Tigrinho,
bicheiros e influencers: os interesses por trás da CPI das bets
A CPI das Bets no Senado promete ser uma das mais movimentadas
dos últimos tempos. Na sessão desta terça-feira, 19, a primeira após ser
instalada oficialmente, a comissão mostrou ousadia: aprovou a convocação de
Fernandin das Bets, um empresário apontado como dono do famoso Jogo do Tigrinho
e ligado ao cantor sertanejo Gusttavo Lima.
Com a tacada, a relatora da CPI das Bets, Soraya Thronicke, do
Podemos, e o presidente, Hiran, do PP, querem esclarecer vínculos entre
plataformas de apostas, lavagem de dinheiro e o jogo do bicho. Para tal, se
apoiam na Operação Integration, deflagrada no Recife em setembro, e que levou a
pedidos de prisão de donos de bets, influencers e empresários.
O depoimento de Fernandin das Bets, no entendimento dos
senadores, pode revelar o que a Polícia Civil do Recife concluiu em setembro:
artistas, empresários e até ministros do Supremo Tribunal Federal, como Kássio
Nunes Marques, integram a rede de influência de empresários que exploram jogos
online de forma ilegal.
É verdade que esta é a terceira CPI sobre apostas instaurada no
Congresso Nacional em menos de dois anos e será a segunda em andamento
simultâneo no Senado. Mas a nova comissão tem como foco o cenário mais amplo
das apostas virtuais, enquanto a CPI da Manipulação está investigando esquemas
fraudulentos em jogos de futebol.
A CPI das Bets também ganha ainda mais relevância por ocorrer em
um momento crucial para o mercado de apostas no Brasil. No início do ano que
vem, entram em vigor as novas regras impostas pela chamada Lei das Bets,
aprovada em 2023.
Além disso, a constitucionalidade da Lei das Bets está sendo
questionada no Supremo Tribunal Federal, que analisa ações diretas de
inconstitucionalidade apresentada pela Confederação Nacional do Comércio e pela
Procuradoria-Geral da República.
O julgamento pode colocar em xeque a legalidade das operações
das empresas de apostas no Brasil, gerando incertezas para o mercado e para as
famílias afetadas.
<<<<< Veja os grupos e interesses envolvidos na
CPI das bets:
<><> O lobby das bets
O mercado das bets, especialmente as apostas esportivas online,
cresceu exponencialmente no Brasil nos últimos anos. Contudo, o lobby que
defende esse setor está longe de ser homogêneo.
De um lado, estão as empresas brasileiras, representadas por
organizações como a Associação em Defesa dos Jogos e Apostas e o Instituto
Brasileiro de Jogo Legal. Esses grupo, composto por pequenas e médias
plataformas, tem uma regulamentação mais pesada.
Do outro lado, as empresas internacionais se organizam por meio
do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável. Elas buscam manter o domínio sobre
o mercado, defendendo uma regulação mais que favoreça suas operações globais,
geralmente sediadas em paraísos fiscais.
Nos últimos meses, o IBJR se notabilizou por um lobby agressivo:
bancou estudos com aparência científica que minimizam impactos das bets; fez
publieditoriais, com reportagens patrocinadas em sites como UOL e Poder360; e
comprou anúncios agressivos nas capas dos principais jornais do país.
<><> A indústria da propaganda
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a
Abert, defende a atual versão das Lei das Bets. Segundo a entidade, a
legislação oferece um marco regulatório claro e regras rigorosas para
publicidade, protegendo os consumidores e garantindo transparência.
Contudo, críticos argumentam que a ampla veiculação de
propagandas de apostas, muitas vezes associadas a grandes eventos esportivos,
incentiva um comportamento compulsivo e contribui para o aumento do
endividamento das famílias.
<><> O setor de comércio e serviços
A Confederação Nacional do Comércio, a CNC, é outra entidade que
vê as bets com preocupação. Segundo um estudo divulgado recentemente, o
comprometimento da renda das famílias com apostas pode reduzir a atividade
varejista em até 11,2%, representando uma queda de R$ 117 bilhões no
faturamento do setor por ano.
A CNC também ajustou suas projeções de crescimento para 2024,
atribuindo parte do desempenho mais fraco ao impacto das bets sobre o consumo.
O estudo alerta que a expansão desenfreada desse mercado compromete o orçamento
doméstico, prejudicando a economia como um todo.
<><> Os bancos
O setor bancário, por meio de entidades como a Federação
Brasileira de Bancos, a Febraban, é uma das vozes mais críticas à expansão
desenfreada das bets.
Isaac Sidney, presidente da Febraban, destacou em um evento
recente que as apostas online têm potencial para gerar uma “bolha de
inadimplência” entre os consumidores brasileiros. O risco, segundo Sidney, está
na falta de controle das operações financeiras realizadas por meio de fintechs
e sistemas de pagamento, como o PIX financiado.
Um estudo do Santander revelou preocupações específicas sobre o
impacto das bets no perfil de crédito de fintechs como o Nubank. Com 30% de
suas originações de crédito vinculadas ao PIX financiado, há o temor de que uma
parcela significativa desse volume esteja sendo usada para apostas, expondo a
instituição a elevados riscos financeiros.
<><> Influenciadores e práticas ilícitas
Um dos pontos de atenção da CPI é a Operação Integration,
deflagrada pela Polícia Civil de Pernambuco contra as bets Esporte da Sorte e
Vai de Bet, e que resvalou até no cantor sertanejo Gusttavo Lima e a
influenciadora Deolane Bezerra.
Os famosos devem entrar na mira, mas o caso tem potencial de
revelar ainda mais relações das bets com o jogo do bicho e a utilização de
fintechs e empresas de pagamento como ferramentas para práticas ilícitas,
incluindo lavagem de dinheiro e evasão de bloqueios judiciais.
<><> O Centrão
Partidos do chamado Centrão foram os principais patrocinadores
da Lei das Bets – e também os principais beneficiários. Os ministérios do
Esporte e do Turismo, chefiados por André Fufuca, do PP, e Celso Sabino, do
União Brasil, receberão os maiores percentuais da arrecadação de impostos do
setor.
<><> A extrema direita
O tema das apostas causa um racha na extrema direita brasileira.
Enquanto setores ultraliberais, como o Partido Novo, defendem uma
regulamentação permissiva, a bancada evangélica e até bolsonaristas convictos,
como o deputado Ricardo Salles, do PL de São Paulo, são críticos às bets.
• Um
país cada vez mais viciado em tigrinhos, bets - e agiotas. Por Fabiana Moraes
Eu estava estudando para o vestibular, no meu quarto, quando
ouvi as vozes. Primeiro, uma mulher e o companheiro da minha mãe. Ele parecia
nervoso. Se explicava e dizia que ainda não tinha conseguido o dinheiro, mas
que no outro dia teria.
Ela pressionava e falava que não poderia mais esperar. Ameaçava
sem levantar a voz, dizendo que era “melhor evitar que algo ruim acontecesse”.
Então, identifiquei a voz da minha mãe chegando na conversa. Ela e seu marido
estavam dentro da casa, enquanto a mulher estava na rua, à porta. Somente uma
grade os separava.
“Eu estou dizendo ao seu marido que se ele não me pagar hoje,
não serei mais eu que virei aqui cobrar”. A voz da minha mãe mudou: ficou
trêmula, vacilante. Logo, eram três pessoas falando ao mesmo tempo. Um clima
tenso que eu já conhecia.
Eu não aguentei ouvir a minha mãe daquele jeito: passava de novo
por um constrangimento que ela não tinha provocado. Saí do quarto e fui até a
porta. “Vá embora. Vá embora ou vou chamar a polícia”, eu disse.
Conhecia aquela senhora, pequena e bem magra, que passava parte
do dia circulando entre os prédios de Marcos Freire, um conjunto habitacional
feito para a população de baixa renda, em Jaboatão dos Guararapes, vizinha a
Recife.
Carminha, vamos chamá-la assim, era agiota.
Emprestava dinheiro a juros altos no bairro pobre. Diziam que
seus filhos podiam espancar ou mesmo matar quem não pagasse o valor mais os
juros abusivos. Não sei se isso realmente acontecia. Mas era justamente o medo
a maior ferramenta de gestão que a família possuía.
Naquele dia, mais surpresa do que assustada, ela atenuou a voz e
disse que o companheiro da minha mãe estava lhe devendo dinheiro. “Não volte
aqui, não ameace a minha mãe ou denuncio você”, enfatizei. Ela foi embora. Como
o dinheiro foi pago, eu não sei. O fato é que ela não voltou. Eu tinha 17 anos
e um dos meus sonhos era falar inglês e ter uma casa com janelas, e não
plástico.
<><> A explosão da agiotagem online
Naquele momento – fim dos anos 1990 – a agiotagem era algo feito
sob algum sigilo: a palavra carregava o seu devido peso contraventor e
consequente pouca estima social.
Bem, as coisas mudaram. Em redes sociais como Facebook e
Instagram, são dezenas de perfis e grupos que se dispõem a emprestar dinheiro
de maneira fácil e descomplicada – e a chegada da instituição Pix é outra
grande questão facilitadora.
A prática é especialmente comum no primeiro, onde pululam
ofertas de dinheiro. Se apresentar como agiota não é um problema, como vemos
nos prints abaixo:
Mais do que ofertas, encontramos também nas redes pessoas
desesperadas em busca de empréstimos. “Preciso de 7 mil, mas estou sem dinheiro
nenhum para taxa, e o dinheiro que tinha, perdi com esses falsos agiotas,
preciso de um empréstimo, e começo a pagar na próxima semana”, lemos em uma
postagem escrita há um mês. Em outra, abaixo, uma pessoa dá o índice da
quantidade de golpes sobre quem busca esse financiamento de regras obscuras:
atenção
A questão é que a busca por esse dinheiro baseado em um sistema
informal se dá justamente por grupos mais vulneráveis. Gente que, muitas vezes,
precisa de dinheiro não para investir em algo a longo prazo, e sim para comprar
comida e pagar contas básicas de água e energia elétrica, como mostra essa
reportagem, e como acontecia na casa na qual eu vivia.
Uma pesquisa divulgada pelo Serasa em 2022 mostrava que 70% dos
endividados do país estavam pendurados justamente por terem comprado alimentos
com a grana de agiotas.
Professora do Insper e advogada em direito criminal, Ilana
Martins afirma que, em regra, pessoas que fazem uso desses recursos não
conseguiram obter empréstimos no sistema financeiro tradicional, seja por não
possuírem renda comprovada ou por já terem extrapolado os limites estabelecidos
pelas instituições financeiras.
Ela explica quando o empréstimo de dinheiro com a cobrança de
juros pode ser considerado criminoso. “Quando se tratar de empréstimo de
recursos próprios, a aplicação de uma taxa de juros superior ao limite legal
(12% ao ano) pode configurar o delito do artigo 4º da Lei n. 1.521/51″.
O artigo afirma que é crime:
• 1.
Cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro
superiores à taxa permitida por lei;
• 2.
Cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio sobre quantia permutada por moeda
estrangeira;
• 3.
Emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito (Lei
nº 1.807, de 1953). A pena é de detenção de seis meses a dois anos e multa de
R$ 5 mil a R$ 20 mil.
“Caso o empréstimo seja realizado com recursos de terceiros,
pode vir a ser enquadrado como crime contra o sistema financeiro nacional, em
especial o delito de operar, indevidamente, instituição financeira, com pena de
um a quatro anos”, complementa Martins.
A dívida não é, em muitos casos, a questão mais séria com a qual
pessoas endividadas precisam lidar: a informalidade da prática, já higienizada
como um “empreendedorismo” qualquer, faz com os métodos de cobrança sejam
completamente ao sabor do financiador. A violência, é claro, é um deles.
No artigo Métodos de fiscalização da secretaria da Receita
Federal do Brasil não alcançam os
agiotas, Matheus Sobrinho Guimarães e Tatiane de Souza Maia escrevem:
“Configurando-se crime, o agiota que não consegue receber o empréstimo
realizado, não recorre à justiça e órgãos competentes para realizar a cobrança
e acaba cometendo outros tipos de crime, tais como: ameaça, extorsão, exercício
arbitrário das próprias razões, tudo em detrimento do pagamento do empréstimo
que foi realizado e que deve ser pago, ainda que o empréstimo tenha sido
realizado de forma ilícita através da agiotagem.”
Em 2023, a vendedora Erika Cardoso, 40 anos, foi assassinada na
garagem de casa, em Franca (SP) – o seu filho de 12 anos estava no local e
ouviu a mãe ser morta. Uma quadrilha que atuava na cobrança dos empréstimos foi
presa.
Este ano, um caso chocante mostrou que quem empresta também
corre riscos: um casal matou com requintes de crueldade mãe e filho para não
pagar a ela uma dívida de R$ 10 mil. O menino tinha quatro anos.
<><> Os melhores amigos do agiota: as bets e os
jogos do tigrinho
É preciso dizer que, no contexto de um país no qual as bets e os
jogos do tigrinho viraram febre, os empréstimos aparentemente facilitados se
tornaram ainda mais sedutores.
Os crimes relacionados a esse entrecruzamento já aparecem no
noticiário: em julho deste ano, o corpo do mecânico Marcos Roberto Machado foi
encontrado numa rodovia próxima da cidade de Diamantino (MT). Segundo a família
da vítima, Marcos, adepto do jogo do tigrinho, havia contraído uma dívida de R$
200 mil com um agiota.
“Atualmente, as redes sociais são o lugar privilegiado para o
estabelecimento e desenvolvimento das relações em sociedade. Para cada aspecto
da vida, parece existir um aplicativo, site, rede, etc. Consequentemente, a internet tornou-se o
lugar em que direitos são preferencialmente exercidos (ex. liberdade de
expressão) e frequentemente violados (ex. cometimento de crimes como calúnia,
injúria, ameaça). O grande problema é que as autoridades públicas demoraram a
perceber o protagonismo que o ‘virtual’ ganhou e, a princípio, tratavam as
redes e aplicativos como âmbito exclusivamente privado, o que favoreceu o
crescimento desenfreado e descontrolado desse ambiente”, diz a advogada
criminalista Maira Scavuzzi.
A lerdeza jurídico-institucional tornou, assim, o ambiente
virtual uma terra muito mais propícia a esse tipo de crime.
“A criminalidade, oportunística como é, viu aí uma chance de se
renovar e se expandir: agiotas conseguem se instalar e se disseminar muito mais
facilmente do que jamais conseguiriam no mundo físico, com muito menos risco,
já que, na realidade virtual, a fiscalização e a repreensão é mais difícil. Uma
outra vantagem existe: conseguem se ‘propagandear’ abertamente sem temer ações
enérgicas imediatas, o que retira a pecha da ‘clandestinidade’ que costuma
afastar potenciais vítimas”, disse a advogada.
Vale comentar que questões de gênero muitas vezes perpassam o
problema, como vimos nos casos dos assassinatos citados acima: muitas vezes,
são as mulheres as preferencialmente ameaçadas por agiotas que tentam reaver o
dinheiro investido e seus juros.
Clarice Mendes (nome fictício) não sabia de uma dívida de R$ 3
mil contraída pelo marido até ser avisada por vizinhos que um homem estava
ameaçando queimar a casa de sua sogra. Ela o conhecia e o procurou para
conversar.
A situação parecia controlada quando, dias depois, o cobrador
voltou – desta vez, com outro homem, que a ameaçou. “Eu estava com meu filho
ainda bebê nos braços.” A família toda se reuniu para pagar a dívida. O
companheiro de Clarice é viciado em jogos há anos, e agora engrossa a fileira
daqueles que apostam em jogos do tigrinho.
“No cenário pulverizado das redes sociais, é difícil reprimir
todas as condutas ilegais expostas”, afirma Ilana Martins. Ela lembra que, de
acordo com o Banco Central, a difusão das bets e jogos nos últimos anos pode
ter contribuído para o aumento do endividamento das famílias.
Como consequência, esse endividamento pode contribuir para que
as pessoas busquem recursos a qualquer custo, inclusive com pessoas que atuam
ilegalmente, seja por necessitarem quitar dívidas, seja para alimentar vício.
Como se trata de uma atividade ilegal, os altos índices de
golpes e crimes violentos são subnotificados: geralmente, as vítimas têm medo
de denunciar. Como diz Maira Scavuzzi, forma-se uma lacuna entre a
criminalidade real e a criminalidade estatística, o que a criminologia chama de
“cifra/zona obscura”.
“Falta um olhar atento para o crescimento da agiotagem em redes
sociais e a criação de uma política criminal eficiente – com feitura de leis e
criação de órgãos especializados se necessário for – para combatê-la”.
Fonte: Por Paulo Motoryn, em The Intercept
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