quinta-feira, 21 de novembro de 2024

'Europa aceita diversidade desde que não cause problemas', diz escritora

A escritora e filósofa Karima Ziali é filha da diáspora marroquina.

Ela chegou à Catalunha, na Espanha, quando tinha apenas 3 anos, em 1989, fugindo da conflituosa região do Rife, no Marrocos. Mais de três décadas depois, ela se considera igualmente catalã e rifenha, e evita os rótulos que querem impor a ela.

Ziali aprendeu a navegar no que chama de "sopa cultural", uma mistura de identidades na qual muitos outros migrantes se encontram.

Seu primeiro romance, Una oración sin Dios ("Uma oração sem Deus", em tradução livre), surge justamente da necessidade de confrontar estereótipos.

Ela faz isso por meio de seu protagonista, Morad, um jovem de família muçulmana que cresceu na Catalunha e quer estudar Filosofia, embora isso contradiga a vontade de sua mãe, Farida.

O rapaz vive uma crise de identidade que o confronta com quem ele é ou com o que se espera que ele seja e com o fato de crescer em um ambiente em que ele está ciente de certas diferenças.

A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Ziali durante o Hay Festival de Arequipa, que aconteceu de 7 a 10 de novembro na cidade peruana.

•                                    O título do seu livro, Una oración sin Dios, se refere à busca da oração no sagrado, fora de um código religioso. Por que você decidiu focar seu livro nisso?

Karima Ziali - O título é sempre a parte mais complexa de um livro.

Realmente levei meses até descobrir a utilidade deste título, que não é compreendido até o final de toda a história de Morad e o que sua ferida implica, uma ferida comum, mas que assume esta tonalidade forte porque está relacionada ao mundo religioso, ao mundo da família, da tradição e da identidade.

•                                    Mas o que essa necessidade de orar significa para você?

Ziali - Sempre digo que minha primeira religião consciente foi a católica, mesmo vindo de uma família em princípio muçulmana.

Durante o ensino fundamental, frequentei uma escola católica onde havia oração matinal e, para mim, era um ato natural e naturalizado.

Então, quando percebi que, na verdade, eu vinha de uma tradição religiosa diferente, esse confronto começou a deixar marcas em mim, e comecei a questionar o que era esse ato de oração.

Mas só quando comecei a estudar Filosofia que comecei a confrontar mais abertamente o significado da religião e o que significa o exercício da oração.

Agora, depois de toda essa jornada, da faculdade, a oração é um ato muito natural em que alguém está buscando uma conexão com algo que o tire do seu mundo traumático.

•                                    Você abre o romance com uma citação do psicanalista e psicólogo social Erich Fromm, que descreve a liberdade como o primeiro ato verdadeiramente humano. Nós somos, como diz Morad, inimigos da nossa própria liberdade?

Ziali - Não havia outra maneira de começar este livro.

Para mim, a chave da liberdade é o que marca o caminho e o ritmo de Morad. Sem ela, ele seria incapaz de confrontar a tradição, questionar a religião e sua sexualidade.

Escolhi esta citação porque vincula muito bem este direito que Morad tem de exercer sua liberdade plena e fazer isso sem nenhum tipo de medo.

Porque quando o medo entra, não somos capazes de enfrentar tudo isso que nos é dado como um bloqueio: tradição, religião, identidade, e você fica sem saber o que fazer.

A liberdade é o que permite que você o decomponha, destrua e reconstrua; é o que permite que você entre nesses assuntos sem sentir que está transgredindo algo, mas que é sua obrigação moral como indivíduo.

•                                    Morad é um filho de migrantes de origem rifenha, que enfrenta os dilemas da vida adulta aliado ao fato de ser muçulmano, mas o que é o monstro que o devora por dentro de que você fala no livro?

Ziali - É verdade que Morad é um garoto que não sei se se consideraria muçulmano.

É muito complexo construir sua identidade quando você ouve em todo lugar quem você tem que ou deveria ser.

Morad responde um pouco a esse mundo conflitante de identidade, no qual muitos meninos e meninas poderiam dizer que não são praticantes, mas têm essa tradição, uma atmosfera muçulmana ao seu redor.

A religião é parte desse monstro que o está devorando, o que, para mim, não se concentra tanto na questão do que o Islã significa para ele, mas em uma questão sexual.

Eu queria me concentrar mais em suas experiências e em sua vivência sexual, e em como isso o define como homem e o confronta com uma certa masculinidade que ele tem de assumir, esses padrões masculinos de agressividade, de que tenho que gostar de mulheres, de que tenho de tratá-las de uma certa maneira.

O monstro realmente entra em foco quando Morad sofre abusos na infância por uma figura tão autoritária e respeitada na comunidade muçulmana como o alfaqui [um sacerdote].

Essa é realmente a história que estou contando, uma história de abuso sexual e de como isso cria essa espécie de monstruosidade interna em Morad, que procura maneiras de desenhar esse monstro, de dar uma cara para ele.

•                                    Na crise que assola Morad, ele chega a dizer coisas como: "É uma m***a ser mouro". Ao que seu professor de Filosofia do ensino médio responde: "Entre você e eu, não há muita diferença. Isso é o que mata o mundo, pensar que somos diferentes". Como escapar desses estereótipos?.

Ziali - É muito importante dar uma cara aos estereótipos. Eles também não devem ser rejeitados, ou seja, os estereótipos, os preconceitos, são evidentemente construídos não tanto por uma questão de desconhecimento, mas justamente porque você supõe que o que você está conhecendo parte dessas ideias, e todos nós valorizamos as nossas ideias como verdadeiras.

O fato de Morad chegar a verbalizar "é uma m***a ser um mouro" me trouxe alguns probleminhas, mas acho que é algo que todos nós já chegamos a pensar em algum momento.

Todos nós que viemos deste contexto acabamos desvalorizando nossa própria identidade porque acreditamos que ela não corresponde aos parâmetros esperados de nós em uma sociedade como a europeia.

E é esse confronto, esse olhar constante para o outro, que traz à tona os traumas que esses preconceitos representam para Morad.

Ele sente a obrigação de realmente viver esses estereótipos, esses preconceitos que são lançados sobre ele, porque é a única maneira, e ele sabe disso, de poder superá-los.

Acho que é muito positivo vivê-los verdadeiramente, não rejeitá-los, não negá-los, porque quanto mais negamos esses estereótipos e preconceitos, menos seremos capazes de superá-los e, obviamente, eu me incluo nisso.

O exercício de Morad não é um exercício de negação — mas, sim, um exercício de aceitação e superação.

•                                    Você acha, como dizem alguns, que este é um livro que nos ajudará a nos livrar de dogmas e de um pouco da preguiça ocidental?

Ziali - Quando o romance é lido sob essa ótica, fico feliz, porque é um exercício de mão dupla: ele tem que nos fazer pensar — nesse "nós", incluo todos os filhos de imigrantes que vêm destes contextos muçulmanos — e, ao mesmo tempo, é muito positivo poder fazer o exercício de qual é o nosso diálogo com tudo isso que está acontecendo, onde nós, como ocidentais, como europeus, nos colocamos em relação a essa história que Morad nos conta.

•                                    Então você acha que existe uma certa preguiça ocidental em relação a tudo isso?

Ziali - Acho que sim. Não sei se preguiça é a palavra certa, é mais como um exercício de dizer que a Europa aceita a diferença apenas na medida em que essa diferença não seja problemática. E Morad é uma diferença problemática.

A história de Morad confronta a ideia que temos sobre o que significa diferença. Podemos aceitá-la desde que isso não signifique que tenhamos que problematizar o nosso estilo de vida.

Na realidade, todos os processos migratórios, os filhos das famílias que passaram por este processo, o que eles trazem à tona é um problema profundamente ancorado na sociedade europeia.

O que estou dizendo é que na Europa já existem estes problemas com a diferença, mas o encontro com o diferente faz com que esses problemas venham à tona. Trata-se de sacudir a preguiça e sacudir nossa consciência com a diferença.

•                                    O protagonista sofre por não querer ser muçulmano e se pergunta como escapar ou renunciar. É uma crise que muitos jovens muçulmanos atravessam em algum momento das suas vidas?

Ziali - Eu diria que sim, que todos nós, em maior ou menor grau, passamos por esse processo.

Vou falar mais sobre o contexto espanhol, que é o que eu conheço: as famílias que chegaram nos anos 1980, nos anos 1990, como a geração dos pais de Morad ou a minha, são confrontadas com o fato de crescer em um ambiente em que se tem consciência de certas diferenças.

A questão religiosa é sofrida porque, às vezes, entendemos o Islã como uma volta ao passado. É um erro ver as coisas dessa forma, e Morad é um exemplo disso. O Islã não é um voltar ao passado.

O sentimento de pertencer ao Islã e o sentimento de viver em uma sociedade que, em grande parte, está deixando a religião de lado. Para mim, esse é o choque.

•                                    A mãe dele, Farida, luta para manter um status familiar centrado na religiosidade que permeia tudo, assim como os silêncios. Como encontrar um equilíbrio e lidar com esses silêncios?

Ziali - Farida é como um compêndio de muitas mulheres da minha família que conheci.

Na verdade, para mim, Farida é a chave de toda esta história. Sem ela, não haveria o potencial que a história pode ter ou o caráter da ferida que Morad carrega consigo.

Farida sabe fazer uma coisa muito bem, e acho que isso é quase transcultural, e é como ela lida com os silêncios em favor da unidade familiar. Essa é a arte dela, sua maneira de usar até mesmo, muitas vezes, os valores religiosos apenas para manter a unidade familiar.

Você tem que entender uma coisa sobre essas mulheres, acima de tudo, que quando elas realizam o processo migratório, elas deixam para trás tudo o que são, seus vínculos, seus laços familiares, sua rede social, tudo isso fica para trás.

Elas querem proteger essa unidade familiar que criaram, e isso é algo que está muito internalizado. É por isso que, se houver um elemento que possa perturbar a unidade familiar, como a vergonha, elas são capazes de encobri-lo.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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