sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Como um escândalo sexual expôs uma ditadura africana

A pequena nação da Guiné Equatorial, uma ex-colônia espanhola na costa oeste da África, raramente desperta a atenção da imprensa internacional, destacando-se ocasionalmente no noticiário por violações de direitos humanos e pelos estratosféricos níveis de corrupção.

Mas, no fim de outubro, o país apareceu no noticiário por causa de outro tipo de escândalo: o vazamento de centenas de vídeos de conteúdo sexual, que atingiram em cheio parte da elite do regime de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, o segundo mais longevo ditador do mundo, que governa a Guiné Equatorial com mão de ferro desde 1979.

Os vídeos mostram um sobrinho-neto do ditador em momentos íntimos com dezenas de mulheres, incluindo esposas e parentes de outros membros do regime. Jornais de países vizinhos citam a divulgação de pelo menos 400 arquivos. Alguns deles registrados em prédios governamentais.

As imagens começaram a inundar as redes sociais da Guiné Equatorial no fim de outubro, provocando frenesi entre a população do país – que não conta com imprensa livre –, mas também expondo intrigas palacianas pela sucessão de Mbasogo e despertando reações misóginas contra as mulheres envolvidas.

•                                    "Bello", o sobrinho-neto do ditador no centro do escândalo

O principal protagonista dos vídeos – e presumível responsável pelas gravações – é Baltasar Ebang Engonga, também conhecido como "Bello".

Sobrinho-neto do ditador Teodoro Obian Mbasogo, Bello, de 54 anos, ocupava até o final de outubro a chefia da Agência Nacional de Investigação Financeira (ANIF) de Guiné Equatorial, órgão que supostamente deveria investigar e combater casos de corrupção no país.

Boa parte dos cargos estratégicos do país são ocupados por parentes do ditador Mbasogo. O pai de Bello, Baltazar Engonga Edjo, é sobrinho do ditador, e já ocupou diversos cargos ministeriais, além de ser uma figura influente no partido governante, o PDGE.

Em 25 de outubro, Bello foi destituído do cargo e preso pelo regime, acusado de desvio de verba pública e depositar os valores em contas secretas em paraísos fiscais. Ele acabou sendo enviado para a notória prisão de Playa Negra, na capital, Malabo, o principal centro de punição para opositores do regime e que é frequentemente citada em relatórios de direitos humanos por suas condições brutais.

Agentes do regime também apreenderam computadores e telefones que pertenciam a Bello. Logo depois, os vídeos começaram a aparecer no Telegram e em outras redes sociais do país, tornando-se um dos assuntos mais comentados de Guiné Equatorial e de outros países africanos, superando em buscas temas como as eleições nos EUA.

Jornais de países vizinhos e usuários de redes sociais logo identificaram algumas das mulheres, apontando que seriam esposas e parentes de figuras que ocupam cargos administrativos na Presidência, no aparato de segurança do regime e na petrolífera estatal.

Várias imagens parecem indicar que algumas mulheres sabiam que estavam sendo filmadas por Bello. Não se sabe exatamente por que ele gravou os vídeos – alguns deles registrados no seu antigo escritório na ANIF. Alguns usuários de redes sociais especularam se os registros poderiam ser algo além de um mero fetiche, e que Bello poderia estar acumulando material para chantagear as mulheres ou seus maridos.

•                                    Disputa familiar pelo poder

O vazamento dos vídeos também provocou especulações sobre quem poderia estar por trás da divulgação depois da prisão de Bello e apreensão dos seus equipamentos – e os motivos.

Com a idade avançada do ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo – 82 anos –, há crescentes especulações sobre quem vai substitui-lo. Ativistas no exílio apontam que há uma luta interna pela sucessão e especularam que o vazamento pode ter sido feito para destruir a imagem dos envolvidos.

Bello era apontado como um dos nomes para assumir o comando do país. Poucos ativistas acreditam que acusações de corrupção tenham realmente motivado a prisão, considerando que toda a elite do regime tem as mãos sujas com enriquecimento ilícito.

No momento, o herdeiro presumível do regime é o filho mais velho do ditador, Teodoro Obiang Mangue, conhecido como "Teddy", que no passado já enfraqueceu outros parentes na disputa pela sucessão, incluindo um meio-irmão que foi afastado da chefia do poderoso Ministério de Energia no ano passado.

Com 56 anos, Teddy ocupa o cargo de vice-presidente e é conhecido pelo estilo de vida extravagante, com predileção por iates, motos e carros de luxo, sendo rotineiramente citado como um dos membros mais notórios da cleptocracia que comanda Guiné Equatorial.

Em 2018, uma comitiva de Teddy foi flagrada no aeroporto de Viracopos, no Brasil, transportando 1,4 milhão de dólares em espécie e relógios avaliados em 15 milhões. Nos anos 2000, o Departamento de Justiça dos EUA também investigou o filho do ditador por suspeita de lavagem de dinheiro na compra de um triplex em São Paulo, avaliado em R$ 70 milhões.

Em 2018, agentes da Polícia Federal realizaram uma operação no imóvel de luxo. Em 2012, uma mansão do filho do ditador avaliada em 100 milhões de euros nos arredores de Paris foi confiscada pelas autoridades francesas.

Teddy ainda enfrenta sanções no Reino Unido e já teve outros bens confiscados nos EUA, entre eles um par de luvas incrustradas com joias que havia pertencido ao cantor Michael Jackson, arrematado em um leilão por 275 mil dólares.

•                                    Regime usa episódio para fortalecer controle das redes

Ainda que o vazamento dos vídeos possa ter servido a um propósito político, o regime logo percebeu que o episódio havia atraído uma atenção internacional indesejada, com o país sendo alvo de zombaria e opositores no exílio usando o caso como um exemplo de decadência de membros da classe dominante.

Alguns dias após o vazamento dos vídeos, Teddy ordenou que as companhias de comunicação do país retirassem as imagens do ar em 24 horas.

"Não podemos continuar a assistir famílias se desintegrarem sem tomar nenhuma atitude", escreveu Teddy na rede X.

O regime da Guiné Equatorial também anunciou que ordenou a "suspensão imediata de todos os funcionários que tiveram relações sexuais nos gabinetes dos ministérios do país".

Mas ativistas lamentaram o temor que as medidas para suprimir os vídeos também possam ser usadas em um esforço mais amplo para enfraquecer o acesso às redes sociais no país, que são um dos poucos redutos para a circulação de informações na ausência de uma imprensa livre.

No mês de julho, o regime já havia limitado totalmente o acesso à internet e a redes de celular na ilha de Annobón, após moradores locais se queixarem sobre atividades predatórias de mineração na região. Em 2013 e 2017, o regime também bloqueou redes sociais após a eclosão de protestos.

•                                    Misoginia

O caso também escancarou uma atitude misógina no país e nas redes sociais. Enquanto as mulheres envolvidas foram alvo de críticas e julgamentos, Bello, a figura central de todas as gravações, recebeu elogios pela sua "performance".

Alguns usuários escreveram que ele era digno de receber uma premiação ao estilo "Bola de Ouro", enquanto jornais de países vizinhos fizeram textos em tom de zombaria especulando sobre qual seria o segredo para conseguir ter relações com tantas mulheres.

Até mesmo o vice Teddy fez um julgamento quando ordenou que os vídeos fossem suprimidos. "São mulheres casadas participando e se filmando em atos que denigrem a sua reputação e dignidade", disse, em uma publicação no X.

•                                    Guiné Equatorial: rico em petróleo e notório pela corrupção

Com 1,7 milhão de habitantes e um território com tamanho semelhante ao estado brasileiro de Alagoas, Guiné Equatorial é o único país da África onde o espanhol é falado pela maioria da população.

Outras línguas oficiais incluem o francês e o português. Antes de passar a ser uma colônia espanhola entre 1778 e 1968, a região ficou por mais de dois séculos sob domínio do Império Português, quando foi transformada num centro de tráfico de escravizados enviados para o Brasil – em 2015, o regime patrocinou o desfile da escola de samba Beija-Flor, provocando críticas de organizações de defesa dos diretos humanos.

Em 1968, ao se tornar independente da Espanha, a Guiné Equatorial realizou aquela que até hoje é sua única eleição presidencial livre.

No pleito, venceu Francisco Macías Nguema, que rapidamente transformou o país em uma ditadura brutal, responsável pelo assassinato de dezenas de milhares de pessoas, levando Guiné Equatorial a ser apelidada de "Dachau africana", em referência ao campo de concentração nazista. Francisco Macías chegou a ser descrito como louco e "psicopata" por serviços estrangeiros de inteligência.

No final dos anos 1970, ele começou a se voltar contra membros da sua família, ordenando a execução de vários parentes. Em 1979, fartos com o comportamento errático de Francisco Macías, parentes e membros do regime organizaram um golpe palaciano. Ele acabou deposto por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, seu sobrinho, então com 37 anos, que assumiu as rédeas do regime familiar que persiste até hoje. Francisco Macías acabou sendo executado no mesmo ano.

No poder, Mbasogo adotou uma abordagem um pouco menos brutal que a do seu tio, mas seu governo também se notabilizou pela perseguição de opositores, assassinatos, prisões arbitrárias, ausência de eleições livres, culto à personalidade e corrupção.

Nos anos 1990, uma companhia de petróleo americana descobriu vastas reservas no país, que hoje respondem por 97% das exportações. Mas os lucros nunca beneficiaram a maior parte da população, e ficaram concentrados nas mãos da elite do regime. Hoje, o país ocupa a 133° posição no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas – mais de 40 posições atrás do Brasil.

Em 2009, um artigo no jornal New York Times apontou que "poucos países do mundo representam tão bem a corrupção e o nepotismo movido a petróleo como a Guiné Equatorial". O país aparece na 172° posição entre os 180 países do ranking de corrupção da ONG Transparência Internacional, à frente apenas de nações como Síria e Venezuela.

 

Fonte: DW Brasil

 

Nenhum comentário: