Política
de drogas e luta de classes no Brasil
A “guerra às drogas” é um fracasso. Essa frase tem sido ouvida
cada vez com mais frequência por críticos das políticas de drogas. O suposto
“fracasso” estaria comprovado pela incapacidade desta “guerra” de entregar
aquilo que promete: um “mundo sem drogas”. De fato, desde 1971, quando foi
declarada nos EUA pelo governo conservador de Richard Nixon, a “war on drugs”
vem seguindo um mesmo e repetitivo padrão: identifica algumas drogas como
“problemas” de segurança pública e ameaças à saúde coletiva e individual,
criminaliza usuários e as pessoas que lidam com essas substâncias, mobiliza
forças policiais militarizadas para combater esse mercado ilegal e, no plano
internacional, pressiona, chantageia e financia para que as forças armadas de
países do Sul Global tornem-se esquadrões antinarcotráfico.
Seguindo tais premissas, a “guerra às drogas” globalizou-se,
tornando-se um modelo planetário celebrado em tratados internacionais e
adaptado aos mais diversos sistemas jurídico-políticos. Qual modelo legal é
acolhido e reproduzido, nas mesmas bases, em países tão diferentes quanto o
Irã, os EUA, o Brasil, a Índia e a França? Apenas o regime de controle de
drogas conta com tal acolhida.
É possível afirmar que existe uma hegemonia da “guerra às
drogas” em sentido gramsciano, ou seja, uma aceitação da proibição repressiva
de drogas – o proibicionismo – que vai dos países mais pobres e periféricos até
as potências centrais da ordem mundial. Não se trata de mera imposição das
potências capitalistas sobre os países periféricos ou das elites nacionais
sobre as suas sociedades civis. A situação é mais complexa porque o
proibicionismo produz muitos ganhos políticos, (geo)estratégicos e econômicos.
Desse modo, apesar do alegado “fracasso” e das pressões diplomático-militares e
econômicas dos países do Norte Global, há uma sólida e difundida adesão à
“guerra contra as drogas”. Apesar de não atingir o seu objetivo, o
proibicionismo tornou-se o padrão mundial para o controle e repressão às
drogas. Como entender essa aparente contradição? Cegueira ideológica?
Sofisticada conspiração? Incompetência governamental?
Nenhuma dessas opções. A “guerra às drogas” se atualiza, se
adapta e se reposiciona década após década porque é um fracasso exitoso. Em
outras palavras, ela é bem-sucedida na medida em que fracassa, é reconduzida,
fracassa outra vez e é reaplicada novamente seguindo os mesmos pilares. A
“guerra às drogas” não é tola. Ao contrário, ela obedece a uma racionalidade
econômica e política fortemente inserida na lógica da expansão e da acumulação
do capital, sendo uma operadora fundamental da gestão das contradições
socioeconômicas produzidas incessante e crescentemente pelo capitalismo
global.
Nos limites deste pequeno texto, o foco será sobre o potencial
político-estratégico das políticas repressivas sobre drogas, entendendo tal
potencial como a capacidade para controlar, gerir e disciplinar camadas
majoritárias das sociedades capitalistas sob a justificativa de combater o
narcotráfico. De todos os casos possíveis, darei atenção ao brasileiro.
• Segurança
do capital, gestão da miséria
É importante dizer com todas as letras: a “guerra às drogas” não
é travada contra “as drogas”, mas contra pessoas. E não qualquer pessoa. Pode
soar óbvio, mas não é. Ao ser colocada como uma campanha contra substâncias
alteradoras de funções metabólicas e cerebrais, o discurso dessa “guerra”
invisibiliza um fato elementar: compostos químicos inanimados não são figuras
ameaçadoras reais, mas sim determinadas categorias de pessoas associadas a
eles. Essas pessoas são as mais marginalizadas, racializadas, com baixa
capacitação formal e que estão na base da pirâmide socioeconômica de cada país
onde prevalece a “guerra às drogas”.
No Brasil, isso significa que o proibicionismo está voltado ao
aprisionamento, assédio, assassinato e violências físicas e psicológicas mais
variadas contra as populações negras, pobres, periféricas, faveladas e
precarizadas. Pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) pôde, pela primeira vez, identificar com maior precisão o perfil das
pessoas encarceradas no Brasil. Dos/as estimados/as 832.295 presos/as em 2022,
87% eram homens, 72% jovens com menos de 29 anos de idade, 67% negros e 75% com
baixa escolaridade. Destes, 1 em cada 3 cumpria pena por crimes de tráfico de
drogas ou de associação para tráfico, ambos previstos na Lei sobre Drogas (Lei
13.343 de 2006). Entre as mulheres, apesar de serem minoria no sistema
penitenciário, a estimativa é de que 65% tenham sido condenadas por violar a
Lei de Drogas.
Essa lei é a responsável direta pelo aumento da população
prisional no Brasil. Em 2007, primeiro ano da sua aplicação, o número de presos
no país girava em torno de 400.000 pessoas. Hoje, batendo a cifra de quase 1
milhão de pessoas presas, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking das
maiores populações prisionais do mundo, atrás dos EUA e da China.
O trabalho de gestão violenta da miséria produzida pelo próprio
sistema capitalista se completa fora dos muros da prisão. As táticas para tanto
são a morte violenta, o constrangimento cotidiano, a interdição de ir e vir, a
extorsão e a distribuição parcimoniosa de assistência e serviços. Essas
atividades são realizadas tanto pelas forças de segurança do Estado – polícias
e, eventualmente, as Forças Armadas – quanto por milicianos e traficantes.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 indicam
que a média nacional de mortes violentas intencionais de 2023 é de 22,8 pessoas
assassinadas a cada 100.000 habitantes. Em estados do Norte e Nordeste a
relação é ainda maior. São exemplos de destaque o Amapá (69,9/100.000
habitantes), a Bahia (46,5/100.000), Pernambuco (40,2/100.000), Amazonas
(35,6/100.000) e Alagoas (38,5/100.000). Como parâmetro, vale mencionar que a
Organização Mundial da Saúde considera que a relação de 10 mortes violentas
intencionais a cada 100.000 é o máximo que pode suportar uma sociedade estável.
As regiões brasileiras citadas acima têm sido palco, desde a
segunda metade da década de 2010, de dura disputa entre facções locais do
narcotráfico aliadas às maiores organizações do crime organizado brasileiro –
os sudestinos Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC). Como
procuro explicar no meu recente livro Drogas e capitalismo: uma crítica
marxista (Autografia, 2024), quando a repressão ao tráfico de drogas se
intensifica em um país ou região, as atividades ilegais tendem a se deslocar,
buscando novas áreas para a produção de substâncias ilegais e novas rotas de
escoamento para os principais mercados consumidores. Trata-se do chamado
“efeito balão” e é o que tem acontecido no Brasil atual.
Após três décadas de combate cerrado aos grupos narcotraficantes
colombianos – maiores responsáveis pela produção mundial de cocaína – as rotas
amazônicas no Brasil foram aquecidas como via de acesso ao mercado europeu. Em
períodos de expansão de rotas e mercados, a disputa entre organizações locais e
grandes distribuidores internacionais costuma ser violenta, até que se
estabeleça algum controle de territórios e um equilíbrio de forças entre grupos
armados ilegais (GAI) e deles com as forças de segurança estatais.
Ao mesmo tempo, os estados de origem do PCC e do CV registram
altos níveis de letalidade policial. Dados do Ministério Público paulista
registram que o número de pessoas mortas em confrontos com policiais militares
subiu 71% entre 2023 e 2024, alcançando a cifra de 344 pessoas assassinadas. Em
2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 871 pessoas foram mortas
em operações conduzidas por policiais militares. Apenas como comparação, o
projeto Mapping Police Violence dos EUA indica que, em 2024, todas as polícias
juntas do país assassinaram 1.122 pessoas. No Brasil, em 2023, foram 46.328
mortes em confrontos com as PM estaduais.
Ainda no Brasil, dados analisados pelo Grupo de Estudos sobre os
Novos Ilegalismos da UFF (GENI/UFF), em cooperação com o Instituto Fogo
Cruzado, apresentam um crescimento das chamadas “chacinas policiais”
(ocorrências com três ou mais mortes provocadas pelos agentes públicos) e das
“mega chacinas policiais” (com mais de oito mortos). Das 341 chacinas
notificadas entre 2017 e 2022 no estado do Rio de Janeiro, 252 aconteceram em
operações policiais. Nelas estão 1024 das 1342 pessoas mortas em chacinas naquele
período.
Por fim, em 2022, 80,4% das chacinas no RJ foram cometidas
durante operações policiais. Complementando esse dado, sabemos pelo Anuário
Brasileiro de Segurança Pública que, em 2023, 82,7% dos negros vítimas de
mortes intencionais violentas no Brasil perderam a vida em confrontos com a PM.
Nos EUA, o mesmo Mapping Police Violence anota que, em 2024, pessoas negras têm
2,9 vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que pessoas brancas. A
conclusão não pode ser outra: o sistema punitivo brasileiro – assim como o
estadunidense – é racista e classista, com um forte viés de gênero e de faixa
etária; e as forças de segurança são instrumentos violentos de controle social
que complementam a ação de controle e de gestão dos corpos negros e pobres
realizado pelo sistema carcerário.
• Considerações
finais
A principal motivação pública para a realização de operações
policiais em territórios marginalizados e racializados no Brasil é o chamado
“combate ao crime organizado”, quer seja realizado por facções locais de menor
expressão, quer seja por grupos armados ilegais com maiores recursos
financeiros, capacidade de exercer a violência e de influenciar as instituições
do Estado. Não cabe aqui um debate – necessário, mas complexo – sobre a
pertinência ou não de classificar como “crime organizado” GAI tão distintos
quanto o PCC, uma milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro ou a Família do Norte
amazônica.
Interessa, todavia, destacar que há muitas décadas, a
justificativa de governos à esquerda ou à direita para lidar com os problemas
de segurança pública no Brasil passa pelo argumento de que grupos criminosos
são a maior “ameaça” à ordem devendo, por isso, ser combatidos com todo o rigor
e força do Estado. Propostas afinadas ao chamado “populismo punitivo” – como
rebaixamento da idade penal, aumento das penas, construção de novos e mais
seguros presídios, defesa da violência policial etc. – são amplamente aceitas
em todas as classes sociais. Sociedades como o Brasil, formadas por séculos de
racismo, desigualdade social, escravidão e moralidade judaico-cristã, aceitam e
acreditam – ou mesmo, clamam – que a solução para a insegurança trazida pela
precarização da vida, pelo aumento da insegurança climática e alimentar, pela
perda de direitos e pela voracidade da economia neoliberal podem ser
“solucionadas” com mais polícia, mais presídios e punição generalizada.
As políticas de segurança pública no capitalismo são
instrumentos de controle social da miséria e da desigualdade produzidas
ininterrupta e aceleradamente pelo capitalismo. Sob a máscara de assegurar a
segurança de todos, o Estado a serviço do capital e das suas elites organiza um
sistema de repressão seletiva sobre os mais pobres e marginalizados que compõem
um contingente populacional cada vez maior. Concentrados nos grandes centros
urbanos, expulsos do campo pelo agronegócio e pela exploração dos recursos
naturais, esse contingente de miseráveis ou de quase miseráveis luta para
sobreviver de forma desorganizada e, muitas vezes, violenta. Os grupos armados
que lidam com drogas ilegais no Brasil têm uma relação complexa e,
frequentemente, ambígua com o Estado, suas instituições e as forças de
segurança. Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, os GAI têm expressivo
controle territorial e sobre a população. Na região metropolitana do Rio de
Janeiro, em 2023, 18% da área habitada e 38,8% da população (majoritariamente,
a marginalizada) estavam sob o controle de algum grupo armado. O Comando
Vermelho (CV) controlava 51,9% dos territórios, as milícias 38,9%, o Terceiro
Comando Puro (TCP) 7,7% e a Amigo dos Amigos (ADA) 0,8%.
Nesses territórios, os GAI estabelecem formas de relacionamento
econômico com agentes de segurança do Estado (ou seus membros são
simultaneamente parte de forças policiais ou militares e de grupos ilegais). As
vidas econômicas legal e ilegal dos bairros, favelas e periferias sob o
controle desses grupos estão vinculadas de forma indissociável, fazendo
circular dinheiro e garantindo renda direta e indireta à população mais pobre,
ainda que com ganhos limitados e sob grande risco pessoal. Os estudos críticos contemporâneos
sobre a chamada “governança criminal” – as formas pelas quais grupos ilegais
governam populações e atividades socioeconômicas em seus territórios – nos
fazem reparar nas formas violentas pelas quais as populações marginalizadas são
governadas. Tal análise reposiciona uma perspectiva de interpretação mais
tradicional que destacava as ações assistencialistas de grupos armados ilegais.
Fica em evidência atualmente que os grupos armados ilegais praticam tanto ações
pontuais de assistencialismo quanto uma constante prática repressiva para
disciplinar as populações das áreas que controlam. Realizam, portanto, formas
de governo análogas ao Estado.
Em resumo, cidades como o Rio de Janeiro não sofrem de “ausência
de governo”, mas de excesso de governo em suas formas mais violentas e
disciplinarizadoras, realizado pelo Estado e por GAI de diversas naturezas. O
tecido urbano passou a ser esquadrinhado, como uma colcha de retalhos, por
vários espaços de governo legal e ilegal, havendo complementaridades e
sobreposições. Um/a carioca que more, por exemplo, em Campo Grande (Zona Oeste)
e trabalhe no Centro passa, ao longo do dia, por várias “soberanias”: milícias,
TCP, CV e o estado do Rio de Janeiro. Fica sujeito/a às violências, extorsões e
vexações de todas elas.
Assim, mesmo que o tráfico de drogas seja, hoje em dia, apenas
uma das múltiplas atividades ilegais praticadas por “facções” e milícias – ao
lado de outras como a cobrança por segurança, serviços de internet, TV por
assinatura e gás de cozinha – a justificativa de combater o “crime organizado”
segue tendo na figura do narcotraficante o seu estereótipo fundamental. Isso
acontece porque, no senso comum, as “drogas” são vistas como venenos que matam,
alienam e corrompem, sendo um mal que precisa ser extirpado em nome da saúde
individual e coletiva, da segurança pública e da moralidade geral.
As drogas são estigmatizadas, não obstante, apenas quando
associadas às populações racializadas e historicamente marginalizadas,
exploradas e oprimidas. Mesmo drogas ilegais, como a cocaína e a heroína,
quando utilizadas por pessoas brancas, de classe média ou da elite, não
costumam ser entendidas pela opinião pública, pela polícia ou pelo sistema
judiciário como “problemas”. No Brasil, isso vale também para a maconha, mesmo
antes de que ela passasse pelo recente processo de descriminalização do usuário.
No Brasil, maconha fumada por branco é Cannabis (terapêutica ou recreativa);
maconha consumida por negro/a continua sendo a “erva do diabo” abominada pelos
médicos racistas e higienistas do começo do século XX. As drogas psicoativas
psiquiátricas, então, sequer são passíveis de juízo de valor: são entendidas
como “remédios”, mesmo que tão ou mais aditivas e prejudiciais à saúde física e
mental do que algumas drogas ilegais e outras legais recreativas, como o álcool
e o tabaco.
A lógica da segurança pública no Brasil tem sido a da guerra,
sem metáforas. O Estado mobiliza polícias militarizadas e, cada vez mais, as
Forças Armadas, para agir sobre o povo empobrecido e explorado do capitalismo
nacional. Como toda guerra, o investimento de recursos e a tolerância quanto à
violência precisa de uma justificativa aceitável para a maioria. No nosso caso,
a justificativa é o combate ao “crime organizado do narcotráfico”. Como os
problemas que geram as legiões de miseráveis não deixam de existir – porque o
show do capitalismo não pode parar – as políticas repressivas não “funcionam”
para conter o mercado de drogas ou a violência criminal. Ao contrário, a
aplicação de uma lógica militarizada e repressiva apenas promove a sofisticação
e o fortalecimento dos grupos armados ilegais e a co-dependência entre economia
legal e ilegal. Funcionam, todavia, como argumento para acionar um potente
dispositivo repressivo de controle social sob o capitalismo.
Assim, do ponto de vista do controle político das contradições e
tensões sociais geradas pelo capitalismo, a “guerra às drogas” é um grande
sucesso. Apoiada pela maioria, incluindo os mais pobres, a segurança pública é
conduzida como guerra seletiva contra os mais vulneráveis em nome da proteção
de todos. Quem fica protegido, no entanto, seguem sendo o capital e a
propriedade privada em contextos de crescente e violenta desigualdade e
exploração da maioria racializada, pobre e marginalizada.
Fonte: Por Thiago Rodrigues Blog da Boitempo
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