Slavoj
Žižek: Trump, “um canalha cômico e carnavalesco” que “promove o grande capital”
“O problema não é que Trump seja um palhaço. O problema é que há
um programa por trás de suas provocações, um método em sua loucura. As
obscenidades vulgares de Trump e de outros fazem parte da sua estratégia
populista para vender este programa às pessoas comuns, um programa que (pelo
menos a longo prazo) funciona contra elas: impostos mais baixos para os ricos,
menos saúde e proteção para os trabalhadores etc. Infelizmente, as pessoas
estão dispostas a engolir muitas coisas se lhes forem apresentadas com risos
obscenos e falsa solidariedade”, escreve Slavoj Žižek, filósofo esloveno.
Segundo ele, “talvez a melhor caracterização de Trump seja a
de que É liberal, ou seja, um fascista liberal, a prova definitiva de que o
liberalismo e o fascismo funcionam juntos, que são dois lados do mesma moeda.
Trump não é apenas autoritário, seu sonho também é permitir que o mercado
funcione livremente em sua faceta mais destrutiva, da especulação brutal à
rejeição de todas as limitações éticas nos meios públicos (contra o sexismo e o
racismo) por considerá-las uma forma de socialismo”.
“A religião como força política – escreve o filósofo esloveno –
é o efeito da desintegração pós-política da sociedade, da dissolução dos
mecanismos tradicionais que garantiam vínculos comunitários estáveis. A
religião fundamentalista não é apenas política, é a própria política, ou seja,
sustenta o espaço para a política. E o mais perturbador ainda é que não é mais
apenas um fenômeno social, mas a própria textura da sociedade. De modo que, de
certa forma, a própria sociedade se torna um fenômeno religioso”.
<><> Eis o artigo.
Em que lugar a vitória de Trump deixa (o que resta) da esquerda?
Em 1922, quando os bolcheviques tiveram de recuar para a “Nova Política
Econômica” de permitir um grau muito maior de economia de mercado e a
propriedade privada, Lenin escreveu um breve texto “Sobre escalar uma grande
montanha”. Faz um paralelo com um alpinista que precisa voltar ao ponto zero, à
base, ao ponto de sua primeira tentativa de alcançar o cume de uma nova
montanha, para descrever como se retrocede sem trair oportunisticamente a
própria fidelidade à Causa: os comunistas “que não cedem ao desânimo e que
conservam a sua força e flexibilidade para mais uma vez ‘começar do princípio’,
ao abordar uma tarefa extremamente difícil, não estão condenados”.
Este é Lenin em sua melhor versão beckettiana, ecoando a linha
de Worstward Ho: “Tente mais uma vez. Fracasse mais uma vez. Fracasse melhor”.
E essa abordagem leninista é mais necessária hoje do que nunca, quando o
comunismo é mais necessário do que nunca como a única forma de enfrentar os
desafios que temos (ecologia, guerra, IA…), quando (o que resta da) esquerda é
cada vez menos capaz de mobilizar as pessoas em torno de uma alternativa
viável.
Com a vitória de Trump, a esquerda chegou a seu ponto zero.
Antes de mergulharmos nos lugares comuns sobre o “triunfo de Trump”, devemos
levar em consideração alguns detalhes importantes. O primeiro deles é o fato de
Trump não ter obtido mais votos do que nas eleições de 2020, quando perdeu para
Biden. Foi Kamala que perdeu cerca de 10 milhões de votos em comparação a
Biden! Então, não é que “Trump ganhou majoritariamente”, foi Kamala que perdeu.
Todos os críticos esquerdistas de Trump deveriam começar com alguma autocrítica
radical.
Entre os pontos a ser destacados está o fato desagradável de que
os imigrantes, especialmente os de países latinos, são quase intrinsecamente
conservadores. Não foram para os Estados Unidos para mudá-lo, mas para ter
sucesso no sistema ou, como disse Todd McGowan: “Querem ter uma vida melhor
para eles e sua família, não melhorar a sua ordem social”.
Por isso, não acredito que Kamala tenha perdido por ser uma
mulher não branca. Lembremos que Kemi Badenoch, uma mulher negra, três semanas
atrás, foi eleita triunfantemente a nova líder dos conservadores britânicos.
Para mim, a principal razão da sua derrota é que Trump representava a política.
Ele e os seus seguidores atuaram como políticos comprometidos, ao passo que
Kamala representava a não-política.
Muitas das posições de Kamala eram bastante aceitáveis: cuidados
de saúde, aborto… No entanto, Trump e seus apoiadores fizeram repetidas
declarações claramente “extremas”, enquanto Kamala exagerou em evitar as
decisões difíceis, oferecendo lugares comuns vazios. (Neste sentido, Kamala se
aproxima de Keir Starmer, no Reino Unido). Basta lembrar como evitou tomar uma
posição clara sobre a guerra em Gaza e assim perdeu os votos não só dos
sionistas radicais, mas também de muitos jovens eleitores negros e muçulmanos.
O que os democratas não aprenderam com os trumpistas é que, em
uma batalha política apaixonada, o “extremismo” funciona. Em seu discurso de
reconhecimento da vitória de Trump, Kamala disse: “Aos jovens que nos assistem
agora, tudo bem ficar tristes e decepcionados, mas olha só: vai ficar tudo
bem”. Não, NÃO vai ficar tudo bem, não devemos confiar que a história futura
irá de alguma forma restabelecer o equilíbrio. Com a vitória de Trump, a
tendência que aproximou a nova direita populista do poder em muitos países
europeus chegou ao seu clímax.
Kamala foi classificada por Trump como pior do que Biden, não
apenas como socialista, mas até como comunista. Confundir a sua posição com o
comunismo é um triste índice de onde estamos hoje, uma confusão claramente
discernível em outra afirmação populista frequentemente ouvida: “O povo está
cansado do governo de extrema esquerda”. Um absurdo como nenhum outro.
Os novos populistas descrevem a ordem liberal (ainda) hegemônica
como de “extrema esquerda”. Não, esta ordem não é de extrema esquerda, é
simplesmente o centro liberal-progressista que está muito mais interessado em
lutar contra (o que resta) da esquerda do que contra a nova direita. Se o que
temos agora no Ocidente é uma “ordem de extrema esquerda”, então, Von der Leyen
é uma comunista marxista (como efetivamente afirma Viktor Orbán!).
A nova direita populista considera comunismo e capitalismo
corporativo como a mesma coisa. Contudo, a verdadeira identidade dos opostos
está em outro lugar. Há cerca de oito anos, fui criticado por dizer que Trump é
um liberal puro. Como eu poderia ignorar que Trump é um fascista ditatorial?
Meus críticos não entenderam.
Talvez a melhor caracterização de Trump seja a de que É liberal,
ou seja, um fascista liberal, a prova definitiva de que o liberalismo e o
fascismo funcionam juntos, que são dois lados do mesma moeda. Trump não é
apenas autoritário, seu sonho também é permitir que o mercado funcione
livremente em sua faceta mais destrutiva, da especulação brutal à rejeição de
todas as limitações éticas nos meios públicos (contra o sexismo e o racismo)
por considerá-las uma forma de socialismo.
Neste caso, também deveríamos começar com uma crítica aos
adversários de Trump. Boris Buden rejeitou a interpretação predominante que vê
a ascensão do novo populismo de direita como uma regressão provocada pelo
fracasso da modernização. Para Buden, a religião como força política é o efeito
da desintegração pós-política da sociedade, da dissolução dos mecanismos
tradicionais que garantiam vínculos comunitários estáveis. A religião
fundamentalista não é apenas política, é a própria política, ou seja, sustenta
o espaço para a política. E o mais perturbador ainda é que não é mais apenas um
fenômeno social, mas a própria textura da sociedade.
De modo que, de certa forma, a própria sociedade se torna um
fenômeno religioso. Assim, não é mais possível distinguir o aspecto puramente
espiritual da religião de sua politização. Em um universo pós-político, a
religião é o espaço predominante para o qual retornam as paixões antagônicas. O
que aconteceu recentemente sob o disfarce do fundamentalismo religioso não é,
pois, o retorno da religião à política, mas simplesmente o retorno do político
enquanto tal. Então, a verdadeira pergunta é: por que é que o político, no
sentido laico, a grande conquista da modernidade europeia, perdeu o seu poder
formativo?
David Goldman comentou o resultado com um “É a economia,
estúpido!”… mas, como ele mesmo acrescentou, não de forma direta. Os principais
indicadores mostram que sob o governo de Biden a economia funcionou muito bem
(embora a inflação bateu forte na maioria dos pobres), por isso o mistério é:
por que uma maioria considerável percebeu a sua situação econômica como
calamitosa? Aqui, entra em cena a ideologia. Não apenas ideologia no sentido de
ideias e princípios fundamentais, mas a ideologia em um sentido mais básico de
como o discurso político funciona como vínculo social.
Aaron Schuster observou que Trump é “um líder excessivamente
presente, cuja autoridade se baseia na sua própria vontade e que despreza
abertamente o conhecimento. É este teatro rebelde e antissistêmico que serve
como ponto de identificação para as pessoas”. É por isso que os insultos em
série e as mentiras descaradas de Trump, sem mencionar o fato de ser um
criminoso condenado, funcionam para ele. O triunfo ideológico de Trump está no
fato de seus seguidores experimentarem a obediência a ele como uma forma de
resistência subversiva ou, como expressou Todd McGowan: “É possível apoiar o
incipiente líder fascista com uma atitude de obediência total, sentindo-se ao
mesmo tempo totalmente radical, posição adotada para maximizar o fator de gozo
quase de facto”.
Aqui, devemos mobilizar a noção freudiana de “roubo do gozo”: o
gozo de um Outro inacessível para nós (o gozo da mulher para o homem, o gozo de
outro grupo étnico para o nosso grupo…) ou o nosso gozo legítimo roubado ou
ameaçado por um Outro.
Russel Sbriglia observou como esta dimensão do “roubo do gozo”
teve um papel crucial quando os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio, em 6
de janeiro de 2021:
“É possível um exemplo melhor da lógica do “roubo do gozo” do
que o mantra que os apoiadores de Trump gritavam enquanto invadiam o Capitólio:
“Parem o roubo!”? A natureza hedonista e carnavalesca do ataque ao Capitólio
para “deter o roubo” não era apenas secundária à tentativa de insurreição. Na
medida em que tudo passava por recuperar o gozo (supostamente) roubado pelos
outros da nação (negros, mexicanos, muçulmanos, LGBTQ+, etc.), o elemento do
carnaval era absolutamente essencial”.
O que aconteceu em 6 de janeiro de 2021 no Capitólio não foi uma
tentativa de golpe de Estado, mas um carnaval. A ideia de que o carnaval pode
servir de modelo para os movimentos de protesto progressistas – estes protestos
são carnavalescos não apenas na sua forma e atmosfera (representações teatrais,
músicas humorísticas), mas também em sua organização não centralizada – é
profundamente problemática. A própria realidade social capitalista tardia já
não é carnavalesca?
Por acaso, a tristemente célebre Kristallnacht de 1938 – aquele
surto meio organizado e meio espontâneo de ataques violentos a lares,
sinagogas, comércios e pessoas judias – não foi um carnaval típico? Além disso,
o lado obsceno e oculto do poder, dos estupros em grupo aos linchamentos em
massa, não é também chamado de “carnaval”? Não esqueçamos que Michail Bakhtin
desenvolveu a noção de carnaval em seu livro sobre Rabelais, escrito nos anos
1930 como resposta direta ao carnaval dos expurgos stalinistas.
O contraste entre a mensagem ideológica oficial de Trump
(valores conservadores) e o estilo de sua atuação pública (dizer mais ou menos
a primeira coisa que lhe vem à mente, insultar os outros e violar todas as
normas da boa educação…) diz muito sobre o nosso dilema: que mundo é este em
que bombardear o público com vulgaridades indecentes se apresenta como a última
barreira para nos proteger do triunfo da sociedade em que tudo é permitido e os
velhos valores vão para o diabo. Como disse Alenka Zupančič, Trump não é uma
relíquia do velho conservadorismo moral majoritário. Em grau muito maior, é a
imagem invertida caricaturesca da própria “sociedade permissiva” pós-moderna,
um produto dos próprios antagonismos e limitações internas desta sociedade.
Adrian Johnston propôs “uma guinada complementar da sentença de
Jacques Lacan segundo a qual ‘a repressão é sempre o retorno do reprimido’. O
retorno do reprimido é às vezes a repressão mais eficaz”. Esta também não é uma
definição concisa da figura de Trump? Como dizia Freud sobre a perversão, nela
tudo o que é reprimido, todo o conteúdo reprimido, vem à luz em toda a sua
obscenidade, mas este retorno do reprimido apenas reforça a repressão. E por
isso também não há nada libertador nas obscenidades de Trump, apenas reforçam a
opressão e a mistificação social. As ações obscenas de Trump expressam assim a
falsidade do seu populismo. Para dizer de forma brutal e simples, enquanto age
como se estivesse preocupado com as pessoas comuns, promove o grande capital.
Como explicar o estranho fato de Donald Trump, uma pessoa
lasciva e carente, o mais oposto à decência cristã, possa funcionar como o
herói escolhido pelos conservadores cristãos? A explicação que se costuma ouvir
é que embora os conservadores cristãos estejam bem conscientes da natureza
problemática da personalidade de Trump, optam por ignorar essa dimensão das
coisas, pois o que realmente lhes importa é a agenda de Trump, especialmente a
sua posição contra o aborto. Se consegue mais membros conservadores na Suprema
Corte que anulem Roe v. Wade, então, este ato apagará todos os seus pecados…
Mas as coisas são tão simples assim? E se a própria dualidade da
personalidade de Trump – a sua elevada postura moral acompanhada de lascívia e
vulgaridades pessoais – for o que o torna atraente para os conservadores
cristãos? E se secretamente se identificam com essa mesma dualidade? Isto, no
entanto, não significa que devamos levar muito a sério as imagens que abundam
nos nossos meios de comunicação do típico trumpista como um fanático obsceno.
Não, a grande maioria dos eleitores de Trump são pessoas comuns que parecem
decentes e falam de forma normal, tranquila e racional. É como se
exteriorizassem a sua loucura e obscenidade em Trump.
Há alguns anos, Trump foi comparado de forma pouco lisonjeira a
um homem que defeca ruidosamente no canto de uma sala onde está sendo realizado
um coquetel de alto nível, mas é fácil ver que o mesmo ocorre com muitos
políticos importantes de todo o mundo. Erdoğan não defecou em público quando,
em um surto paranoico, classificou aqueles que criticavam a sua política em
relação aos curdos como traidores e agentes estrangeiros? Putin não defecou em
público quando (em uma vulgaridade pública bem calculada destinada a aumentar a
sua popularidade no plano nacional) ameaçou um crítico da sua política chechena
com a castração médica? Sem falar em Boris Johnson…
Esta revelação do pano de fundo obsceno de nosso espaço
ideológico (para dizer de um modo mais simples: o fato de podermos agora fazer
cada vez mais abertamente declarações racistas, sexistas etc., que até
recentemente pertenciam ao espaço privado) não significa em absoluto que o
tempo da mistificação tenha acabado, que agora a ideologia mostre abertamente
as suas cartas. Pelo contrário, quando a obscenidade penetra na cena pública, a
mistificação ideológica é mais forte: as verdadeiras apostas políticas, econômicas
e ideológicas são mais invisíveis do que nunca. A obscenidade pública sempre se
sustenta em um moralismo encoberto, seus praticantes acreditam secretamente que
lutam por uma causa e é nesse plano que devem ser atacados.
Lembrem-se de quantas vezes os meios de comunicação liberais
anunciaram que pegaram Trump com as calças nas mãos e que se suicidou
publicamente (zombando dos pais de um herói de guerra morto, gabando-se de
agarrar mulheres pelos órgãos genitais etc.). Os arrogantes comentaristas
liberais se surpreendiam de que seus contínuos e ásperos ataques às explosões
racistas e sexistas vulgares de Trump, às suas imprecisões factuais, seus
disparates econômicos etc., não o prejudicassem em nada, mas talvez até aumentassem
o seu apelo popular. Não entendiam como funciona a identificação. Por regra, em
geral, nós nos identificamos com as fragilidades dos outros, não só ou sequer
principalmente com os seus pontos fortes, de modo que, quanto mais zombavam das
limitações de Trump, mais as pessoas comuns se identificavam e percebiam os
ataques contra ele como ataques aplicáveis a elas.
A mensagem subliminar das vulgaridades de Trump para as pessoas
comuns era: “Eu sou um de vocês!”, enquanto os apoiadores comuns de Trump se
sentiam constantemente humilhados pela atitude condescendente da elite liberal
para com eles. Como disse sucintamente Alenka Zupančič, “os extremamente pobres
travam a luta pelos extremamente ricos, como ficou claro na eleição de Trump. E
a esquerda não faz nada além de repreendê-los e insultá-los.” Ou, deveríamos
acrescentar, a Esquerda faz algo ainda pior: “compreende” com condescendência a
confusão e a cegueira dos pobres… Essa arrogância liberal da Esquerda emerge em
seu estado mais puro no novo gênero de programas de entrevistas
político-cômicas (Jon Stewart, John Oliver…) que em sua maioria colocam em
prática a pura arrogância da elite intelectual liberal.
Como disse Stephen March, no jornal Los Angeles Times:
“Parodiar Trump é, na melhor das hipóteses, uma distração da sua
verdadeira política. Na pior, transforma toda a política em uma piada. O
processo não tem nada a ver com os artistas ou os roteiristas e suas escolhas.
Trump construiu sua candidatura com base na atuação como um canalha cômico.
Este foi o seu personagem na cultura popular durante décadas. Simplesmente, não
é possível parodiar com eficácia um homem que é uma autoparódia consciente e
que se tornou presidente dos Estados Unidos com base nessa atuação”.
Em meu trabalho anterior, usei uma piada dos bons e velhos
tempos do socialismo realmente existente, popular entre os dissidentes. Na
Rússia do século XV, ocupada pelos mongóis, um fazendeiro e sua esposa caminham
por uma estrada empoeirada. Um guerreiro mongol a cavalo para ao lado do
fazendeiro e lhe diz que agora estuprará a sua esposa. Depois, acrescenta: “Mas
como há muita poeira no chão, você deve segurar os meus testículos enquanto eu
estupro a sua esposa, para que não se sujem!”. Quando o mongol termina o ato e
vai embora, o fazendeiro começa a rir e a pular de alegria; A esposa, surpresa,
pergunta-lhe: “Como você pode pular de alegria quando acabei de ser brutalmente
estuprada na sua presença?” O agricultor responde: “Mas eu o enganei! Suas
bolas estão cheias de poeira”.
Esta triste piada fala da situação dos dissidentes. Eles
pensavam que estavam desferindo duros golpes na nomenklatura do partido, mas
tudo o que fizeram foi jogar um pouco de poeira nos testículos da nomenklatura,
enquanto a nomenklatura continuava estuprando o povo. E não podemos dizer
exatamente o mesmo de Jon Stewart e companhia quando zombam de Trump – não se
limitam apenas a jogar poeira nas bolas dele ou na melhor das hipóteses as
arranham?
O problema não é que Trump seja um palhaço. O problema é que há
um programa por trás de suas provocações, um método em sua loucura. As
obscenidades vulgares de Trump e de outros fazem parte da sua estratégia
populista para vender este programa às pessoas comuns, um programa que (pelo
menos a longo prazo) funciona contra elas: impostos mais baixos para os ricos,
menos saúde e proteção para os trabalhadores etc. Infelizmente, as pessoas
estão dispostas a engolir muitas coisas se lhes forem apresentadas com risos
obscenos e falsa solidariedade.
A ironia final do projeto de Trump é que MAGA (Make America
Great Again) equivale efetivamente ao seu oposto: transformar os Estados Unidos
em parte dos BRICS, uma superpotência local que interage em pé de igualdade com
outras novas superpotências locais (Rússia, Índia, China). Um diplomata da
União Europeia tinha razão ao destacar que, com a vitória de Trump, a Europa
não é mais a “frágil irmã menor” dos Estados Unidos. Será que a Europa
encontrará forças para se opor ao MAGA com algo que poderia ser chamado de
MEGA: tornar a Europa grande, ressuscitando o seu legado emancipatório radical?
A lição da vitória de Trump é o oposto daquilo que muitos
esquerdistas liberais defendiam: (o que resta) da esquerda deve se livrar do
medo de perder eleitores de centro se for considerada muito extremista. Deveria
se distinguir claramente do centro liberal “progressista” e seu corporativismo
woke. Fazer isto traz os seus próprios riscos, claro: um Estado pode acabar em
uma divisão tripartida, sem uma grande coalizão possível. No entanto, correr
este risco é a única forma de avançar.
Hegel escreveu que, através da sua repetição, um acontecimento
histórico afirma a sua necessidade. Quando Napoleão perdeu em 1813 e foi
exilado em Elba, essa derrota pôde parecer algo contingente: com uma estratégia
militar melhor poderia ter vencido. Porém, quando voltou ao poder e perdeu em
Waterloo, ficou claro que o seu tempo tinha acabado, que a sua derrota se
baseava em uma necessidade histórica mais profunda. A mesma coisa acontece com
Trump: a sua primeira vitória ainda podia ser atribuída a erros táticos, mas
agora que voltou a vencer deveria ficar claro que o populismo trumpista
expressa uma necessidade histórica.
Impõe-se assim uma triste conclusão. Muitos comentaristas
esperam que o reinado de Trump se caracterize por novos e chocantes
acontecimentos catastróficos, mas a pior opção é que não haja grandes
sobressaltos. Trump tentará acabar com as guerras em curso (impondo a paz na
Ucrânia etc.), a economia se manterá estável e talvez até floresça, as tensões
vão se atenuar e a vida continuará…
No entanto, toda uma série de medidas federais e locais
enfraquecerão continuamente o pacto social liberal-democrático existente e
mudarão a textura básica que une os Estados Unidos, o que Hegel chamou de
Sittlichkeit, o conjunto de costumes e normas não escritas que têm a ver com a
cortesia, a veracidade, a solidariedade social, os direitos das mulheres etc.
Este novo mundo aparecerá como uma nova normalidade e, neste sentido, o reinado
de Trump pode muito bem provocar o fim do mundo, do que havia de mais precioso
na nossa civilização.
Fonte: Clarín-Revista Ñ, tradução do Cepat, para IHU
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