sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Estamos nos destruindo para manter o fluxo de dinheiro para os ricos

Em maio passado, uma pesquisa descobriu que quase 40% dos profissionais no Canadá estavam sofrendo de burnout crescente. Os dados da empresa de consultoria Robert Half descobriram que as principais causas citadas pelos trabalhadores foram carga de trabalho, má comunicação e suporte da gerência e um ambiente de trabalho tóxico. Consistente com dados dos Estados Unidos e de todo o mundo, a pesquisa canadense descobriu que a Geração Z e os millennials foram os mais afetados pelo burnout. Mas o fenômeno não é exclusivo deles. É uma crise ampla e profunda — e se estende para além do local de trabalho.

Existem várias causas de burnout, mas geralmente é fundamentalmente um problema de desequilíbrio e falta de controle da própria vida. Estar sob o controle de outro pode acabar com a autonomia e aumentar a exposição a condições e ambientes de trabalho excessivamente exigentes e irracionais. Tais condições incluem uma carga de trabalho desequilibrada e falta de tempo livre e descanso. Em suma, somos forçados a trabalhar muito duro, por muito tempo, com suporte e tempo livre limitados.

•                                    Só trabalho, sem diversão

Em nossa sociedade de mercado, o tempo gasto fora do trabalho é frequentemente infiltrado por preocupações relacionadas ao trabalho, perturbando o que deveria ser um tempo e espaço sagrados de descanso. Quando não estamos trabalhando, pensamos em trabalhar, nos preocupamos em trabalhar, verificamos e-mails ou somos solicitados a “fazer um esforço extra” e investir mais tempo. A amarra digital contribuiu consideravelmente para a confusão dos limites entre trabalho e descanso, tornando-nos constantemente disponíveis para as demandas de nossos chefes 24 horas por dia, 7 dias por semana, efetivamente transformando a vida doméstica em um mero trabalho extracurricular.

Tudo isso pressupõe que o custo de vida de uma pessoa permita algum tempo de folga. No Canadá, a crise de acessibilidade — particularmente na habitação — forçou milhões a se empenharem mais e trabalharem mais apenas para manter um teto sobre suas cabeças. Isso, por sua vez, restringe o já escasso tempo livre que alguém pode conseguir garantir. E embora as horas de trabalho em geral não sejam exatamente equivalentes à era Dickensiana, elas estão aumentando. A extensão exata é difícil de avaliar devido ao aumento de bicos temporários e atividades paralelas permitidas pelos desenvolvimentos em tecnologia. A promessa de que a tecnologia liberaria tempo para os trabalhadores ainda não se materializou; em vez disso, contribuiu para uma escalada na exploração.

Em uma pesquisa da Harris Poll em maio, trabalhadores canadenses ofereceram algumas sugestões para prevenir ou aliviar o esgotamento, com um tema comum sendo o controle pessoal e no local de trabalho. Um horário de trabalho flexível liderou a lista, seguido de perto pelo apoio ao tempo livre. Na medida em que o burnout é um problema de controle, transferir mais dele para os trabalhadores é essencial para lidar com a questão. Mais tempo livre também é uma escolha óbvia. Naturalmente, pagar mais aos trabalhadores também é importante — embora isso não resolva necessariamente o problema do excesso de trabalho.

Vivemos em uma cultura que espera e venera horas de trabalho irracionais, apesar de montes de dados que sugerem que trabalhar mais não o torna mais produtivo — e, de fato, muitas vezes o torna menos produtivo. Devemos ser cautelosos com o culto à produtividade, mas as narrativas pró-produtividade no local de trabalho estão frequentemente erradas em seus próprios termos, na medida em que pregam longas horas como a medida do bom trabalho.

Burnout para as massas trabalhadoras, pagamento para as classes proprietárias

Adicionando insulto à injúria nas narrativas pró-produtividade está a realidade de que, apesar de décadas de melhoria da produtividade nos locais de trabalho na América do Norte, o pagamento dos trabalhadores não refletiu esse crescimento. Entre o início da década de 1970 e o presente, a produtividade aumentou em quase 65%, enquanto os salários por hora tiveram um aumento de apenas 17,3%. Com a produtividade superando o pagamento em 3,7 vezes, pode-se questionar corretamente para onde foi esse excedente substancial na produção. A resposta, previsivelmente, está em seu desvio para acionistas e gerentes corporativos.

Nossas vidas fora do local de trabalho devem ser espaços onde podemos relaxar, reiniciar e nos conectar com as pessoas e coisas que nos dão significado. Excesso de trabalho, salários baixos, exaustão, estresse e ansiedade induzidos por nossas vidas profissionais minam esses espaços e conexões, pois arrastamos o pior de nossas vidas profissionais para nossas vidas pessoais. Então, nosso tempo livre se torna um espaço de raiva e ressentimento purulentos, o que alimenta ainda mais o esgotamento. É um ciclo vicioso que mina nossas vidas profissionais e não profissionais.

No tempo privado que temos, somos frequentemente forçados a confrontar um mundo que testa ainda mais os limites da nossa paciência e sanidade, e nossa capacidade de esperança. Encarar um rio sempre corrente de notícias horríveis em casa e no exterior compromete nossa capacidade de descansar e aproveitar o que há para aproveitar da vida fora do trabalho. A lógica clássica da pessoa boa e cívica exige alguém que esteja consciente e engajado com as notícias do dia — tanto melhor para ser informado, preparado para mobilizar e improvável de ser enganado pelos poderes constituídos. Ou assim diz a teoria.

•                                    O esgotamento enfraquece a democracia

Uma cidadania engajada pressupõe que as pessoas realmente tenham tempo para se manterem a par das notícias e questões políticas. Muitos de nós não temos. Para aqueles que têm, ler, dia após dia, sobre catástrofes climáticas, guerra, instabilidade geopolítica, políticos desequilibrados e qualquer pedaço do inferno que esteja no menu naquele dia é, em si, indutor de ansiedade e raiva. Além disso, em democracias liberais como o Canadá, que priorizam indivíduos como unidades econômicas de produção e consumo e os desprezam como sujeitos políticos ativos, a pessoa acaba se sentindo desamparada acima de tudo.

A maneira como construímos a democracia liberal é extremamente fraca em autogoverno e laços comunitários. Como argumentei antes, ela é tão fraca que talvez não tenha força para se manter de pé a longo prazo, especialmente quando as coisas ficam difíceis. As coisas estão difíceis agora, e só vão piorar.

Mesmo que alguém estivesse inclinado a ir além dessa impotência e se envolver na vida cívica ou política — a expandir os limites da democracia liberal e assumir um papel maior no autogoverno — com que tempo, energia ou recursos os muitos que são levados ao limite no trabalho e em casa estariam fazendo esse trabalho?

Resolver o burnout no Canadá e além — resolver o problema estruturalmente, não apenas substituí-lo por um tempo — começa com democracia e controle no local de trabalho. Os trabalhadores devem ter controle sobre seus horários, quer trabalhem no escritório ou em casa, e sobre os processos, expectativas e normas que moldam suas condições e ambiente de trabalho. Resolver os problemas impostos pelo burnout também requer tempo livre suficiente e forçado, boa remuneração e condições de trabalho seguras.

Combater o esgotamento significa transferir controle e poder aos trabalhadores. Também requer uma mudança mais ampla nas expectativas culturais sobre trabalho e produtividade. Os ganhos de produtividade devem beneficiar os trabalhadores, não apenas os proprietários. No entanto, também precisamos abandonar o culto moderno do taylorismo que desumaniza os trabalhadores e reconhecer que mais horas não equivalem necessariamente a um trabalho melhor — e muitas vezes sinalizam o oposto. Desmantelar os modelos de vigilância arraigados no capitalismo contemporâneo, impulsionados por tecnologias que monitoram e penalizam os trabalhadores por serem humanos, é crucial. Com essa agenda, os trabalhadores podem recuperar suas vidas e redefinir a natureza de seu trabalho.

 

•                                    A PEC que pode mudar a cena brasileira. Artigo de Maria Júlia Pereira, Eduardo Rezende Pereira e Mateus Oliveira dos Santos

Na página @memesbrasil, que conta com mais de 3 milhões de seguidores no Instagram, um post mobiliza para as manifestações pelo fim da escala 6×1, que estão sendo convocadas para o dia 15 de novembro, feriado nacional. A legenda da postagem é a seguinte: “a ironia de ser justo no feriado pq é o dia que a galera pode ir sem correr o risco de ser demitido por faltar o trampo”. No entanto, os trabalhadores sob a escala 6×1 são justamente aqueles que não têm final de semana e/ou feriado. Outra imagem que circula nas redes tem Eduardo Bolsonaro, à frente de um palanque, acompanhado de colegas parlamentares, com a irônica frase: “trabalhamos 3×4 e somos contra a PEC pelo fim da escala 6×1”.

Desde que foi lançado o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024, que visa regulamentar o trabalho dos motoristas por aplicativos — que ainda está parado no Congresso Nacional —, não víamos um tema relacionado ao trabalho ganhar tanto destaque no debate público. O debate sobre a redução da jornada de trabalho acontece diante da apresentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da deputada Erika Hilton (PSOL), inspirada pela campanha de Rick Azevedo, vereador recém-eleito pelo mesmo partido no Rio de Janeiro.

A chamada “escala 6×1” é aquela em que os trabalhadores têm jornadas de seis dias semanais seguidos com direito a apenas uma folga. Hilton propõe que haja uma redução da carga horária semanal para 36 horas sem alterar a carga máxima diária de oito horas de trabalho e sem redução salarial. Desde que foi lançado, o apoio popular nas redes sociais pressionou para que mais deputados endossassem a proposta e, até o momento de redação deste texto, já são 134 assinaturas, das 171 necessárias para a tramitação.

<><> Além de trabalhar, viver

Rick Azevedo, que foi o vereador mais votado no último pleito carioca, vem defendendo a pauta do fim da escala 6×1 a partir do movimento Vida Além do Trabalho (VAT). Sua popularidade emergiu do TikTok, rede social em que compartilhava a sua rotina como balconista em uma farmácia em regime celetista. Azevedo reclamou do pouco tempo que tinha disponível para atividades de lazer e cuidados pessoais, e seu desabafo viralizou nas redes. Evidentemente, esta queixa não se limita à experiência pessoal de Azevedo e de seus milhares de seguidores, sendo comum ao conjunto da classe trabalhadora brasileira.

A valorização do tempo de não-trabalho não é uma pauta nova, apesar de seu ressurgimento e atualização ao tempo presente. A jornada de trabalho é pauta orientadora das lutas sindicais desde seus primórdios. Dentre os aspectos relacionados à sua regulação, destacamos, dentre outros pontos, a delimitação de intervalos de descanso para os trabalhadores, os limites para o trabalho noturno e os turnos de revezamento. Tais pautas foram mobilizadas e conquistadas a partir da não redução salarial, elemento presente e central na PEC proposta por Hilton.

Tendo em vista as disputas que atravessam as relações de trabalho, a regulação da jornada foi e é um tema de relevância para o sindicalismo porque também foi alvo dos empregadores. E por que o domínio do tempo dos trabalhadores é tão relevante aos empregadores? Nas últimas cinco décadas, o trabalho tem passado por inúmeras transformações. Um conjunto de esforços de cunho neoliberal moldaram uma lógica de substituição dos trabalhadores, crescimento do setor de serviços e predominância da informalidade sem ou com pouca proteção social e trabalhista, dentre outros elementos que caracterizam o processo de neoliberalização. Isso tudo num contexto de “viração” – especialmente em países como o Brasil -, que captura o tempo dos trabalhadores, forçando-os a buscar constantemente por oportunidades no mercado, sentindo-se responsáveis diante da ausência do Estado – vide a questão da empregabilidade.

Ter mais tempo para além do tempo de trabalho implica em melhores condições de vida, o que, por sua vez, influencia positivamente a atividade produtiva. Nesse sentido, é curioso que o setor empresarial afirme que um dos maiores problemas do mercado de trabalho brasileiro, o que supostamente impediria a economia de “avançar”, é a baixa qualificação. Mas como falar em ausência de qualificação da força de trabalho, se para ela não há nem tempo de descanso e lazer?

<><> O potencial político da PEC e da redução da jornada

A proposta de Hilton tomou as redes e mobilizou setores da sociedade. No entanto, parte do campo progressista e da base de sustentação do atual governo ainda parece tatear o debate numa aparente dúvida do quanto deve apostar nesta bandeira no atual contexto. A título de exemplo, nem o Partido dos Trabalhadores (PT) e nem a Central Única dos Trabalhadores (CUT) se manifestaram sobre a PEC e a convocação de atos pelo país até o presente momento. Noutra direção, o presidente da Força Sindical (FS), Miguel Torres, se manifesta de forma favorável à redução, embora com críticas à PEC: “Ressaltamos que a experiência das entidades sindicais, nas negociações constantes, demonstra que a redução da jornada é fundamental e só resulta em benefícios para toda a sociedade”.

O pronunciamento do ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT), veio como um balde de água fria. O ministro afirmou apenas que o fim da escala deve ser negociado em convenções e acordos coletivos entre empregados e empregadores. O ex-sindicalista não demonstra se é do interesse do governo a defesa desta pauta, e nem reforça sua importância histórica.

Na realidade, o discurso de defesa do negociado sobre o legislado, tão presente durante a aprovação da reforma trabalhista aprovada por Michel Temer (MDB) em 2017, acaba carregando, sob a aparência democrática e de respeito às particularidades locais, mais dificuldades para as condições de luta e para a construção de um novo horizonte.

Ora, há aqui uma grande oportunidade não apenas para que a esquerda e o campo progressista retomem a centralidade do trabalho e dos direitos sociais e trabalhistas, como também de se colocarem como protagonistas diante de uma demanda com forte apelo social, capaz de ser politizada para um processo mais amplo de defesa da democracia e de acesso aos direitos. Num contexto em que se debate a retomada dos vínculos com as classes trabalhadoras, pelas quais o discurso neofascista tem se espraiado, eis uma janela aberta onde as organizações e políticos da direita e da extrema-direita alinhados ao projeto neoliberal não estão encontrando espaço.

Falar no fim da escala 6×1 é falar sobre a promoção da qualidade de vida da classe trabalhadora. Porém, essa questão não pode ser discutida desacompanhada do debate sobre as desigualdades de gênero e de raça. Para que a valorização do tempo de não trabalho seja uma realidade, os trabalhos de cuidado direto e indireto, majoritariamente realizados por mulheres, devem ser pautados. Nesse sentido, a Política Nacional de Cuidados — uma aposta acertada do governo federal — deve emergir também enquanto mote da classe trabalhadora. Do contrário, o tempo de não trabalho (produtivo) das mulheres corre o risco de se transformar em tempo livre para o trabalho (reprodutivo).

 

Fonte: Por David Moscrop, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil/IHU

 

Nenhum comentário: