Sara Goes:
Alcateia contra a democracia
A
pressa com que lideranças bolsonaristas se movimentaram para desmentir a
conexão óbvia e pública entre Francisco Wanderley Luiz, o terrorista do recente
atentado em Brasília, e o bolsonarismo é, no mínimo, digna de nota. Mal
surgiram as primeiras notícias, e lá estavam figuras do movimento apressadas,
tratando de esclarecer que aquele “ato isolado” em nada representa a essência
de suas pautas. Reduzir episódios como esse a ações de um lobo solitário é
ignorar um fator crucial: ninguém se radicaliza sozinho. Lobo solitário não
sobrevive em alcateia, e no Brasil essa alcateia tem um nome e um líder
simbólico: Jair Bolsonaro.
A
prisão de integrantes de um grupo de militares de Operações Especiais,
conhecidos como kids pretos a partir da operação da Polícia Federal chamada
Contragolpe, evidenciou como a radicalização política no Brasil transformou
discursos de ódio em ameaças concretas à democracia. O grupo, desmantelado pela
Polícia Federal, planejava atentados contra figuras de destaque, incluindo o
presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em um esforço claro para
desestabilizar as instituições democráticas. A apreensão de documentos,
mensagens e esquemas traçados pelos suspeitos confirmou que os planos iam além
de retórica, envolvendo ações práticas que colocariam em risco a estabilidade
nacional. Esses atos, chamados pelos próprios golpistas de "Punhal Verde e
Amarelo", não podem cair na armadilha anedótica pelo aspecto ridículo e
ser dissociados de um ecossistema político que incentivou a violência como
ferramenta de ação.
Os
kids pretos são militares especializados em operações táticas e articuladores
de estratégias de guerra híbrida, que combinam táticas militares e civis, como
desinformação, sabotagem e ações psicológicas. Essa atuação não é uma teoria
conspiratória ou uma atividade secreta: os próprios integrantes do grupo se
gabam de suas ações em podcasts e eventos de entusiastas do militarismo, cuja
romantização precisa ser examinada à luz de suas consequências no
fortalecimento de ideologias autoritárias.
Em
entrevista ao podcast Fala, Glauber (2022), voltado para aspirantes a carreiras
policiais, o General da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, ex-diretor do
Departamento de Logística do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, falou
sobre estratégias de guerra e operações especiais, abordando o papel de forças
irregulares em cenários de conflito. Ridauto está no centro das investigações
da 18ª fase da Operação Lesa Pátria, suspeito de ser um dos idealizadores ou
executores dos atos, embora afirma ter participado apenas como manifestante
pacífico e deixado o local antes das depredações. O general, associado ao grupo
de elite “kids pretos” das Forças Especiais do Exército, detalhou no podcast as
técnicas utilizadas em operações especiais e o treinamento de forças
irregulares: “O movimento irregular consiste em recrutar pessoas que não são
militares ou que têm o mínimo de experiência militar [...] treinadas para se
tornarem uma força disponível para combate, geralmente atuando por trás das
linhas inimigas, no território do oponente. Nesse contexto, são recrutadas
pessoas locais, muitas vezes dissidentes ou descontentes com o governo
vigente.”
Ridauto
explicou que essas forças, compostas por civis treinados, são usadas para
sabotagens, destruição de infraestrutura e combates diretos: “Nos anos 60 e 70,
no Brasil, surgiram movimentos irregulares que foram combatidos de maneira mais
eficaz quando as forças de operações especiais foram acionadas. [...] Por isso,
nos cursos especiais, ensina-se tanto a criar quanto a desmontar movimentos
irregulares.”
O
desmantelamento da alcateia bolsonarista ainda está longe de ser concluído. Há
lobos cujas prisões são essenciais para desarticular completamente esse
sistema, que opera com uma hierarquia bem definida. Na natureza as alcateias
são organizadas de forma hierárquica, com líderes conhecidos como macho e fêmea
alfa. Outros membros incluem subalternos e, às vezes, lobos subordinados ou
juvenis. Esses animais se comunicam por meio de uivos, expressões corporais e
até marcação de território com urina e fezes. Percebesse a semelhança? A
operação Contragolpe mostrou que a alcateia bolsonarista possui uma estrutura
hierárquica e uma coordenação sofisticada, que combina líderes operacionais,
financiadores e disseminadores de narrativas em redes sociais e eventos públicos.
A
trama também inclui nomes de alto escalão que, até o momento, não foram
formalmente acusados. Um exemplo é o general Walter Braga Netto, cuja casa foi
apontada como local de reuniões em 2022 para planejar ações golpistas,
incluindo atentados contra lideranças democráticas. Apesar de sua proximidade
com os eventos, Braga Netto, uma espécie de lobo subalterno, permanece solto,
mas deve estar com os pelos eriçados. Sua relação com os articuladores do plano
reforça a necessidade de aprofundar investigações e responsabilizar todos os
envolvidos, especialmente as lideranças que ocupavam posições estratégicas na
hierarquia da alcateia.
Enquanto
o Brasil enfrenta ameaças como essa vivemos a necessidade de preservar a
memória de quem, em outros tempos, resistiu ao autoritarismo. Mártires como
Bergson Gurjão, que lutaram contra a ditadura militar, representam o oposto do
extremismo que vemos hoje. Bergson, um jovem idealista que deu sua vida pela
democracia, tornou-se símbolo da luta por liberdade e justiça. Em junho de
1972, aos 25 anos, ele foi morto no Araguaia, durante uma emboscada planejada
pelas forças militares. Seu corpo foi pendurado numa árvore, de cabeça para
baixo, enquanto solados chutavam sua cabeça e posteriormente enterrado de forma
clandestina no cemitério de Xambioá, em uma tentativa do regime de apagar sua
história. Por décadas, Bergson permaneceu desaparecido, até que, em 2009, seus
restos mortais foram identificados e entregues à família, permitindo um
sepultamento digno.
Meus
tios lutaram ao lado de Bergson na Guerrilha do Araguaia, compartilhando a
mesma causa e os mesmos ideais. Em sua memória, meu primo, filho do casal,
recebeu seu nome como uma homenagem à resistência. Assim como a ditadura tentou
apagar a memória de Bergson Gurjão e de tantos outros que resistiram, hoje
vemos novos esforços para manipular narrativas e deslegitimar figuras que
simbolizam a luta pela democracia. Esses ataques, ainda que sutis, pavimentam o
terreno para o fortalecimento do extremismo político. É o caminho que se abre
para a marcha da alcateia.
Em
novembro deste ano, a Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC),
originalmente batizada com o nome de Martins Filho, em homenagem ao fundador e
primeiro reitor da instituição, teria seu nome alterado para homenagear o
ex-estudante assassinado pela Ditadura. A decisão gerou debates intensos e
ressuscitou figuras como o ex-reitor interventor Cândido Albuquerque e o
ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT), ambos lobos em pele de cordeiro, que se
apresentam como defensores da tradição, mas operam para deslegitimar a memória
da resistência democrática. A solução da polêmica sobre a homenagem hoje,
divulgada na mesma manhã da Operação Contragolpe, não encerra a discussão mais
ampla sobre a preservação da memória de combatentes da democracia. Como destaca
Roberto Maciel, em sua análise sobre a manipulação da memória histórica, a
extrema direita busca deslegitimar movimentos de resistência democrática para
glorificar o autoritarismo e justificar ações extremistas contemporâneas. Esse
esforço deliberado para deformar o passado reflete a mesma lógica que tenta
minimizar a gravidade de grupos como os kids pretos, ou o suicida-bomba de
Brasília. Nos três casos há uma tentativa de transformar agressores em vítimas
ou desconectá-los de uma estrutura maior: o bolsonarismo.
A
manipulação histórica serve a um propósito claro. Ao desmerecer símbolos de
resistência como Bergson Gurjão, esses grupos não apenas tentam apagar o
passado, mas também pavimentam o caminho para normalizar atos de violência
política no presente. Essa estratégia cria uma narrativa que relativiza o
extremismo, legitima ações autoritárias e desvaloriza a importância de figuras
que deram suas vidas para garantir as liberdades que temos hoje.
A
radicalização de grupos extremistas, assim como o caso de Francisco Wanderley
Luiz, ilustra a organização hierárquica de uma alcateia. Nesse contexto, Jair
Bolsonaro desempenha o papel do líder alfa, cujo discurso e postura alimentaram
a radicalização de seguidores. Durante anos, o ex-presidente usou a retórica do
"nós contra eles", transformando adversários políticos e instituições
democráticas em inimigos públicos.
É
necessário um esforço contínuo para desmantelar não apenas as estruturas
materiais dessas alcateias, mas também o ambiente simbólico que as alimenta.
Isso implica combater narrativas que romantizam o autoritarismo, fortalecer a
educação para a cidadania e valorizar a memória daqueles que resistiram ao
despotismo. Bergson afinal não deu seu nome à Concha Acústica, mas se tornou
definitivamente mártir e símbolo de uma luta que persiste. Nossa sociedade tem
mais uma oportunidade de reafirmar seu compromisso com a democracia e recusar
qualquer retorno às sombras do autoritarismo, exigindo que toda a alcateia seja
devidamente responsabilizada.
• Reunião na
casa de Braga Netto ocorreu um dia depois da nota dos comandantes militares
estimulando caos. Por Jeferson Miola
O
golpe foi uma diretriz institucional das cúpulas partidarizadas das Forças
Armadas. Bolsonaro, oficiais militares, ativistas midiáticos e políticos
extremistas foram instrumentos deste projeto institucional, não seus
idealizadores centrais.
É
fundamental, neste sentido, que as investigações e as punições alcancem,
também, a mais alta hierarquia militar [1] envolvida desde a concepção do
projeto de poder militar, acalentado muitos anos antes, e [2] atuante na
tentativa de materialização deste projeto antidemocrático.
A
candidatura presidencial de Bolsonaro foi lançada na AMAN, Academia Militar das
Agulhas Negras, ainda em novembro de 2014, em cerimônia de formação de
aspirantes a oficiais então presidida pelo atual comandante do Exército,
general Tomás Paiva, outro personagem da dinâmica golpista que em 2022
comandava o Comando Militar do Sudeste tomado pelo acampamento de golpistas
autorizados por ele a se manterem no local.
E a
vitória eleitoral do Bolsonaro em 2018 foi assegurada pelo Alto Comando do
Exército. O emparedamento do STF para manter a prisão ilegal e inconstitucional
de Lula e tirá-lo do pleito do qual seria vitorioso foi fator decisivo para a
eleição da chapa militar Bolsonaro/Mourão.
O
golpe em 2022 só foi abortado porque naquela ocasião, diferente de 1964, o
governo dos EUA não autorizou a empreitada militar, o que dividiu os
integrantes do Alto Comando. Emissários da Administração Biden foram mandados a
Brasília com instruções diretas de que o regime originado do golpe não seria
aceito e não seria reconhecido pela potência imperial.
O
general Braga Netto foi um personagem central das cúpulas fardadas na
consecução do plano golpista. Ele foi uma peça do jogo desde antes mesmo da
eleição de Bolsonaro.
Designado
interventor federal no Rio de Janeiro em 2018, cumpriu com eficiência a missão
dada a ele pelo Alto Comando. Como reconhecimento por suposto serviço essencial
para o plano militar, Braga Netto foi considerado pelo general Eduardo Villas
Bôas como uma das “três personalidades se destacaram para que o ‘Rio da
História’ voltasse ao seu curso normal”.
As
outras duas “personalidades” eram [1] Bolsonaro, que “traz a necessária
renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre
pensar”; e [2] Sérgio Moro, “protagonista da cruzada contra a corrupção ora em
curso”.
“O
Brasil muito lhes deve”, disse um comovido Villas Bôas ao se despedir do
Comando do Exército [11/1//2019].
Braga
Netto ocupou lugares de alto poder no período Bolsonaro. Foi chefe da Casa
Civil, ministro da Defesa e, na eleição de 2022, integrou a chapa militar como
candidato a vice.
E
ele também teve papel destacado nas articulações de golpe de Estado tramadas
depois da eleição e que, como mostram as investigações da PF, incluíam o
assassinato do Lula e seu vice eleito, Alckmin, e do ministro do STF Alexandre
de Moraes.
Em
12 de novembro de 2022, Braga Netto se reuniu com outros comparsas criminosos
na sua residência para planejar o plano assassinato.
Esta
reunião aconteceu exatamente um dia depois de os comandantes do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica publicarem a nota infame Às instituições e ao povo
brasileiro, em 11 de novembro de 2022.
Naquela
nota, os comandantes atacaram o STF, defenderam os acampamentos criminosos nos
quartéis e estimularam o ambiente de caos e de desestabilização do país.
A
manifestação dos comandantes foi a senha para os dramáticos acontecimentos
subsequentes:
[1]
a articulação de Braga Netto com as forças especiais do Exército [os kids
pretos] para a missão “Punhal Verde Amarelo”,
[2]
as depredações e ataques à PF em Brasília na data de diplomação de Lula e
Alckmin, em 12/12/2022,
[3]
o fracassado atentado terrorista no aeroporto da capital federal, em 24/12/2022
e, finalmente,
[4]
o 8 de janeiro de 2023.
Em
18 de novembro daquele ano Braga Netto tranquilizou bolsonaristas presentes no
Palácio do Alvorada com uma declaração enigmática e que, à luz das novas
descobertas, pode ser interpretada como uma sinalização do andamento do plano
assassino para a tomada de poder: “Não percam a fé. É só o que eu posso falar
para vocês agora”.
A
expectativa de concretização do golpe ainda com Bolsonaro na Presidência durou
pelo menos até o dia 27 de dezembro de 2022, quando faltavam apenas quatro dias
para o fim do governo.
Conversas
legalmente interceptadas mostram o general Braga Netto orientando o capitão
Sérgio Rocha Cordeiro, da equipe de segurança do Bolsonaro, sobre currículo de
uma pessoa buscando vaga de trabalho – “Cordeiro, se continuarmos, poderia
enviar para a Sec. Geral. Fora isso vai ser foda”. Note-se que este diálogo
surreal aconteceu em 27/12/2022, faltando apenas 5 dias para a posse do
presidente Lula.
O
que aconteceu no Brasil no último período não foram atitudes isoladas de alguns
militares inescrupulosos, porque foi um empreendimento arquitetado e cadenciado
pela alta hierarquia militar. A dinâmica golpista envolve as cúpulas
partidarizadas das Forças Armadas.
Além
dos oficiais já identificados e denunciados, é preciso avançar-se em relação a
outros militares envolvidos de diferentes maneiras neste processo e que, apesar
disso, continuam ocupando postos no Alto Comando do Exército. Pelo menos quatro
deles são da mesma turma AMAN do general Mario Fernandes, hoje preso.
Bolsonaro,
Mauro Cid, Braga Netto e outros criminosos não podem servir de biombo para
esconder o envolvimento institucional profundo das Forças Armadas no plano
golpista.
• Mancha verde-oliva.
Por Hildegard Hangel
Vem
de longe no Brasil a articulação de um golpe "verde e amarelo" para
os militares voltarem ao poder. Os militares do mais baixo estrato intelectual
e ideológico.
O
Brasil precisa se livrar disso, dessa eterna nuvem verde oliva ameaçadora, que
plana sobre a nossa Democracia, rangendo seus dentes à mostra, babando
ressentimento e rancor, como sequela de uma anistia que jamais poderia ter
contemplado os "terroristas de estado", isto é, aqueles detentores do
poder de 1964 a 1985, impondo o silêncio, o medo, as torturas, os atentados a
bomba (que eles praticavam para atribuir à resistência juvenil), uma fase
vergonhosa de nosso país.
Temos
que rever nosso comportamento repetitivo de sempre conciliar com nossos
algozes, os inimigos do povo. Precisou haver um ministro do STF firme, como
Alexandre Moraes, para investigar e enfrentar essa corja.
Tudo
estava no pacote do "golpe verde e amarelo", desde o já longínquo
Mentirão, passando pelo golpe em Dilma, com a grande contribuição de Temer
titiretado pelo general linha dura Etchegoyen, passando pela conspiração Lava
Jato, com o boneco de ventríloquo do Departamento de Estado norte-americano, o
ignóbil bat-Moro e o ambicioso "Robin" Dallagnol.
Esse
enredo chinfrim incluiu um STF dominado, humilhado, recebendo ordens de general
pelo Twitter, até o ministro Gilmar Mendes enfim se dar conta do processo
galopante de desmoralização, que o Supremo estava sofrendo, e começar a falar
grosso, denunciando os arbítrios da Lava Jato.
Foram
tantas decepções, aflições, angústias daqueles que enxergavam, pressentiam,
sabiam, denunciavam, contra tudo e contra todos, enquanto a mídia corporativa
enchia essa empada azeda com mais azeitonas, mais enganação, mais mentiras,
mais lixo.
Entrou
nesse jogo a pós-verdade introduzida por Donald Trump (royalties para Steve
Bannon), e veio a enxurrada de esgoto, e o Brasil descendo ladeira abaixo, com
a fakeada, o quasímodo Bolsonaro, subindo a rampa acompanhado pelos generais
dementes, os pastores gananciosos, a família Adams do Alvorada, a matança das
carpas, dos indígenas, da natureza, da COVID, do garimpo, os colares de
diamante...
As
fezes se espalharam e mancharam para sempre a História do Brasil.
#anistianuncamais
Fonte:
Brasil 247
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