quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Uma arma na mão, uma mídia na outra: o resultado eleitoral de 2024

As eleições de 2024 no Brasil chegaram ao fim com um saldo positivo para os partidos e candidatos conservadores, que garantiram hegemonia em todos os estados. Por trás desse resultado, há uma soma de fatores, dentre eles, o controle dos meios de comunicação e o discurso “policialesco” que se prolifera em programas de rádio e TV, além das redes sociais. A partir do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou candidaturas ligadas a políticos proprietários de mídia, candidatos oriundos de programas policialescos e candidatos influenciadores com pauta policial nas capitais e em duas outras cidades de todos os estados do Brasil.

A pesquisa revela um cenário de violações e racismo estrutural que mantém oligarquias familiares no poder local e amplia o terreno para o avanço de pautas conservadoras. Entre elas, as que defendem um modelo de segurança pública baseado na defesa da violência, no encarceramento em massa e em crimes cometidos por agentes de segurança. Se, por um lado, o coronelismo e o clientelismo que predominam nos municípios são heranças da República Velha e da escravidão, por outro, o crescente discurso policialesco segue reverberando a pauta bolsonarista, ampliada nos últimos anos.

•                                    Donos da Mídia

Não são poucas as cidades brasileiras onde o poder local é disputado por famílias de pessoas brancas, cujos herdeiros assumem a responsabilidade de manter as terras, as riquezas e o controle regional acumulado por seus antepassados escravocratas. São diversos os casos em que oligarquias familiares se revezam na prefeitura ao longo de décadas. Esse domínio de poder também é perceptível ao observarmos as propriedades de rádio e TV nos municípios.

Nas eleições de 2024, ao menos 46 candidaturas, localizadas nas cidades pesquisadas, eram de proprietários de mídia ou apoiadas diretamente por eles. Enquanto vinte e seis dos candidatos não conseguiram se eleger, outros vinte (43,5%) se elegeram, sendo dezesseis prefeitos, três vereadores e um vice-prefeito. Dentre os eleitos, há dezoito homens e apenas duas mulheres, sendo 60% autodeclarados brancos, 40% pardos e nenhum negro. O União Brasil foi o partido que mais elegeu: cinco.

Das vinte candidaturas eleitas, seis são de donos diretos de mídia. No Centro-oeste, as prefeituras de Sinop (MT) e Dourados (MS) foram ganhas, respectivamente, pelo proprietário do Sistema Dorner de Comunicação (SBT Sinop), Roberto Dorner (PL) e pelo dono da rádio Dinâmica FM, Marçal Filho (PSDB). No Nordeste, foi reeleito em Maceió (AL) o proprietário da TV e Rádio Farol de Comunicação, o prefeito JHC (PL). Já em Ilhéus (BA), a prefeitura foi ganha por Valderico Jr. (União), que controla a rádio Gabriela FM. Além deles, outros dois vereadores se elegeram: Rodrigo Brasmar (PSDB) em Imperatriz (MA) e Ramon Fernandes (PT) em Jequié (BA). Rodrigo é dono da Dinâmica FM, enquanto Ramon comanda a Rádio 93 FM.

A pesquisa também revela que muitos políticos “donos da mídia” possuem parentes no quadro societário dos grupos de comunicação – uma prática recorrente, sobretudo por quem tenta burlar a legislação que impede parlamentares de serem proprietários de empresas que operam sob concessão pública, como é o caso das emissoras de rádio e TV. Nessas eleições, por exemplo, as prefeituras de Eirunepé (AM), Eunápolis (BA), Maracanaú (CE) e Patos (PB) foram vencidas por candidatos cujos familiares são donos de rádios locais. Já em Belém (PA), foi eleito Igor Normando (MDB), primo do governador Helder Barbalho, cuja família controla a TV Band Pará e as rádios Clube do Pará, Carajás FM e SNC.

Também houve casos em que os donos da mídia não concorreram, mas trabalharam para eleger seu candidato. Em Boa Vista (RR), Romero Jucá, ex-senador e dono da TV Imperial (Record) apoiou Arthur Henrique (MDB), que recebeu 75% dos votos. Em Jequié, o eleito foi Zé Cocá (PP), apoiado pelo deputado Leur Lomanto Jr., dono da Jequié FM. Já em Petrolina (PE) e Salvador (BA) o controle dos grupos que transmitem a TV Globo local fica nas mãos das famílias Coelho e Magalhães, respectivamente. Enquanto a primeira apoiou a eleição de Simão Durando (União), na capital baiana o herdeiro ACM Neto foi o principal cabo eleitoral do prefeito reeleito Bruno Reis (União).

Casos semelhantes também ocorreram em municípios cujo resultado foi decidido no segundo turno. Em João Pessoa (PB), o vitorioso foi Cícero Lucena (PP), apoiado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, cuja irmã é proprietária da Rádio Pop FM. Já em Natal (RN), Paulinho Freire (União) se elegeu com o apoio do ex-senador Agripino Maia, dono da TV Tropical (Record). Em Aracaju (SE), a prefeita eleita Emília Corrêa (PL) é ligada à família Franco, que controla a TV Atalaia (Record) e a TV Sergipe (Globo). Por fim, em Palmas (TO), Vanderlei Luxemburgo, que além de ser treinador de futebol é proprietário da TV Jovem (Record), comemorou a eleição de seu colega de partido Eduardo Siqueira (Podemos).

Algumas famílias donas de mídia, no entanto, sofreram derrotas significativas. Em Maceió (AL), o ex-presidente Fernando Collor, que é dono da TV Gazeta de Alagoas (Globo), viu seu sobrinho homônimo receber apenas quinhentos e sessenta e nove votos e não se eleger vereador. Algo semelhante ocorreu em São Luís (MA), onde Karla Sarney (PSD) não foi eleita no município em que a TV Globo local é comandada por seus familiares. O candidato Josiel Alcolumbre (União), dono da TV Amazônia (SBT) e irmão do senador Davi Alcolumbre, também amargou a derrota na disputa para vereador.

•                                    Policialescos de Rádio e TV

A influência da mídia na política local e, consequentemente, nas disputas eleitorais, não se restringe ao controle das emissoras. Diversos comunicadores também aproveitam a visibilidade nos meios de comunicação para lançar candidatos. Mas para além de artistas, ex-BBBs e jornalistas, um perfil chama a atenção: apresentadores de programas policialescos. Com amplo espaço na grade de programação local, esses programas costumam explorar a violência cotidiana em busca de audiência, enquanto reafirmam um discurso que legitima e incentiva o cometimento de crimes por policiais e que sequer questiona a política de segurança dos estados, mesmo diante do fracasso desse modelo que vigora no país há décadas.

Os programas policialescos possuem características recorrentes: exposição de imagens de cadáveres e operações policiais, humilhação de suspeitos (majoritariamente negros), assistencialismo “barato” e humor. Tratadas como entretenimento, a violência e a pobreza conquistam a audiência e ampliam a visibilidade de apresentadores e repórteres que adotam soluções simplistas para os problemas sociais, sem espaço para debate, contraditório ou narrativas divergentes. Além de alimentar diariamente um discurso político conservador e violador de direitos, esses programas também vêm sendo utilizados como trampolim eleitoral.

A pesquisa mapeou cinquenta e seis candidaturas ligadas a programas policialescos, considerando comunicadores (apresentador, repórter) e, em quatro casos, candidatos apoiados por eles. Cerca de 80% não conseguiram se eleger e uma candidatura foi considerada inapta. Ainda que majoritariamente derrotados, os policialescos ajudaram a puxar votos para seus partidos, enquanto dez candidatos (18%) conseguiram ser eleitos.

Em alguns municípios, eles se destacaram, como em Salvador (BA), onde o vereador mais votado foi Jorge Araújo (PP), que recebeu 36.065 votos. Com passagem pelo Balanço Geral BA (Record), o repórter atuou em programas policialescos e nos últimos anos vem comandando quadros com entrevistas de rua sobre questões cotidianas da cidade – o humor e o absurdo dos baianos já fizeram viralizar diversos vídeos de Jorge nas redes sociais. Na Câmara, o repórter será colega de Débora Santana (PDT), vereadora reeleita e esposa de Uziel Bueno, apresentador do Brasil Urgente Bahia (Band).

Em Curitiba (PR) e Itabaiana (SE) os campeões de votos para o cargo de vereador também são comunicadores policialescos. Na capital paranaense, Jasson Goulart (Republicanos), apresentador do Balanço Geral Curitiba (Record), recebeu 10.789 votos. Com carreira jornalística à frente de diversos programas e emissoras, Jasson atingiu a terceira maior votação da história de Curitiba. Já na cidade sergipana, Alex Henrique (União) foi eleito com 3.375 votos. O radialista do Jornal da Capital (Capital FM) inicialmente teve sua candidatura impugnada por ter sido condenado à prisão pelo crime de calúnia e até chegou a lançar sua irmã como candidata. Após reverter sua inelegibilidade, Alex Henrique foi o vereador mais votado.

Candidatos apoiados por políticos policialescos também tiveram bons resultados. Em dois municípios, os comunicadores ajudaram na eleição para prefeito. Em Vitória (ES), Lorenzo Pazolini (Podemos) foi eleito com o apoio de Amaro Neto, deputado e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record). Em Nossa Senhora do Socorro (SE), o ex-deputado Fábio Henrique, que também apresenta o Balanço Geral (TV Atalaia/Record), ajudou na vitória de Dr. Samuel (Cidadania).

•                                    Agentes de Segurança

Durante a pesquisa, também foram identificados candidatos policialescos, influenciadores e agentes de segurança com participação em programas de rádio e TV. Das 33 candidaturas com esse perfil, nove foram eleitas (26,6%) ao cargo de vereador. Com exceção de uma única candidata parda, os demais são todos homens brancos. O PL e o PP foram os partidos que mais elegeram, com três cada.

Alguns candidatos alcançaram a visibilidade midiática por meio de participações em programas de rádio e TV, enquanto estavam à frente de alguma delegacia. É o caso da Delegada Lia Valechi (União), que concedeu diversas entrevistas durante o período em que conduzia a Delegacia da Mulher de Uberlândia (MG) e agora se tornou vereadora da cidade mineira. Outro exemplo vem de Caruaru (PE), com a eleição do Delegado Lessa (Republicanos).

No entanto, os candidatos policialescos que mais se destacaram não alcançaram visibilidade em programas de rádio e TV, mas sim nas redes sociais. Dentre os influenciadores, há apresentadores de podcasts, donos de canais no YouTube ou que usam suas redes pessoais para compartilhar conteúdos com uma linguagem comum aos programas policialescos. Alguns, inclusive, produzem vídeos durante operações policiais durante o serviço.

Em algumas cidades os influenciadores policialescos tiveram votação expressiva. Em Guarulhos (SP), o Delegado Gustavo Mesquita (Republicanos) se tornou o vereador mais votado da história da cidade, com 18.841 votos. Com 104 mil seguidores no Instagram e 57 mil no TikTok, Gustavo fez campanha usando um uniforme similar ao da Polícia Civil e até publicou um vídeo em que aparece armado realizando uma abordagem, mesmo estando vestido com camisa e boné com seu número de campanha. À favor da “família” e do “porte de arma para o cidadão de bem” e contra o “pancadão” e a “linguagem neutra e a ideologia de gênero”, Gustavo é um exemplo de irregularidades envolvendo uma candidatura que se promove pelo uso de uma instituição pública, que, por lei, é impedida de se associar a ou beneficiar candidatos.

Já na capital paulista, outro influenciador policialesco se destacou: Sargento Nantes (PP) foi o quarto colocado, com 112.484 votos. Sargento da ROTA, o influenciador participa frequentemente de podcasts e tem 611 mil seguidores no Instagram, onde costuma publicar conteúdos com discurso em defesa do cometimento de crimes por agentes de segurança e violações de direitos.

•                                    “Mídia Sem Violações de Direito”

Considerando as candidaturas de “policialescos” e “donos de mídia”, foram 39 eleitos, de acordo com a pesquisa. Os partidos PP e União se destacam, com sete candidatos vitoriosos, seguidos de PL (6 eleitos), Republicanos (5), MDB (4), Cidadania, PDT e PSDB (2 cada), Novo, Podemos, PSD e PT (1 cada). A hegemonia de partidos de direita ratifica a influência do controle das emissoras de rádio e TV, e do discurso conservador na disputa eleitoral. A violência como plataforma política também tem sido uma estratégia vitoriosa para partidos, além de comunicadores e policiais que buscam entrar na no meio.

De acordo com a doutora em Ciências da Comunicação Franciani Bernardes, há indícios de que “o crescimento desenfreado de agentes de segurança influenciadores é mais uma tendência que ganhou raízes com o bolsonarismo”. Franciani, que também integra o Intervozes e participou da pesquisa, afirma que o discurso armamentista do ex-presidente e sua política de morte também vêm influenciando candidaturas em todo o Brasil e inviabilizando propostas que refutam a ideia de que a violência institucional é o único caminho possível para garantir a segurança da população. “Não é de se estranhar que agentes de segurança pública se lancem em seu marketing eleitoral como personagens saídos das telas da Marvel ou justiceiros que buscam aniquilar todo o mal social, o inimigo comum da nação”, destaca a pesquisadora, que também aponta para a desinformação e o manejo das redes sociais como instrumentos que reforçam esse legado bolsonarista.

Na série “Eleições 2024: mídia e violência nas disputas municipais”, produzida a partir da pesquisa realizada pelo Intervozes, outros fatores também são apontados para a ascensão desse tipo de candidaturas, como a conivência das plataformas digitais com conteúdos apelativos e violentos, além da passividade dos órgãos públicos diante das ilegalidades nas concessões de emissoras de rádio e TV e da ausência de medidas para coibir violações de direitos cometidos durante a exibição de programas policialescos.

A série contou com três artigos, publicados durante o período eleitoral. No primeiro, identificou-se candidatos comunicadores e agentes de segurança com visibilidade em programas policialescos. Na sequência, foi discutida a participação de influenciadores policialescos. Por fim, o terceiro artigo apresentou 46 candidaturas ligadas a donos de rádio e TV. O resultado eleitoral de 2024 mostrou que o “coronelismo midiático” segue vigente, com a eleição de oligarquias proprietárias de mídia, e com a violência servindo de trampolim político para comunicadores de programas policialescos e influenciadores nas redes sociais.

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*Colaboraram com o artigo Franciani Bernardes e Nataly de Queiroz Lima. Os dados da pesquisa foram coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do Intervozes: Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago Vernek Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel Baster e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia Bandeira. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do Intervozes.

 

Fonte: Por Alex Pegna Hercog, no Le Monde       

 

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