Estamos
nos destruindo para manter o fluxo de dinheiro para os ricos
Em
maio passado, uma pesquisa descobriu que quase 40% dos profissionais no Canadá
estavam sofrendo de burnout crescente. Os dados da empresa de consultoria
Robert Half descobriram que as principais causas citadas pelos trabalhadores
foram carga de trabalho, má comunicação e suporte da gerência e um ambiente de
trabalho tóxico. Consistente com dados dos Estados Unidos e de todo o mundo, a
pesquisa canadense descobriu que a Geração Z e os millennials foram os mais
afetados pelo burnout. Mas o fenômeno não é exclusivo deles. É uma crise ampla
e profunda — e se estende para além do local de trabalho.
Existem
várias causas de burnout, mas geralmente é fundamentalmente um problema de
desequilíbrio e falta de controle da própria vida. Estar sob o controle de
outro pode acabar com a autonomia e aumentar a exposição a condições e
ambientes de trabalho excessivamente exigentes e irracionais. Tais condições
incluem uma carga de trabalho desequilibrada e falta de tempo livre e descanso.
Em suma, somos forçados a trabalhar muito duro, por muito tempo, com suporte e
tempo livre limitados.
• Só trabalho,
sem diversão
Em
nossa sociedade de mercado, o tempo gasto fora do trabalho é frequentemente
infiltrado por preocupações relacionadas ao trabalho, perturbando o que deveria
ser um tempo e espaço sagrados de descanso. Quando não estamos trabalhando,
pensamos em trabalhar, nos preocupamos em trabalhar, verificamos e-mails ou
somos solicitados a “fazer um esforço extra” e investir mais tempo. A amarra
digital contribuiu consideravelmente para a confusão dos limites entre trabalho
e descanso, tornando-nos constantemente disponíveis para as demandas de nossos
chefes 24 horas por dia, 7 dias por semana, efetivamente transformando a vida
doméstica em um mero trabalho extracurricular.
Tudo
isso pressupõe que o custo de vida de uma pessoa permita algum tempo de folga.
No Canadá, a crise de acessibilidade — particularmente na habitação — forçou
milhões a se empenharem mais e trabalharem mais apenas para manter um teto
sobre suas cabeças. Isso, por sua vez, restringe o já escasso tempo livre que
alguém pode conseguir garantir. E embora as horas de trabalho em geral não
sejam exatamente equivalentes à era Dickensiana, elas estão aumentando. A
extensão exata é difícil de avaliar devido ao aumento de bicos temporários e
atividades paralelas permitidas pelos desenvolvimentos em tecnologia. A
promessa de que a tecnologia liberaria tempo para os trabalhadores ainda não se
materializou; em vez disso, contribuiu para uma escalada na exploração.
Em
uma pesquisa da Harris Poll em maio, trabalhadores canadenses ofereceram
algumas sugestões para prevenir ou aliviar o esgotamento, com um tema comum
sendo o controle pessoal e no local de trabalho. Um horário de trabalho
flexível liderou a lista, seguido de perto pelo apoio ao tempo livre. Na medida
em que o burnout é um problema de controle, transferir mais dele para os
trabalhadores é essencial para lidar com a questão. Mais tempo livre também é
uma escolha óbvia. Naturalmente, pagar mais aos trabalhadores também é
importante — embora isso não resolva necessariamente o problema do excesso de
trabalho.
Vivemos
em uma cultura que espera e venera horas de trabalho irracionais, apesar de
montes de dados que sugerem que trabalhar mais não o torna mais produtivo — e,
de fato, muitas vezes o torna menos produtivo. Devemos ser cautelosos com o
culto à produtividade, mas as narrativas pró-produtividade no local de trabalho
estão frequentemente erradas em seus próprios termos, na medida em que pregam
longas horas como a medida do bom trabalho.
Burnout
para as massas trabalhadoras, pagamento para as classes proprietárias
Adicionando
insulto à injúria nas narrativas pró-produtividade está a realidade de que,
apesar de décadas de melhoria da produtividade nos locais de trabalho na
América do Norte, o pagamento dos trabalhadores não refletiu esse crescimento.
Entre o início da década de 1970 e o presente, a produtividade aumentou em
quase 65%, enquanto os salários por hora tiveram um aumento de apenas 17,3%.
Com a produtividade superando o pagamento em 3,7 vezes, pode-se questionar
corretamente para onde foi esse excedente substancial na produção. A resposta,
previsivelmente, está em seu desvio para acionistas e gerentes corporativos.
Nossas
vidas fora do local de trabalho devem ser espaços onde podemos relaxar,
reiniciar e nos conectar com as pessoas e coisas que nos dão significado.
Excesso de trabalho, salários baixos, exaustão, estresse e ansiedade induzidos
por nossas vidas profissionais minam esses espaços e conexões, pois arrastamos
o pior de nossas vidas profissionais para nossas vidas pessoais. Então, nosso
tempo livre se torna um espaço de raiva e ressentimento purulentos, o que
alimenta ainda mais o esgotamento. É um ciclo vicioso que mina nossas vidas
profissionais e não profissionais.
No
tempo privado que temos, somos frequentemente forçados a confrontar um mundo
que testa ainda mais os limites da nossa paciência e sanidade, e nossa
capacidade de esperança. Encarar um rio sempre corrente de notícias horríveis
em casa e no exterior compromete nossa capacidade de descansar e aproveitar o
que há para aproveitar da vida fora do trabalho. A lógica clássica da pessoa
boa e cívica exige alguém que esteja consciente e engajado com as notícias do
dia — tanto melhor para ser informado, preparado para mobilizar e improvável de
ser enganado pelos poderes constituídos. Ou assim diz a teoria.
• O
esgotamento enfraquece a democracia
Uma
cidadania engajada pressupõe que as pessoas realmente tenham tempo para se
manterem a par das notícias e questões políticas. Muitos de nós não temos. Para
aqueles que têm, ler, dia após dia, sobre catástrofes climáticas, guerra,
instabilidade geopolítica, políticos desequilibrados e qualquer pedaço do
inferno que esteja no menu naquele dia é, em si, indutor de ansiedade e raiva.
Além disso, em democracias liberais como o Canadá, que priorizam indivíduos
como unidades econômicas de produção e consumo e os desprezam como sujeitos
políticos ativos, a pessoa acaba se sentindo desamparada acima de tudo.
A
maneira como construímos a democracia liberal é extremamente fraca em
autogoverno e laços comunitários. Como argumentei antes, ela é tão fraca que
talvez não tenha força para se manter de pé a longo prazo, especialmente quando
as coisas ficam difíceis. As coisas estão difíceis agora, e só vão piorar.
Mesmo
que alguém estivesse inclinado a ir além dessa impotência e se envolver na vida
cívica ou política — a expandir os limites da democracia liberal e assumir um
papel maior no autogoverno — com que tempo, energia ou recursos os muitos que
são levados ao limite no trabalho e em casa estariam fazendo esse trabalho?
Resolver
o burnout no Canadá e além — resolver o problema estruturalmente, não apenas
substituí-lo por um tempo — começa com democracia e controle no local de
trabalho. Os trabalhadores devem ter controle sobre seus horários, quer
trabalhem no escritório ou em casa, e sobre os processos, expectativas e normas
que moldam suas condições e ambiente de trabalho. Resolver os problemas
impostos pelo burnout também requer tempo livre suficiente e forçado, boa
remuneração e condições de trabalho seguras.
Combater
o esgotamento significa transferir controle e poder aos trabalhadores. Também
requer uma mudança mais ampla nas expectativas culturais sobre trabalho e
produtividade. Os ganhos de produtividade devem beneficiar os trabalhadores,
não apenas os proprietários. No entanto, também precisamos abandonar o culto
moderno do taylorismo que desumaniza os trabalhadores e reconhecer que mais
horas não equivalem necessariamente a um trabalho melhor — e muitas vezes
sinalizam o oposto. Desmantelar os modelos de vigilância arraigados no
capitalismo contemporâneo, impulsionados por tecnologias que monitoram e
penalizam os trabalhadores por serem humanos, é crucial. Com essa agenda, os
trabalhadores podem recuperar suas vidas e redefinir a natureza de seu
trabalho.
• A PEC que
pode mudar a cena brasileira. Artigo de Maria Júlia Pereira, Eduardo Rezende
Pereira e Mateus Oliveira dos Santos
Na
página @memesbrasil, que conta com mais de 3 milhões de seguidores no
Instagram, um post mobiliza para as manifestações pelo fim da escala 6×1, que
estão sendo convocadas para o dia 15 de novembro, feriado nacional. A legenda
da postagem é a seguinte: “a ironia de ser justo no feriado pq é o dia que a
galera pode ir sem correr o risco de ser demitido por faltar o trampo”. No
entanto, os trabalhadores sob a escala 6×1 são justamente aqueles que não têm
final de semana e/ou feriado. Outra imagem que circula nas redes tem Eduardo
Bolsonaro, à frente de um palanque, acompanhado de colegas parlamentares, com a
irônica frase: “trabalhamos 3×4 e somos contra a PEC pelo fim da escala 6×1”.
Desde
que foi lançado o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024, que visa
regulamentar o trabalho dos motoristas por aplicativos — que ainda está parado
no Congresso Nacional —, não víamos um tema relacionado ao trabalho ganhar
tanto destaque no debate público. O debate sobre a redução da jornada de
trabalho acontece diante da apresentação da Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) da deputada Erika Hilton (PSOL), inspirada pela campanha de Rick Azevedo,
vereador recém-eleito pelo mesmo partido no Rio de Janeiro.
A
chamada “escala 6×1” é aquela em que os trabalhadores têm jornadas de seis dias
semanais seguidos com direito a apenas uma folga. Hilton propõe que haja uma
redução da carga horária semanal para 36 horas sem alterar a carga máxima diária
de oito horas de trabalho e sem redução salarial. Desde que foi lançado, o
apoio popular nas redes sociais pressionou para que mais deputados endossassem
a proposta e, até o momento de redação deste texto, já são 134 assinaturas, das
171 necessárias para a tramitação.
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Além de trabalhar, viver
Rick
Azevedo, que foi o vereador mais votado no último pleito carioca, vem
defendendo a pauta do fim da escala 6×1 a partir do movimento Vida Além do
Trabalho (VAT). Sua popularidade emergiu do TikTok, rede social em que
compartilhava a sua rotina como balconista em uma farmácia em regime celetista.
Azevedo reclamou do pouco tempo que tinha disponível para atividades de lazer e
cuidados pessoais, e seu desabafo viralizou nas redes. Evidentemente, esta
queixa não se limita à experiência pessoal de Azevedo e de seus milhares de
seguidores, sendo comum ao conjunto da classe trabalhadora brasileira.
A
valorização do tempo de não-trabalho não é uma pauta nova, apesar de seu
ressurgimento e atualização ao tempo presente. A jornada de trabalho é pauta
orientadora das lutas sindicais desde seus primórdios. Dentre os aspectos
relacionados à sua regulação, destacamos, dentre outros pontos, a delimitação
de intervalos de descanso para os trabalhadores, os limites para o trabalho
noturno e os turnos de revezamento. Tais pautas foram mobilizadas e
conquistadas a partir da não redução salarial, elemento presente e central na
PEC proposta por Hilton.
Tendo
em vista as disputas que atravessam as relações de trabalho, a regulação da
jornada foi e é um tema de relevância para o sindicalismo porque também foi
alvo dos empregadores. E por que o domínio do tempo dos trabalhadores é tão
relevante aos empregadores? Nas últimas cinco décadas, o trabalho tem passado
por inúmeras transformações. Um conjunto de esforços de cunho neoliberal
moldaram uma lógica de substituição dos trabalhadores, crescimento do setor de
serviços e predominância da informalidade sem ou com pouca proteção social e
trabalhista, dentre outros elementos que caracterizam o processo de
neoliberalização. Isso tudo num contexto de “viração” – especialmente em países
como o Brasil -, que captura o tempo dos trabalhadores, forçando-os a buscar constantemente
por oportunidades no mercado, sentindo-se responsáveis diante da ausência do
Estado – vide a questão da empregabilidade.
Ter
mais tempo para além do tempo de trabalho implica em melhores condições de
vida, o que, por sua vez, influencia positivamente a atividade produtiva. Nesse
sentido, é curioso que o setor empresarial afirme que um dos maiores problemas
do mercado de trabalho brasileiro, o que supostamente impediria a economia de
“avançar”, é a baixa qualificação. Mas como falar em ausência de qualificação
da força de trabalho, se para ela não há nem tempo de descanso e lazer?
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O potencial político da PEC e da redução da jornada
A
proposta de Hilton tomou as redes e mobilizou setores da sociedade. No entanto,
parte do campo progressista e da base de sustentação do atual governo ainda
parece tatear o debate numa aparente dúvida do quanto deve apostar nesta
bandeira no atual contexto. A título de exemplo, nem o Partido dos
Trabalhadores (PT) e nem a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se
manifestaram sobre a PEC e a convocação de atos pelo país até o presente
momento. Noutra direção, o presidente da Força Sindical (FS), Miguel Torres, se
manifesta de forma favorável à redução, embora com críticas à PEC: “Ressaltamos
que a experiência das entidades sindicais, nas negociações constantes,
demonstra que a redução da jornada é fundamental e só resulta em benefícios
para toda a sociedade”.
O
pronunciamento do ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT), veio como
um balde de água fria. O ministro afirmou apenas que o fim da escala deve ser
negociado em convenções e acordos coletivos entre empregados e empregadores. O
ex-sindicalista não demonstra se é do interesse do governo a defesa desta
pauta, e nem reforça sua importância histórica.
Na
realidade, o discurso de defesa do negociado sobre o legislado, tão presente
durante a aprovação da reforma trabalhista aprovada por Michel Temer (MDB) em
2017, acaba carregando, sob a aparência democrática e de respeito às
particularidades locais, mais dificuldades para as condições de luta e para a
construção de um novo horizonte.
Ora,
há aqui uma grande oportunidade não apenas para que a esquerda e o campo
progressista retomem a centralidade do trabalho e dos direitos sociais e
trabalhistas, como também de se colocarem como protagonistas diante de uma
demanda com forte apelo social, capaz de ser politizada para um processo mais
amplo de defesa da democracia e de acesso aos direitos. Num contexto em que se
debate a retomada dos vínculos com as classes trabalhadoras, pelas quais o
discurso neofascista tem se espraiado, eis uma janela aberta onde as
organizações e políticos da direita e da extrema-direita alinhados ao projeto
neoliberal não estão encontrando espaço.
Falar
no fim da escala 6×1 é falar sobre a promoção da qualidade de vida da classe
trabalhadora. Porém, essa questão não pode ser discutida desacompanhada do
debate sobre as desigualdades de gênero e de raça. Para que a valorização do
tempo de não trabalho seja uma realidade, os trabalhos de cuidado direto e
indireto, majoritariamente realizados por mulheres, devem ser pautados. Nesse
sentido, a Política Nacional de Cuidados — uma aposta acertada do governo
federal — deve emergir também enquanto mote da classe trabalhadora. Do
contrário, o tempo de não trabalho (produtivo) das mulheres corre o risco de se
transformar em tempo livre para o trabalho (reprodutivo).
Fonte:
Por David Moscrop, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil/IHU
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