Como
identificar e estimular crianças superdotadas
A
advogada Marcela Monferdini não esperava que seu filho Diógenes, de seis anos,
fosse uma criança que, antes mesmo de chegar ao primeiro ano do ensino regular,
conseguisse fazer multiplicações e até desenhasse o alfabeto grego.
Ela
conta que desde pequeno o menino sempre gostou de placas, e quando ainda era
bebê já identificava algumas letras. "Na parte da piscina do prédio tinha
uma placa bem grande de manutenção e ele já começava a soletrar, inclusive com
os acentos", relembra.
Mesmo
diante desse avanço intelectual, a advogada conta que o filho era muito
introspectivo, não brincava com outras crianças e ficava sempre mais recluso.
Marcela chegou a pensar que o garoto era autista ou sofria com transtorno do
déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Quando
o menino começou a frequentar a escola, os bilhetes sobre seu comportamento
também não eram positivos. "Eram relatórios ruins, que diziam que ele era
uma criança que não se adequava e que só queria ficar com adultos",
relembra.
Foi
então que Marcela começou a ir atrás de mais informações. Ela viu uma
reportagem sobre crianças superdotadas e, a partir daí, procurou clínicas que
realizavam testes específicos para ver se o filho se encaixava nessa
classificação.
No
primeiro exame, quando ainda tinha três anos, ele foi diagnosticado com
superdotação e com o dobro da idade intelectual. Na época, ela e o marido
chegaram a mudar o menino de escola, pois acreditavam que o local "estava
sabotando" as habilidades do garoto. "Quando informei, as professoras
disseram que já sabiam e eu questionei por que não haviam me falado nada",
afirma.
Após
um ano e meio, a criança realizou novos testes. Os resultados indicaram um
aumento em sua capacidade cognitiva, e ele foi admitido na Mensa, organização
internacional para pessoas com alto QI, presente em diversos países e com mais
de 150 mil membros. A entidade funciona como um apoio ou mentoria para
indivíduos superdotados.
Para
ingressar na organização, é preciso demonstrar capacidade intelectual acima de
98% da população geral. A admissão se dá por meio de testes de QI, aplicados
por profissionais credenciados. Na Europa, a Mensa utiliza testes próprios,
enquanto países como EUA e Brasil adotam testes padronizados, aprovados por
órgãos reguladores locais. Cada país membro da Mensa possui regras específicas
para aplicação dos testes, adequadas à legislação local.
A
comparação de resultados entre diferentes testes não é válida, dada a variação
de parâmetros. O critério de admissão se baseia no percentil do candidato, que
deve estar acima de 98. Em alguns países, o número aceito pode ser até de 89.
• Diagnóstico
de altas habilidades
Identificar
superdotação em bebês e crianças envolve observar uma série de características
que os diferenciam dos demais. Renata Yamasaki, neuropsicóloga pela Unifesp,
explica que "bebês superdotados geralmente apresentam um desenvolvimento
cognitivo acelerado em comparação a seus pares".
Esse
público pode demonstrar atenção prolongada, capacidade de resolver problemas e
habilidades de memória acima da média para a idade. Isso se reflete em marcos
de desenvolvimento, como a fala e a caminhada precoces, além de alta
curiosidade e reatividade sensorial.
Roberta
Zunega, neuropsicopedagoga e especialista em Neurociência Aplicada à Educação
pela Santa Casa de São Paulo, complementa: "Desde a infância, costumam
exibir um alto grau de atenção e curiosidade, conseguindo focar em objetos e
indivíduos por períodos mais longos do que a média."
Marcela
confirma que o hiperfoco era algo frequente na vida do filho antes do
diagnóstico. Muitas vezes, relata, ele se concentrava em uma atividade
específica e não conseguia parar de reproduzir determinado movimento ou
palavra.
"Ele
tinha um hiperfoco gritante. Ficava rodando, contava em inglês e rodava,
querendo mostrar para as pessoas. Mas tinha semana que era só o alfabeto",
relembra a advogada. Esse comportamento repetitivo melhorou depois que Diógenes
começou a fazer psicoterapia e outras atividades como terapia ocupacional.
A
memória aprimorada também é uma característica comum, com esses bebês mostrando
habilidade em guardar informações ou identificar padrões e rostos desde cedo,
recordando lugares e brinquedos ou relacionando acontecimentos.
"Com
quatro anos de idade, ele já escrevia frases em inglês que aprendia em
desenhos, fazia contas de multiplicação", afirma Marcela.
• Testes para
identificar alto QI
O
reconhecimento de superdotação na primeira infância permite que as crianças
recebam um acompanhamento adequado para desenvolver suas habilidades.
Yamasaki
enfatiza, contudo, que esse diagnóstico deve ser feito com cautela para evitar
enganos e pressão indevida sobre a criança.
Geralmente,
para chegar a uma conclusão são realizados testes específicos, feitos por
neuropsicólogos, nos quais a criança é submetida a diversas atividades e
exercícios. Detalhamos alguns deles abaixo:
<><>
Escala Bayley de Desenvolvimento Infantil:
-
Amplamente utilizada para avaliar o desenvolvimento cognitivo, motor e
socioemocional em bebês de 1 a 42 meses, abrangendo habilidades como resolução
de problemas, coordenação motora e desenvolvimento linguístico.
<><>
Escala de Desenvolvimento Infantil de Griffiths:
-
Avalia uma ampla gama de habilidades em bebês e crianças até 8 anos, incluindo
desenvolvimento locomotor, pessoal-social e habilidades de coordenação. É
frequentemente utilizada para detecção precoce de superdotação e atrasos no
desenvolvimento.
<><>
Inventário de Desenvolvimento de Denver II:
-
Ferramenta de triagem para avaliar fases do desenvolvimento motor, linguístico
e social em crianças de 0 a 6 anos.
<><>
Escalas Wechsler Pré-escolar e Primária de Inteligência (WPPSI):
-
Com "subtestes" adaptáveis para crianças menores, oferece uma visão
do funcionamento cognitivo, como compreensão verbal e capacidade
visual-espacial. Segundo Yamasaki, é o mais aplicado no Brasil.
<><>
Escala de Comportamento Adaptativo de Vineland:
-
mede o desenvolvimento de habilidades adaptativas, como comunicação,
habilidades sociais e motoras.
• Dificuldade
de acesso e dados
A
Mensa destaca o Brasil como o primeiro país da América Latina com o maior
número de membros e o vigésimo no ranking mundial, evidenciando um interesse
crescente em superdotação. Atualmente, o país com mais membros registrados na
entidade são os Estados Unidos, com aproximadamente 50 mil inscritos, seguidos
por Inglaterra (17 mil membros) e Alemanha (16 mil membros).
Contudo,
ainda há obstáculos significativos na identificação precoce de habilidades
excepcionais e na orientação para o suporte adequado dessas crianças no país.
Segundo o presidente da Mensa Brasil, Carlos Eduardo Fonseca, falta incentivo e
políticas públicas que facilitem o diagnóstico.
"Hoje,
a Mensa tem membros em quase todos Estados, menos no Acre. Conseguimos
credenciar somente agora uma psicóloga nesse Estado. Nossa dimensão tão
gigantesca acaba inibindo um superdotado no interior da Bahia, ou no interior
de Minas Gerais, por exemplo. Quanto mais perto das capitais, mais fácil. Além
disso, são poucas escolas que vão ter uma oferta de ensino especial", diz.
Para
ele, os países ricos e desenvolvidos conseguem aproveitar melhor indivíduos com
altas habilidades, facilitando o acesso a testes e convívios com especialistas
nos primeiros anos de vida. "Os EUA têm um outro incentivo ali e a gama é
mais alta. Não depende só de política pública. A República Tcheca, por exemplo,
é a única Mensa no mundo que tem uma escola para superdotados. No Brasil, a
gente está engatinhando", afirma Fonseca.
Segundo
Yamasaki, crianças de famílias mais abastadas geralmente têm mais acesso a
ambientes estimulantes, o que pode facilitar a identificação precoce. "Já
em contextos de vulnerabilidade, a superdotação pode ser subdiagnosticada
devido à falta de recursos e oportunidades", pontua.
O
aspecto socioeconômico também foi sentido por Marcela ao acompanhar o filho.
Após a mudança de escola e o diagnóstico, o menino passou a ter acompanhamento
profissional e reforço escolar. "A gente gasta muito dinheiro com ele. Só
de psicólogo e terapia ocupacional é R$ 1,7 mil. A nova escola é muito mais
cara", enumera.
Outro
ponto abordado por Fonseca é a subnotificação de indivíduos superdotados em
famílias sem condições financeiras ou acesso à informação.
O
próprio Fonseca ouviu a vida inteira que era um gênio antes de descobrir, aos
35 anos e depois da morte do pai, que tinha um QI alto. "Eu sofri muito
bullying e acabei desenvolvendo alguma malícia para lidar com isso", diz.
• O papel da
escola e métodos de ensino
Para
crianças superdotadas, ambientes de ensino adaptados ao ritmo e às necessidades
de aprendizado são essenciais. Segundo Yamasaki, práticas como projetos por
interesse, aceleração e agrupamento por habilidades ajudam a equilibrar o
desenvolvimento acadêmico e emocional. "Essas abordagens permitem
flexibilidade curricular, beneficiando tanto o avanço cognitivo quanto o
desenvolvimento socioemocional desses alunos", diz.
O
método Montessori e a abordagem Reggio Emilia podem ser importantes para esse
público, ressalta Zunega.
O
objetivo deve ser dar autonomia à criança, permitindo que ela escolha
atividades conforme seus interesses e capacidades, o que reforça a
responsabilidade pelo próprio aprendizado. Ambientes que incentivam a
independência e o raciocínio criativo também são particularmente úteis, apontam
as especialistas.
Para
Yamasaki, além das metodologias, atividades extracurriculares e suporte
socioemocional são necessários para um desenvolvimento equilibrado, já que
esses alunos frequentemente enfrentam desafios afetivos proporcionais ao seu
desenvolvimento cognitivo.
"Contar
com especialistas em psicologia infantil pode auxiliar no enfrentamento de
problemas como perfeccionismo, autoexigência excessiva, receio do insucesso e
obstáculos na socialização", aponta Zunega.
Fonte:
DW Brasil
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