Entre o
agro e a fome: Conheça o novo vocabulário dos Guarani-Kaiowá ilhados pela soja
Todo dia de aula, cerca de 70 crianças Guarani-Kaiowá têm de
caminhar 40 minutos para estudar e também para se alimentar. Na Escola
Municipal Che Ru Apyka Rendy, localizada no território Guaiviry, na cidade de
Aral Moreira no Mato Grosso do Sul, elas recebem a única refeição do dia.
Quando há comida o suficiente, as cozinheiras preparam um pouco a mais, e as
crianças podem levar para casa um punhado de arroz e feijão, muitas vezes em
uma sacola de mercado. Caso contrário, só voltarão a comer no dia seguinte.
A escola também enfrenta uma grave infestação de ratos, que roem
os pacotes de alimentos armazenados no velho armário da cozinha. O pouco que
sobra é o que vai para a panela todos os dias. “Infelizmente, não há o que
fazer, é a comida que temos”, lamenta Dionara Gomes, agente de saúde Kaiowá.
Ela conta ainda que, quando há atraso na entrega dos alimentos, os alunos são
liberados mais cedo. “Nossa expectativa é que eles encontrem algo [para comer]
em casa.”
Antônio Benites, professor indígena, frisa que as crianças são
totalmente dependentes da merenda. “Para se ter uma ideia, os alunos voltam das
férias mais magros e desanimados, porque em casa não têm a mesma alimentação
que conseguem na escola. A insegurança alimentar é evidente”, diz.
“A gente não tem acesso à natureza, por exemplo, com a caça, a
pesca, né? Porque aqui em volta é tudo soja. Então, a gente vai procurar
[comida] onde? O rio que passa ali é poluído pelo agrotóxico. E as crianças
também acabam consumindo essa água.”
A fome que afeta as crianças da escola Che Ru Apyka Rendy
reflete a dura realidade das 120 famílias de Guaiviry, uma comunidade que vive
em uma terra reocupada pelos indígenas e ainda sem demarcação. Retomadas como
esta acontecem por iniciativa dos próprios povos originários, quando há
morosidade do estado na regularização da terra.
Apesar de possuírem pequenas áreas de plantio, os Guarani-Kaiowá
são afetados pela contaminação de agrotóxicos provenientes das monoculturas de
soja e milho que cercam o local. Com isso, suas roças são prejudicadas. E a
fome é um mal que persiste.
A retomada Guaiviry apresenta uma situação alarmante em termos
de segurança alimentar, segundo um levantamento da Fian Brasil. Praticamente
todas as famílias (95%) do local vivem ameaçadas pela fome, com maior ou menor
grau de insegurança alimentar e nutricional, sendo que 9% delas vivem sob o que
é considerado insegurança alimentar grave, ou seja, quando a quantidade de
alimentos é insuficiente e adultos e crianças passam fome.
A fome que assombra as crianças de Guaiviry quando falta
alimentos na escola pode não ser aplacada em casa, se houver falhas na entrega
de cesta básicas pelo governo federal, que fornece apenas uma cesta por
família, independentemente do número de pessoas na residência – situação que
também pode culminar na falta de comida.
• Salas
improvisadas e negligência do estado
Além da fome, as crianças sofrem com as instalações precárias da
escola. Praticamente tudo está danificado ou quebrado: cadeiras, mesas,
armários e até o fogão. A quantidade de pratos é insuficiente, obrigando os
alunos a revezarem para comer.
“As mesas estão todas rachadas e oferecem risco para as crianças
pequenas. As cadeiras são antigas e desconfortáveis. Quando faz calor, não há
ventiladores e as salas ficam extremamente quentes. No frio, muitas crianças
não têm roupas adequadas e mal conseguem suportar duas horas na sala de aula.
Somos obrigados a dispensá-las com um trabalho pra fazer em casa”, relata
Gomes.
Guaiviry, localizada próxima à fronteira com o Paraguai,
enfrentou temperaturas extremas este ano, com picos de calor atingindo 40°C e
quedas bruscas chegando a 5°C.
Benites afirma que a precariedade da escola, a infestação de
ratos, o frio ou calor excessivos e a fome afetam diretamente o aprendizado das
crianças: “As aulas ocorrem em salas improvisadas, como a casa de reza, que
está em péssimas condições e se torna inoperante em dias de chuva”, explica.
“Essa infraestrutura precária da escola e a insegurança
alimentar refletem a negligência do Estado, que mesmo ciente da situação, pouco
faz para mudar a realidade”, critica o professor.
A comunidade já enviou documentos à Secretaria de Educação do
município solicitando melhorias, mas não recebeu respostas. O Intercept Brasil
entrou em contato com a Prefeitura e a Secretaria Municipal de Educação de Aral
Moreira, questionando as condições da infraestrutura da escola e a falta de
alimentos.
No entanto, não recebeu resposta. A secretária de Educação do
município, Vanir Linares, também foi contatada, mas tampouco respondeu.
• Sem
demarcação, com fome
A pesquisa da Fian Brasil mapeou ainda a insegurança alimentar
de outras quatro retomadas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul: Kurusu Ambá,
na cidade de Coronel Sapucaia; Ypo’i, em Paranhos; Apyka’i, em Dourados e Ñande
Ru Marangatu, em Antônio João.
E revelou que a insegurança alimentar em todas elas está
diretamente ligada à falta de acesso a terras tradicionais, o que impede a
produção de alimentos de maneira sustentável e adequada às práticas culturais
da etnia.
Com pouca terra para produzirem, contaminação por agrotóxicos e
muitas vezes sem água para beber, cozinhar e também para a irrigação, a
produção agrícola tradicional é prejudicada, bem como a alimentação dessas
comunidades, especialmente das crianças, como o Intercept já mostrou em outras
reportagens sobre a violência e a fome que castiga os Guarani-Kaiowá.
“A insegurança alimentar é consequência de um desmonte na
estrutura, no território e na história dos Kaiowá e Guarani, agravado
especialmente após a Guerra do Paraguai, quando reservas foram criadas para
liberar terras para o agronegócio. Os indígenas foram confinados em territórios
minúsculos, sem água e nem mata para caçar, levando a problemas que perduram
até hoje”, explica a doutora em Saúde Coletiva e professora da Universidade
Federal da Grande Dourados, Verônica Gronau Luz.
Um desses problemas é o consumo de ultraprocessados – produtos
industriais como salgadinhos, bolachas, macarrão instantâneo, biscoito
recheado, que não são considerados alimentos pelo Guia Alimentar para a
População Brasileira.
“A falta de roças e da alimentação tradicional faz com que se
busque ultraprocessados, refletindo essa transição nutricional, em que se passa
da desnutrição para o excesso de peso”, aponta a pesquisadora.
Com os ultraprocessados, vêm também doenças. Em Caarapó, por
exemplo, palavras como salgadinho, refrigerante, diabetes, hipertensão, cálculo
renal e AVC estão sendo introduzidas no vocabulário da etnia.
• Cestas
básicas e jogo de empurra
Outra questão gerada por esse estrangulamento das terras e
culturas Guarani e Kaiowá é que muitas comunidades se tornaram dependentes das
cestas básicas, que não suprem as necessidades nutricionais específicas dos
indígenas.
Para Nayara Côrtes Rocha, secretária geral da Fian Brasil, elas
são uma medida paliativa que não resolve o problema da fome. “A cesta básica é
uma política controversa porque é assistencialista; ela não dá conta do direito
à alimentação.”
Rocha defende que a solução deveria começar com a demarcação de
terras. “Dessa maneira, as dificuldades de acessar políticas públicas seriam
menores. Os indígenas teriam paz para produzir e viver a partir dos seus modos
de vida, recuperando áreas degradadas pelo agronegócio”, destaca.
Ela enfatiza que, sem a demarcação, a insegurança alimentar e a
violação do direito à alimentação persistem, comprometendo não só a saúde
física, mas também a cultura e a identidade dos Guarani-Kaiowá.
“Porém, hoje, é a cesta básica que garante que esses indígenas
tenham alimento”, reconhece Rocha. O fornecimento dessas cestas, no entanto,
resvala em um jogo de empurra entre as autoridades.
A divisão de responsabilidades deveria se dar da seguinte
maneira: o estado do Mato Grosso do Sul é responsável pelas cestas entregues às
famílias que vivem em terras indígenas regularizadas, enquanto a União faz as
entregas (por meio da Conab) em áreas de retomadas. Por fim, é de competência
da Funai acompanhar essa logística.
Na prática, porém, a realidade é outra. O Ministério Público
Federal e a Defensoria Pública da União moveram uma ação civil pública contra a
União e o Estado de Mato Grosso do Sul, denunciando a grave situação de
insegurança alimentar nas comunidades indígenas da região e buscando obrigar
ambos a garantir o fornecimento contínuo de cestas para os indígenas do estado,
tanto em áreas regularizadas quanto não regularizadas – solicitação acatada
pela justiça em 2023.
No entanto, ambos recorreram. O governo estadual argumentou que
sua responsabilidade pela entrega das cestas básicas é complementar e que a
obrigação principal de garantir a segurança alimentar dos indígenas seria da
União.
Esta, por outro lado, alegou que o fornecimento de cestas deve
ocorrer em colaboração com o Estado e que seu papel, especialmente em áreas não
regularizadas, é complementar à responsabilidade estadual.
O juiz Dalton Igor Kita Conrado rejeitou os recursos de ambos os
réus, afirmando que tanto o estado quanto a União são responsáveis pelo
fornecimento regular e ininterrupto das cestas.
Na sentença, a União foi condenada a garantir o fornecimento das
cestas às famílias nas áreas de retomada. Ficou determinado ainda que o governo
estadual atualizasse o cadastro dos povos indígenas a cada cinco anos e,
posteriormente, realizasse a entrega mensal de cestas básicas a todas as
famílias que atendessem aos requisitos da legislação estadual.
No entanto, uma fonte ouvida pela reportagem sob condição de
anonimato afirmou que essa atualização do cadastro não está sendo realizada de
maneira correta, inclusive retirando o direito de algumas famílias indígenas.
De acordo com a Defensoria, há desafios na implementação da
ordem judicial, sendo um dos principais problemas a interpretação de “núcleo
familiar” para a distribuição das cestas básicas. “Nas áreas urbanas, várias
famílias indígenas frequentemente compartilham o mesmo endereço, configurando
residências multifamiliares. Órgãos como o Tribunal de Contas da União e a
Controladoria-Geral da União tendem a interpretar múltiplas entregas no mesmo
endereço como duplicidade, gerando cortes injustos no fornecimento”, afirmou,
em nota, a Defensoria.
Outro obstáculo apontado pela Defensoria envolve o Cadastro
Único do governo federal, utilizado para definir elegibilidade a benefícios. Em
residências multifamiliares, o CadÚnico considera todos os moradores como uma
única unidade familiar, somando as rendas e, com isso, ultrapassando o limite
permitido para acesso ao benefício estadual. Isso faz com que muitas famílias
tenham de compartilhar uma única cesta básica fornecida pela União.
Atualmente, de acordo com a secretaria estadual de Assistência
Social e dos Direitos Humanos, o governo do Mato Grosso do Sul, entrega quase
20 mil cestas básicas à população indígena todo mês. Já a Companhia Nacional de
Abastecimento afirmou que são entregues, mensalmente, 5.747 cestas a indígenas
do estado – destas, 120 vão para as famílias da retomada Guaiviry.
O Ministério dos Povos Indígenas informou apenas que acompanha a
situação por meio do Gabinete de Crise Guarani Kaiowá, porém sem detalhar que
ações está tomando ou pretende tomar, sugerindo ainda que a reportagem deveria
procurar a Funai para tratar da distribuição das cestas e da insegurança
alimentar. Questionada tanto sobre essa questão como sobre a precariedade na
escola, a Funai não se pronunciou.
• Professor
tenta introduzir cultivo de frutas e hortaliças
Mesmo com desafios como solos degradados e a falta de políticas
públicas adequadas, a pesquisa da Fian aponta que cerca de 66% das famílias nas
retomadas indígenas possuem roças, o que abre caminho para uma dieta mais rica
em alimentos tradicionais, como mandioca, milho e frutas nativas, com menos
ultraprocessados e menor dependência de cestas básicas.
Na Terra Indígena Caarapó, que fica a cerca de duas horas de
Aral Moreira, o professor Nilton Ferreira Lima é um dos indígenas que têm
atuado para mudar a realidade da insegurança alimentar e o consumo de
ultraprocessados. Ele atua na Escola Municipal Indígena Nãndejara Polo, na
aldeia Te’yiku, onde seu papel é introduzir crianças e adolescentes ao cultivo
de plantas, frutas e hortaliças, incentivando uma alimentação mais saudável e
ensinando práticas tradicionais, como técnicas de plantio específicas e conhecimentos
sobre plantas medicinais.
“A escola assumiu a responsabilidade de conscientizar a
comunidade, envolvendo alunos e suas famílias nesse processo. Criamos um espaço
experimental para mostrar que é possível cultivar hortaliças como cebola e
alho, que antes não faziam parte da produção local das famílias, por exemplo.”
O projeto também discute os riscos à saúde ao se consumir
produtos ultraprocessados. “Preparo minhas aulas da forma mais simples possível
para que eles entendam, mesmo quando algumas coisas não têm tradução.
Explicamos o que acontece com o corpo quando consumimos muito sal. Falamos dos
alimentos industrializados, relacionando com a realidade deles, como a
necessidade de pegar insulina ou remédio para pressão alta [nos órgãos de
saúde]”, explica.
Este ano, o projeto enfrenta um desafio a mais: a mudança do
clima. O córrego que corta uma das áreas de plantio secou completamente,
situação que nunca havia ocorrido antes. Diante da falta de água e do calor
extremo, parte da produção atrasou ou não vingou. Mas o empenho permanece e, em
Nilton, a esperança cresce como as sementes que ele entrega às famílias.
“Visitar uma família e ver lá um canteirinho de cebolinha, salsa… É aí que dou
conta de que a mudança começa devagar, mas está acontecendo”, celebra o
professor.
Fonte: Por Leandro Barbosa, em The Intercept
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