sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Erradicar a fome exige lógica que não seja a de celeiro que 'entope mundo de soja e carne', diz analista

A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, parece ter sido a principal vitória do Brasil na presidência rotativa do grupo das maiores economias do mundo.

A iniciativa já conta com a adesão de 82 países, 26 organizações internacionais, 9 instituições financeiras e 31 fundações filantrópicas e organizações não governamentais.

No discurso de abertura da cúpula, na última segunda-feira (18), Lula citou dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) que apontam que o mundo convive com um contingente de 733 milhões de pessoas subnutridas e afirmou que a fome é produto de decisões políticas que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.

Apesar dos avanços na pauta da segurança alimentar, os desafios que se impõem na luta contra a fome e a pobreza demandam mudanças estruturais e que se defrontem com o modelo de desenvolvimento vigente, de acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil no podcast Mundioka desta quarta-feira (20).

"O mundo nunca produziu tanto alimento quanto agora. E a fome continua lá com os 800 milhões, 700 milhões — oscila um pouquinho, sobe um pouquinho, desce um pouquinho, mas está sempre por ali, entre 700 e 800 milhões de pessoas […]. O problema da fome não é um problema de disponibilidade, é um problema de acesso", disse o coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf.

Ele condenou a visão economicista de mercado que muitas nações têm de que atividade econômica e eficiência produtiva são a solução do problema da fome. A adoção de modelos agroecológicos, baseados na agricultura familiar diversificada, que valorizam a sociobiodiversidade, são a chave para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, defendeu:

"Esse é um outro caminho, diferente dessa ideia do celeiro do mundo que entope o mundo de soja e carne. Não estou dizendo que não tem que ter soja nem carne. Tem um modelo dominante que é danoso em vários aspectos, inclusive na saúde humana; é isso que precisa ser questionado."

O economista e diretor da FGV Social, Marcelo Nery, também conversou com a Sputnik Brasil e abordou a contradição brasileira de abraçar as causas do combate à fome e do desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, investir no modelo de produção de commodities agrícolas.

"Tem os dois lados da moeda. A fazenda do mundo, no sentido de ser um grande produtor de alimentos, mas remonta também a toda uma tradição de monocultura, de uma sociedade escravocrata. Então [o Brasil] está nos dois lados da moeda, como produtor de alimentos, e isso é um status que tem avançado nas últimas décadas, nos últimos anos; mas também pelo lado de combate à fome, à pobreza, à desigualdade, que são males que afligem o Brasil mais do que deveriam, dado o nosso nível de desenvolvimento", opinou o economista.

Nery argumentou que em um período de 15 anos a extrema pobreza no Brasil caiu à metade, mas a fome até 2022 aumentou, e comentou que a iniciativa do governo anterior, de Jair Bolsonaro, de encerrar programas e instrumentos de promoção da segurança alimentar provou como é fácil retroceder nessa área:

"Acho que o caso brasileiro mostra que quando você desestrutura o combate à fome, por exemplo com o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, coloca em segundo plano a questão da merenda escolar, do apoio à agricultura familiar, uma série de ações que o Brasil tomava, […] a fome cresce."

Nery frisou que ações bem-integradas são capazes de obter, no curto prazo, avanços importantes, e citou o Bolsa Família como um bom começo para mitigar a fome e a pobreza.

Maluf também defendeu que o enfrentamento dos problemas distributivos é o primeiro passo para encarar o problema:

"O enfrentamento da fome, assim como o enfrentamento da pobreza, são fenômenos que têm múltiplas dimensões, portanto exigem múltiplos instrumentos […]. Nossa sociedade não é desigual por um desígnio divino, você tem causas muito identificáveis […]. É uma desigualdade que tem origem na concentração da propriedade da terra, em questões raciais, que tem origem no solo urbano", argumentou, frisando que o combate à fome deve ser intersetorial e com muita participação social.

De acordo com o especialista, as commodities são fruto de um padrão "completamente pobre do ponto de vista alimentar".

"É um tipo de alimentação associada com doenças não transmissíveis, como a obesidade. Considero uma falácia dizer que há uma segurança alimentar mundial e um enfrentamento da fome no mundo que pode e deve ser feito por meio da agricultura de larga escala tecnificada, da monocultura, com produtos processados e ultraprocessados e fluxos internacionais sob controle das grandes corporações."

Citando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), ele destacou que a obesidade hoje mata muito mais do que a fome, cujas principais vítimas são as pessoas pobres.

Sobre a obesidade, o diretor da FGV Social acrescentou:

"É mais complexo do que apenas pessoas sem comida para comer. Fala-se pouco da qualidade e da quantidade de alimentação que passa por hábitos culturais que estão sendo mudados a uma velocidade grande neste mundo de Internet, neste mundo de trabalho remoto", declarou, ao defender que as pessoas também precisam ser informadas e formadas a respeito disso.

Maluf pontuou que mudar essa lógica de baratear produtos nocivos à saúde é um dos maiores desafios, por serem mercadorias de elevado grau de mercantilização e de financeirização em uma realidade na qual a alimentação saudável não é rentável.

Ainda segundo ele, há séculos os alimentos são usados como instrumento de poder, e o não acesso a alimentos pode ser resultado de ações deliberadas de controle.

"Tem, sim, um componente político da fome muito forte, e isso já nos ensinava Josué de Castro, em sua 'Geografia da fome', em 1946, quando dizia que a fome não era produto de nenhum tipo de fatalidade, de nenhum tipo de característica cultural; era fruto da ação humana, fruto de modelos de desenvolvimento", comentou ele ao citar o médico pernambucano, que foi um dos grandes nomes do país no combate à fome, também citado por Lula em seu discurso na Cúpula do G20.

¨      Afinidade entre agendas: parceria 'ganha-ganha' sino-brasileira avança e fortalece multilateralismo

Com um saldo de 37 acordos em diversas áreas, o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, e seu homólogo brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, estreitaram ainda mais a cooperação e parcerias entre os dois países nesta quarta-feira (20), no Palácio da Alvorada, em Brasília.

Analistas políticos com especialidade nas relações sino-brasileiras ouvidos pela Sputnik Brasil interpretaram os resultados da visita como algo mutuamente benéfico, na lógica do "ganha-ganha", em que o multilateralismo, principalmente, sai ganhando.

Cientista político, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha, Maurício Santoro destacou a sintonia de objetivos de política internacional rumo a um mundo mais multipolar, como a defesa da reforma das instituições globais para beneficiar países do Sul Global.

"Há uma afinidade muito grande entre as agendas globais dos presidentes Lula e Xi Jinping, sobretudo no que diz respeito à defesa das instituições multilaterais internacionais", afirmou ele.

Jurista, editor da Autonomia Literária e analista geopolítico, Hugo Albuquerque argumentou que as duas nações criaram uma dinâmica complementar, que ainda não alcançou sua totalidade devido a entraves como a dolarização das transações comerciais.

"Uma relação direta entre Brasil e China, em todos os sentidos, ela tem um peso enorme. Como teria com o Brasil e a Rússia também, e, evidentemente, que uma aproximação do Brasil e a China contribui para relações desse mesmo tipo com outros países, grandes, médios e pequenos, para que os Estados Unidos deixem de ser, além de uma grandeza em si, a régua do mundo", ponderou.

O fortalecimento da relação bilateral brasileira-chinesa, nesse sentido, gera "precedente para demais relações pelo mundo", salientou o jurista, ao citar o grupo do BRICS como um "embrião" desse rearranjo na geopolítica mundial:

"BRICS é naturalmente como um embrião de um outro mundo possível, que não seja aquele mundo comandado pelas potências imperialistas do século XIX, nos vários arranjos que o sistema teve antes da Primeira Guerra, depois da Segunda Guerra, depois da Guerra Fria. É a possibilidade de um mundo diferente dessa ordem que é opressora, vertical, brutal. O BRICS é um embrião desse outro mundo que pode ser possível e a relação sino-brasileira é fundamental nesse sentido".

O editor da Autonomia Literária alertou, porém, que O Brasil precisa recalibrar seu modelo de desenvolvimento e construir estruturas públicas e semipúblicas para qualificar a relação com a economia globalizada, como fez a China para não perder o controle da própria economia.

"Me filio entre aqueles que defendem uma reestruturação, mas no sentido público, da gestão da nossa economia, porque só isso vai permitir a gente colher frutos mais efetivos dessa parceria", refletiu ele.

·        Rota da Seda

Lançada em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota chinesa, também conhecida como Nova Rota da Seda, que engloba 150 países, não entrou nos acordos, pois o Brasil optou por não aderir ao ambicioso projeto chinês, apesar dos apelos do parceiro asiático.

Os entrevistados destacaram que o impacto de uma adesão seria mais simbólico e político do que comercial para ambos os países.

Albuquerque alegou que a decisão brasileira de não aderir ao projeto não foi unânime e teve influência de "grupos ocidentalistas no Brasil, que entendiam que o significado dessa adesão poderia colocar o Brasil muito claramente para longe do Ocidente", comentou ele ao chamar a decisão de equivocada.

"Para a China, a grande importância da Nova Rota da Seda é para a criação de novas rotas de comércio e também para a exportação de capitais e a reciclagem de capitais, sobretudo na área de infraestrutura. Então, eu acho que faltou aí, na verdade, um posicionamento mais firme do Brasil de aderir e também, claro, cobrando dos parceiros chineses um avanço num problema e num gargalo muito grave do Brasil, que é a infraestrutura, onde a gente tem uma demanda muito reprimida por uma clara falta de ferrovias, hidrovias, rodovias", examinou o jurista.

Já de acordo com Santoro, a não adesão do Brasil à nova rota reflete uma medida protecionista em relações ao setor industrial, que se sente ameaçado pela competição chinesa:

"Cerca de 90% das exportações brasileiras para a China são de produtos agropecuários e minerais, como soja, minério de ferro, petróleo, carnes e celulose. Em contrapartida, os brasileiros importam dos chineses produtos industriais, como equipamentos eletrônicos e elétricos. Desde a década de 2000 há preocupações do governo do Brasil com esse desequilíbrio, e o desejo de que as exportações incluíssem mais produtos de alto valor agregado", argumentou ele.

O cientista político também frisou que no Itamaraty há "ceticismo" quanto aos benefícios do projeto para o Brasil:

"Como o país já recebe muitos investimentos chineses, é o principal destino deles entre as nações do Sul Global, não haveria muitos ganhos extras. Os diplomatas também temem que o Brasil perderia voz e influência nas relações com a China, tendo que negociar com as dezenas de países que formam a iniciativa", disse ele ao elencar o risco de retaliações comerciais por parte dos EUA como mais um fator considerado.

<><> Mediação conjunta em conflitos internacionais

Com relação à crise na Ucrânia, os presidentes ressaltaram que que não existem soluções simples para assuntos complexos e que China e Brasil emitiram entendimentos comuns sobre uma resolução política para a crise na Ucrânia e criaram o grupo de Amigos para a Paz junto com outros países do Sul Global.

De acordo com Santoro, o peso econômico e político das duas nações tem sim relevância para influir em negociações globais de paz.

"Os chineses, por exemplo, foram os mediadores de um importante acordo entre os vários grupos palestinos que rejeitam a ocupação israelense, além de mediar a reaproximação entre Arábia Saudita e Irã. A perspectiva de um momento mais conflituoso e isolacionista nos EUA de Trump com certeza apresentará oportunidades para Brasil e China", opinou ele.

Albuquerque também valorizou a importância do esforço conjunto sino-brasileiro para acelerar o fim dos atuais conflitos, mas alertou que enquanto o Ocidente seguir municiando com armas e financiamento uma das duas partes envolvidas nos embates bélicos, a escalada da violência deve continuar.

"Temos dois anos e meio de conflito, onde basicamente as sanções ocidentais não destruíram a Rússia nem derrubaram seu governo, como se esperava inicialmente, e a Ucrânia se estabeleceu como uma grande arapuca militar do Ocidente para as tropas russas. Temos um cenário de impasse que, no entanto, pende a favor da Federação da Rússia atualmente no campo de batalha e disso vem essa decisão açodada do comando político americano em um encerramento de governo, de determinar que a Ucrânia possa atacar o território russo".

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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