Por que é
tão difícil traçar a genealogia de pessoas negras no Brasil?
Se
o futuro é ancestral, como recuperar a memória que se apagou? Como acessar as
histórias que a escravidão combinou de silenciar? Enquanto uma parte da
população se beneficiou do sistema da escravidão, pessoas negras sofreram duros
impactos. Um deles foi o apagamento de suas identidades, culturas e
genealogias.
Durante
a pesquisa dos antepassados escravizadores de políticos e autoridades
brasileiras, a equipe de reportagem da Agência Pública percebeu uma dificuldade
em comum ao fazer o levantamento das genealogias: ter acesso a informações
sobre antepassados de pessoas negras e indígenas, assim como a falta de dados
sobre ancestrais negros libertos ou pessoas escravizadas, como sobrenome,
origem e descendentes. Geralmente, essas pessoas eram citadas nos documentos
aos quais tivemos acesso apenas pelo primeiro nome ou por uma alcunha.
Mesmo
com mais de 55% da população sendo negra – considerando a soma dos grupos de
pretos e pardos –, nosso país ainda tem dificuldade de preservar a memória e o
orgulho de quem lutou por liberdade. Um caso emblemático é Zumbi dos Palmares,
líder do Quilombo dos Palmares. Sua história precisou ser recuperada da
narrativa de imagens pejorativas contra ele, como conta Sueli Carneiro. Somente
este ano, a data de sua morte, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, será
celebrada como feriado nacional.
Desde
2003, a Lei 10.639 determina a inclusão de história e culturas africanas no
currículo escolar, mas uma pesquisa realizada no ano passado revelou que sete
em cada dez secretarias de Educação dos municípios fizeram pouco ou nenhuma
ação para implementar esses conteúdos em suas programações. Este ano, o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) provocou os estudantes sobre os “Desafios para
a valorização da cultura africana no Brasil”. Recuperar e manter essa memória é
“um tema político do tempo presente”, diz a professora da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF) Hebe Mattos. Ela é uma das responsáveis pelo “Inventário
dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos
Africanos Escravizados no Brasil”. O projeto também virou o site “Passados
Presentes – Memória da Escravidão no Brasil”.
“A
historiografia da escravidão é fantástica para contar a experiência das pessoas
negras que foram escravizadas. Mas sempre sobre documentos que estão
coisificando essas pessoas. [O nome da pessoa escravizada] Está no inventário,
está num processo de crime como escravo. Para você ter uma outra visão, que não
essa, você só tem a memória e a tradição oral”, explica.
Resgatar
registros históricos e memórias de pessoas escravizadas é um trabalho
dificultado não apenas porque envolve processos de apagamentos, mas também por
traumas sociais, individuais e familiares, e por processos históricos que foram
colocados pela violência da escravidão, pela complexidade das hierarquias desse
sistema, a miscigenação e, também, as migrações, explica a professora Hebe
Mattos.
“Há
processos familiares de apagamento das memórias do cativeiro. É uma memória
difícil, é uma memória traumática. E, quando ela está mais longe no tempo,
sobretudo longe num tempo que passa a própria sociedade escravista, pode
acontecer realmente uma quebra dessa memória”, diz. Os processos de migração
também têm um papel importante no apagamento de memórias e genealogias de
famílias de pessoas negras que foram escravizadas, segundo a pesquisadora. Por
isso, “mesmo com as famílias brancas ou esbranquiçadas você não vai além da terceira geração. Porque,
quando a gente trabalha com os extratos mais subalternos, populares – estou
pensando no campesinato, seja branco ou seja negro –, você tem um processo de
migração, de desenraizamento, então de uma memória genealógica mais curta”.
• “O silêncio
sobre memórias coletivas é uma escolha de sujeitos do presente”
A
dificuldade de recuperar a genealogia de pessoas negras que foram escravizadas
não é um problema de falta de documentos, diz a professora do Instituto Federal
do Pará (IFPA) de Belém e doutora pela Universidade Federal do Pará (UFPA)
Marley Antonia Silva da Silva. “O silêncio sobre memórias coletivas é uma
escolha de sujeitos do presente. Temos que pensar na memória que a gente quer
evocar, porque a gente só faz história partindo do presente. Eu penso que a
memória não consegue se construir fora das coletividades negras que sempre
existiram, que sempre se rearranjaram, que sempre se azeitaram”, explica.
Ela
fez o parecer técnico do Memorial Afro-Amazônico que deve ser construído na
capital paraense. Mesmo com mais de 70% da população no grupo de pessoas negras
– considerando pretos e pardos – na cidade, a professora diz que “é o passado
português que ainda continua muito vivo”. “Uma das formas de descrição de Belém
é: Belém é uma cidade morena. Belém não é morena, Belém é negra. E Belém não é
negra de hoje, Belém é negra do período colonial”, argumenta.
As
pesquisas sobre as figuras históricas de Mariana e Generalda, que lutaram pela
liberdade em Belém no século XIII, foram feitas com consultas às instituições
de preservação de acervos, como o Arquivo Histórico Ultramarino, de Portugal, e
o Arquivo Público do Pará. Mas a memória, segundo ela, se constrói também pelos
relatos das pessoas mais velhas e pelo movimento negro.
Mariana
queria pagar sua alforria ao senhor Augusto Domingues de Sequeira, mas ele
impediu por todos os meios. Africana, como era descrita, enviou seu pedido ao
rei português dom João V. Não há informações sobre se seu pedido foi acatado.
Na mesma Belém, no final do século XIII, Generalda era mãe e queria alforriar a
si mesma e seus três filhos: Vitório, Dionísio e Ignês. Contou com uma rede de
apoio de familiares e amigos para lutar em busca do direito de ser quem ela era
junto aos descendentes. Infelizmente, apenas sua liberdade e de um dos filhos
foi conquistada. A família seguiu separada. Os núcleos familiares são, diz
Marley Antonia Silva da Silva, uma das formas de resistência de histórias e
identidades na escravidão.
“A
busca por memória é um direito individual e também coletivo”, argumenta a
professora. “O Estado, a imprensa, as instituições de ensino têm obrigação com
a memória, com a memória coletiva, de nomear esse passado, de nomear as cores
dos Estados, de dar nome aos sujeitos escravizados e não escravizados, dar nome
a esses escravizadores e a seus não escravizadores. A memória é um direito
coletivo pelo qual nós temos que lutar”, defende.
• As sementes
da memória
Se
as barreiras estão colocadas, a história pode ajudar a derrubá-las para chegar
até a vida de quem foi escravizado, mas não foi reduzido à escravidão. Nilma
Teixeira Accioli é professora doutora em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela descobriu que sua a tataravó, Margarida,
foi escravizada pela família de Manoel Fernandes Barata, cuja família tinha
terras em Campo Grande, no Rio de Janeiro.
A
partir dos relatos que ouvia da avó quando criança, sobre seus ancestrais que
teriam sido escravizados, a pesquisadora passou a procurar os processos
relacionados à família Barata. Ela descobriu que, ao ser capturada por
mercenários ainda em solo africano, Margarida, sua ancestral originária de
Angola, trouxe consigo uma semente de tinhorão – uma planta de folhas grandes e
rajadas. No porão do navio para o Brasil, ela conheceu Gonçalo, do Congo. Hoje,
seus descendentes têm um tinhorão plantado em suas casas.
“Todo
mundo da família tem a semente da batata do tinhorão. É como se a presença de
vó Margarida e de vô Gonçalo estivessem sempre com a gente. Tenho muito orgulho
de descender deles, não tenho orgulho deles terem sido escravizados. Tenho
orgulho deles terem superado a escravização, terem formado a família deles,
terem organizado a família de uma maneira que o amor persistiu durante tantas
gerações. Esse tinhorão é um elo com vô Gonçalo e a vó Margarida”, conta a
professora.
Descobrir
a história de seus ancestrais foi, para Nilma Accioli, descobrir a si mesma.
“Esse caminho é importante que as pessoas sigam. Procurem saber as suas
identidades, porque a valorização da ancestralidade é que dá também o seu
reconhecimento como ser humano. Você não nasceu do nada. Você nasceu de uma
linha genealógica. E isso as pessoas deveriam começar a aprender até nas
escolas de ensino fundamental.”
##
A
investigação foi feita com apoio do Pulitzer Center
Fonte:
Por Pedro Ezequiel, da Agencia Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário