas para coibir violações de direitos cometidos
durante a exibição de programas policialescos.
A
série contou com três artigos, publicados durante o período eleitoral. No
primeiro, identificou-se candidatos comunicadores e agentes de segurança com
visibilidade em programas policialescos. Na sequência, foi discutida a
participação de influenciadores policialescos. Por fim, o terceiro artigo
apresentou 46 candidaturas ligadas a donos de rádio e TV. O resultado eleitoral
de 2024 mostrou que o “coronelismo midiático” segue vigente, com a eleição de
oligarquias proprietárias de mídia, e com a violência servindo de trampolim
político para comunicadores de programas policialescos e influenciadores nas
redes sociais.
##
*Colaboraram
com o artigo Franciani Bernardes e Nataly de Queiroz Lima. Os dados da pesquisa
foram coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do
Intervozes: Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago
Vernek Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel
Baster e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia
Bandeira. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos,
uma iniciativa permanente do Intervozes.
Fonte:
Por Alex Pegna Hercog, no Le Monde
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