quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Política de drogas e luta de classes no Brasil

A “guerra às drogas” é um fracasso. Essa frase tem sido ouvida cada vez com mais frequência por críticos das políticas de drogas. O suposto “fracasso” estaria comprovado pela incapacidade desta “guerra” de entregar aquilo que promete: um “mundo sem drogas”. De fato, desde 1971, quando foi declarada nos EUA pelo governo conservador de Richard Nixon, a “war on drugs” vem seguindo um mesmo e repetitivo padrão: identifica algumas drogas como “problemas” de segurança pública e ameaças à saúde coletiva e individual, criminaliza usuários e as pessoas que lidam com essas substâncias, mobiliza forças policiais militarizadas para combater esse mercado ilegal e, no plano internacional, pressiona, chantageia e financia para que as forças armadas de países do Sul Global tornem-se esquadrões antinarcotráfico.

Seguindo tais premissas, a “guerra às drogas” globalizou-se, tornando-se um modelo planetário celebrado em tratados internacionais e adaptado aos mais diversos sistemas jurídico-políticos. Qual modelo legal é acolhido e reproduzido, nas mesmas bases, em países tão diferentes quanto o Irã, os EUA, o Brasil, a Índia e a França? Apenas o regime de controle de drogas conta com tal acolhida.

É possível afirmar que existe uma hegemonia da “guerra às drogas” em sentido gramsciano, ou seja, uma aceitação da proibição repressiva de drogas – o proibicionismo – que vai dos países mais pobres e periféricos até as potências centrais da ordem mundial. Não se trata de mera imposição das potências capitalistas sobre os países periféricos ou das elites nacionais sobre as suas sociedades civis. A situação é mais complexa porque o proibicionismo produz muitos ganhos políticos, (geo)estratégicos e econômicos. Desse modo, apesar do alegado “fracasso” e das pressões diplomático-militares e econômicas dos países do Norte Global, há uma sólida e difundida adesão à “guerra contra as drogas”. Apesar de não atingir o seu objetivo, o proibicionismo tornou-se o padrão mundial para o controle e repressão às drogas. Como entender essa aparente contradição? Cegueira ideológica? Sofisticada conspiração? Incompetência governamental?

Nenhuma dessas opções. A “guerra às drogas” se atualiza, se adapta e se reposiciona década após década porque é um fracasso exitoso. Em outras palavras, ela é bem-sucedida na medida em que fracassa, é reconduzida, fracassa outra vez e é reaplicada novamente seguindo os mesmos pilares. A “guerra às drogas” não é tola. Ao contrário, ela obedece a uma racionalidade econômica e política fortemente inserida na lógica da expansão e da acumulação do capital, sendo uma operadora fundamental da gestão das contradições socioeconômicas produzidas incessante e crescentemente pelo capitalismo global. 

Nos limites deste pequeno texto, o foco será sobre o potencial político-estratégico das políticas repressivas sobre drogas, entendendo tal potencial como a capacidade para controlar, gerir e disciplinar camadas majoritárias das sociedades capitalistas sob a justificativa de combater o narcotráfico. De todos os casos possíveis, darei atenção ao brasileiro.

•                                    Segurança do capital, gestão da miséria

É importante dizer com todas as letras: a “guerra às drogas” não é travada contra “as drogas”, mas contra pessoas. E não qualquer pessoa. Pode soar óbvio, mas não é. Ao ser colocada como uma campanha contra substâncias alteradoras de funções metabólicas e cerebrais, o discurso dessa “guerra” invisibiliza um fato elementar: compostos químicos inanimados não são figuras ameaçadoras reais, mas sim determinadas categorias de pessoas associadas a eles. Essas pessoas são as mais marginalizadas, racializadas, com baixa capacitação formal e que estão na base da pirâmide socioeconômica de cada país onde prevalece a “guerra às drogas”.

No Brasil, isso significa que o proibicionismo está voltado ao aprisionamento, assédio, assassinato e violências físicas e psicológicas mais variadas contra as populações negras, pobres, periféricas, faveladas e precarizadas. Pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) pôde, pela primeira vez, identificar com maior precisão o perfil das pessoas encarceradas no Brasil. Dos/as estimados/as 832.295 presos/as em 2022, 87% eram homens, 72% jovens com menos de 29 anos de idade, 67% negros e 75% com baixa escolaridade. Destes, 1 em cada 3 cumpria pena por crimes de tráfico de drogas ou de associação para tráfico, ambos previstos na Lei sobre Drogas (Lei 13.343 de 2006). Entre as mulheres, apesar de serem minoria no sistema penitenciário, a estimativa é de que 65% tenham sido condenadas por violar a Lei de Drogas.

Essa lei é a responsável direta pelo aumento da população prisional no Brasil. Em 2007, primeiro ano da sua aplicação, o número de presos no país girava em torno de 400.000 pessoas. Hoje, batendo a cifra de quase 1 milhão de pessoas presas, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking das maiores populações prisionais do mundo, atrás dos EUA e da China.

O trabalho de gestão violenta da miséria produzida pelo próprio sistema capitalista se completa fora dos muros da prisão. As táticas para tanto são a morte violenta, o constrangimento cotidiano, a interdição de ir e vir, a extorsão e a distribuição parcimoniosa de assistência e serviços. Essas atividades são realizadas tanto pelas forças de segurança do Estado – polícias e, eventualmente, as Forças Armadas – quanto por milicianos e traficantes.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 indicam que a média nacional de mortes violentas intencionais de 2023 é de 22,8 pessoas assassinadas a cada 100.000 habitantes. Em estados do Norte e Nordeste a relação é ainda maior. São exemplos de destaque o Amapá (69,9/100.000 habitantes), a Bahia (46,5/100.000), Pernambuco (40,2/100.000), Amazonas (35,6/100.000) e Alagoas (38,5/100.000). Como parâmetro, vale mencionar que a Organização Mundial da Saúde considera que a relação de 10 mortes violentas intencionais a cada 100.000 é o máximo que pode suportar uma sociedade estável.

As regiões brasileiras citadas acima têm sido palco, desde a segunda metade da década de 2010, de dura disputa entre facções locais do narcotráfico aliadas às maiores organizações do crime organizado brasileiro – os sudestinos Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC). Como procuro explicar no meu recente livro Drogas e capitalismo: uma crítica marxista (Autografia, 2024), quando a repressão ao tráfico de drogas se intensifica em um país ou região, as atividades ilegais tendem a se deslocar, buscando novas áreas para a produção de substâncias ilegais e novas rotas de escoamento para os principais mercados consumidores. Trata-se do chamado “efeito balão” e é o que tem acontecido no Brasil atual.

Após três décadas de combate cerrado aos grupos narcotraficantes colombianos – maiores responsáveis pela produção mundial de cocaína – as rotas amazônicas no Brasil foram aquecidas como via de acesso ao mercado europeu. Em períodos de expansão de rotas e mercados, a disputa entre organizações locais e grandes distribuidores internacionais costuma ser violenta, até que se estabeleça algum controle de territórios e um equilíbrio de forças entre grupos armados ilegais (GAI) e deles com as forças de segurança estatais.

Ao mesmo tempo, os estados de origem do PCC e do CV registram altos níveis de letalidade policial. Dados do Ministério Público paulista registram que o número de pessoas mortas em confrontos com policiais militares subiu 71% entre 2023 e 2024, alcançando a cifra de 344 pessoas assassinadas. Em 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 871 pessoas foram mortas em operações conduzidas por policiais militares. Apenas como comparação, o projeto Mapping Police Violence dos EUA indica que, em 2024, todas as polícias juntas do país assassinaram 1.122 pessoas. No Brasil, em 2023, foram 46.328 mortes em confrontos com as PM estaduais.

Ainda no Brasil, dados analisados pelo Grupo de Estudos sobre os Novos Ilegalismos da UFF (GENI/UFF), em cooperação com o Instituto Fogo Cruzado, apresentam um crescimento das chamadas “chacinas policiais” (ocorrências com três ou mais mortes provocadas pelos agentes públicos) e das “mega chacinas policiais” (com mais de oito mortos). Das 341 chacinas notificadas entre 2017 e 2022 no estado do Rio de Janeiro, 252 aconteceram em operações policiais. Nelas estão 1024 das 1342 pessoas mortas em chacinas naquele período.

Por fim, em 2022, 80,4% das chacinas no RJ foram cometidas durante operações policiais. Complementando esse dado, sabemos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública que, em 2023, 82,7% dos negros vítimas de mortes intencionais violentas no Brasil perderam a vida em confrontos com a PM. Nos EUA, o mesmo Mapping Police Violence anota que, em 2024, pessoas negras têm 2,9 vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que pessoas brancas. A conclusão não pode ser outra: o sistema punitivo brasileiro – assim como o estadunidense – é racista e classista, com um forte viés de gênero e de faixa etária; e as forças de segurança são instrumentos violentos de controle social que complementam a ação de controle e de gestão dos corpos negros e pobres realizado pelo sistema carcerário.

•                                    Considerações finais

A principal motivação pública para a realização de operações policiais em territórios marginalizados e racializados no Brasil é o chamado “combate ao crime organizado”, quer seja realizado por facções locais de menor expressão, quer seja por grupos armados ilegais com maiores recursos financeiros, capacidade de exercer a violência e de influenciar as instituições do Estado. Não cabe aqui um debate – necessário, mas complexo – sobre a pertinência ou não de classificar como “crime organizado” GAI tão distintos quanto o PCC, uma milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro ou a Família do Norte amazônica.

Interessa, todavia, destacar que há muitas décadas, a justificativa de governos à esquerda ou à direita para lidar com os problemas de segurança pública no Brasil passa pelo argumento de que grupos criminosos são a maior “ameaça” à ordem devendo, por isso, ser combatidos com todo o rigor e força do Estado. Propostas afinadas ao chamado “populismo punitivo” – como rebaixamento da idade penal, aumento das penas, construção de novos e mais seguros presídios, defesa da violência policial etc. – são amplamente aceitas em todas as classes sociais. Sociedades como o Brasil, formadas por séculos de racismo, desigualdade social, escravidão e moralidade judaico-cristã, aceitam e acreditam – ou mesmo, clamam – que a solução para a insegurança trazida pela precarização da vida, pelo aumento da insegurança climática e alimentar, pela perda de direitos e pela voracidade da economia neoliberal podem ser “solucionadas” com mais polícia, mais presídios e punição generalizada.

As políticas de segurança pública no capitalismo são instrumentos de controle social da miséria e da desigualdade produzidas ininterrupta e aceleradamente pelo capitalismo. Sob a máscara de assegurar a segurança de todos, o Estado a serviço do capital e das suas elites organiza um sistema de repressão seletiva sobre os mais pobres e marginalizados que compõem um contingente populacional cada vez maior. Concentrados nos grandes centros urbanos, expulsos do campo pelo agronegócio e pela exploração dos recursos naturais, esse contingente de miseráveis ou de quase miseráveis luta para sobreviver de forma desorganizada e, muitas vezes, violenta. Os grupos armados que lidam com drogas ilegais no Brasil têm uma relação complexa e, frequentemente, ambígua com o Estado, suas instituições e as forças de segurança. Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, os GAI têm expressivo controle territorial e sobre a população. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, em 2023, 18% da área habitada e 38,8% da população (majoritariamente, a marginalizada) estavam sob o controle de algum grupo armado. O Comando Vermelho (CV) controlava 51,9% dos territórios, as milícias 38,9%, o Terceiro Comando Puro (TCP) 7,7% e a Amigo dos Amigos (ADA) 0,8%.

Nesses territórios, os GAI estabelecem formas de relacionamento econômico com agentes de segurança do Estado (ou seus membros são simultaneamente parte de forças policiais ou militares e de grupos ilegais). As vidas econômicas legal e ilegal dos bairros, favelas e periferias sob o controle desses grupos estão vinculadas de forma indissociável, fazendo circular dinheiro e garantindo renda direta e indireta à população mais pobre, ainda que com ganhos limitados e sob grande risco pessoal. Os estudos críticos contemporâneos sobre a chamada “governança criminal” – as formas pelas quais grupos ilegais governam populações e atividades socioeconômicas em seus territórios – nos fazem reparar nas formas violentas pelas quais as populações marginalizadas são governadas. Tal análise reposiciona uma perspectiva de interpretação mais tradicional que destacava as ações assistencialistas de grupos armados ilegais. Fica em evidência atualmente que os grupos armados ilegais praticam tanto ações pontuais de assistencialismo quanto uma constante prática repressiva para disciplinar as populações das áreas que controlam. Realizam, portanto, formas de governo análogas ao Estado.

Em resumo, cidades como o Rio de Janeiro não sofrem de “ausência de governo”, mas de excesso de governo em suas formas mais violentas e disciplinarizadoras, realizado pelo Estado e por GAI de diversas naturezas. O tecido urbano passou a ser esquadrinhado, como uma colcha de retalhos, por vários espaços de governo legal e ilegal, havendo complementaridades e sobreposições. Um/a carioca que more, por exemplo, em Campo Grande (Zona Oeste) e trabalhe no Centro passa, ao longo do dia, por várias “soberanias”: milícias, TCP, CV e o estado do Rio de Janeiro. Fica sujeito/a às violências, extorsões e vexações de todas elas.

Assim, mesmo que o tráfico de drogas seja, hoje em dia, apenas uma das múltiplas atividades ilegais praticadas por “facções” e milícias – ao lado de outras como a cobrança por segurança, serviços de internet, TV por assinatura e gás de cozinha – a justificativa de combater o “crime organizado” segue tendo na figura do narcotraficante o seu estereótipo fundamental. Isso acontece porque, no senso comum, as “drogas” são vistas como venenos que matam, alienam e corrompem, sendo um mal que precisa ser extirpado em nome da saúde individual e coletiva, da segurança pública e da moralidade geral.

As drogas são estigmatizadas, não obstante, apenas quando associadas às populações racializadas e historicamente marginalizadas, exploradas e oprimidas. Mesmo drogas ilegais, como a cocaína e a heroína, quando utilizadas por pessoas brancas, de classe média ou da elite, não costumam ser entendidas pela opinião pública, pela polícia ou pelo sistema judiciário como “problemas”. No Brasil, isso vale também para a maconha, mesmo antes de que ela passasse pelo recente processo de descriminalização do usuário. No Brasil, maconha fumada por branco é Cannabis (terapêutica ou recreativa); maconha consumida por negro/a continua sendo a “erva do diabo” abominada pelos médicos racistas e higienistas do começo do século XX. As drogas psicoativas psiquiátricas, então, sequer são passíveis de juízo de valor: são entendidas como “remédios”, mesmo que tão ou mais aditivas e prejudiciais à saúde física e mental do que algumas drogas ilegais e outras legais recreativas, como o álcool e o tabaco.

A lógica da segurança pública no Brasil tem sido a da guerra, sem metáforas. O Estado mobiliza polícias militarizadas e, cada vez mais, as Forças Armadas, para agir sobre o povo empobrecido e explorado do capitalismo nacional. Como toda guerra, o investimento de recursos e a tolerância quanto à violência precisa de uma justificativa aceitável para a maioria. No nosso caso, a justificativa é o combate ao “crime organizado do narcotráfico”. Como os problemas que geram as legiões de miseráveis não deixam de existir – porque o show do capitalismo não pode parar – as políticas repressivas não “funcionam” para conter o mercado de drogas ou a violência criminal. Ao contrário, a aplicação de uma lógica militarizada e repressiva apenas promove a sofisticação e o fortalecimento dos grupos armados ilegais e a co-dependência entre economia legal e ilegal. Funcionam, todavia, como argumento para acionar um potente dispositivo repressivo de controle social sob o capitalismo.

Assim, do ponto de vista do controle político das contradições e tensões sociais geradas pelo capitalismo, a “guerra às drogas” é um grande sucesso. Apoiada pela maioria, incluindo os mais pobres, a segurança pública é conduzida como guerra seletiva contra os mais vulneráveis em nome da proteção de todos. Quem fica protegido, no entanto, seguem sendo o capital e a propriedade privada em contextos de crescente e violenta desigualdade e exploração da maioria racializada, pobre e marginalizada.

 

Fonte: Por Thiago Rodrigues Blog da Boitempo

 

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