sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sara Goes: Alcateia contra a democracia

A pressa com que lideranças bolsonaristas se movimentaram para desmentir a conexão óbvia e pública entre Francisco Wanderley Luiz, o terrorista do recente atentado em Brasília, e o bolsonarismo é, no mínimo, digna de nota. Mal surgiram as primeiras notícias, e lá estavam figuras do movimento apressadas, tratando de esclarecer que aquele “ato isolado” em nada representa a essência de suas pautas. Reduzir episódios como esse a ações de um lobo solitário é ignorar um fator crucial: ninguém se radicaliza sozinho. Lobo solitário não sobrevive em alcateia, e no Brasil essa alcateia tem um nome e um líder simbólico: Jair Bolsonaro.

A prisão de integrantes de um grupo de militares de Operações Especiais, conhecidos como kids pretos a partir da operação da Polícia Federal chamada Contragolpe, evidenciou como a radicalização política no Brasil transformou discursos de ódio em ameaças concretas à democracia. O grupo, desmantelado pela Polícia Federal, planejava atentados contra figuras de destaque, incluindo o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em um esforço claro para desestabilizar as instituições democráticas. A apreensão de documentos, mensagens e esquemas traçados pelos suspeitos confirmou que os planos iam além de retórica, envolvendo ações práticas que colocariam em risco a estabilidade nacional. Esses atos, chamados pelos próprios golpistas de "Punhal Verde e Amarelo", não podem cair na armadilha anedótica pelo aspecto ridículo e ser dissociados de um ecossistema político que incentivou a violência como ferramenta de ação.

Os kids pretos são militares especializados em operações táticas e articuladores de estratégias de guerra híbrida, que combinam táticas militares e civis, como desinformação, sabotagem e ações psicológicas. Essa atuação não é uma teoria conspiratória ou uma atividade secreta: os próprios integrantes do grupo se gabam de suas ações em podcasts e eventos de entusiastas do militarismo, cuja romantização precisa ser examinada à luz de suas consequências no fortalecimento de ideologias autoritárias.

Em entrevista ao podcast Fala, Glauber (2022), voltado para aspirantes a carreiras policiais, o General da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, falou sobre estratégias de guerra e operações especiais, abordando o papel de forças irregulares em cenários de conflito. Ridauto está no centro das investigações da 18ª fase da Operação Lesa Pátria, suspeito de ser um dos idealizadores ou executores dos atos, embora afirma ter participado apenas como manifestante pacífico e deixado o local antes das depredações. O general, associado ao grupo de elite “kids pretos” das Forças Especiais do Exército, detalhou no podcast as técnicas utilizadas em operações especiais e o treinamento de forças irregulares: “O movimento irregular consiste em recrutar pessoas que não são militares ou que têm o mínimo de experiência militar [...] treinadas para se tornarem uma força disponível para combate, geralmente atuando por trás das linhas inimigas, no território do oponente. Nesse contexto, são recrutadas pessoas locais, muitas vezes dissidentes ou descontentes com o governo vigente.”

Ridauto explicou que essas forças, compostas por civis treinados, são usadas para sabotagens, destruição de infraestrutura e combates diretos: “Nos anos 60 e 70, no Brasil, surgiram movimentos irregulares que foram combatidos de maneira mais eficaz quando as forças de operações especiais foram acionadas. [...] Por isso, nos cursos especiais, ensina-se tanto a criar quanto a desmontar movimentos irregulares.”

O desmantelamento da alcateia bolsonarista ainda está longe de ser concluído. Há lobos cujas prisões são essenciais para desarticular completamente esse sistema, que opera com uma hierarquia bem definida. Na natureza as alcateias são organizadas de forma hierárquica, com líderes conhecidos como macho e fêmea alfa. Outros membros incluem subalternos e, às vezes, lobos subordinados ou juvenis. Esses animais se comunicam por meio de uivos, expressões corporais e até marcação de território com urina e fezes. Percebesse a semelhança? A operação Contragolpe mostrou que a alcateia bolsonarista possui uma estrutura hierárquica e uma coordenação sofisticada, que combina líderes operacionais, financiadores e disseminadores de narrativas em redes sociais e eventos públicos.

A trama também inclui nomes de alto escalão que, até o momento, não foram formalmente acusados. Um exemplo é o general Walter Braga Netto, cuja casa foi apontada como local de reuniões em 2022 para planejar ações golpistas, incluindo atentados contra lideranças democráticas. Apesar de sua proximidade com os eventos, Braga Netto, uma espécie de lobo subalterno, permanece solto, mas deve estar com os pelos eriçados. Sua relação com os articuladores do plano reforça a necessidade de aprofundar investigações e responsabilizar todos os envolvidos, especialmente as lideranças que ocupavam posições estratégicas na hierarquia da alcateia.

Enquanto o Brasil enfrenta ameaças como essa vivemos a necessidade de preservar a memória de quem, em outros tempos, resistiu ao autoritarismo. Mártires como Bergson Gurjão, que lutaram contra a ditadura militar, representam o oposto do extremismo que vemos hoje. Bergson, um jovem idealista que deu sua vida pela democracia, tornou-se símbolo da luta por liberdade e justiça. Em junho de 1972, aos 25 anos, ele foi morto no Araguaia, durante uma emboscada planejada pelas forças militares. Seu corpo foi pendurado numa árvore, de cabeça para baixo, enquanto solados chutavam sua cabeça e posteriormente enterrado de forma clandestina no cemitério de Xambioá, em uma tentativa do regime de apagar sua história. Por décadas, Bergson permaneceu desaparecido, até que, em 2009, seus restos mortais foram identificados e entregues à família, permitindo um sepultamento digno.

Meus tios lutaram ao lado de Bergson na Guerrilha do Araguaia, compartilhando a mesma causa e os mesmos ideais. Em sua memória, meu primo, filho do casal, recebeu seu nome como uma homenagem à resistência. Assim como a ditadura tentou apagar a memória de Bergson Gurjão e de tantos outros que resistiram, hoje vemos novos esforços para manipular narrativas e deslegitimar figuras que simbolizam a luta pela democracia. Esses ataques, ainda que sutis, pavimentam o terreno para o fortalecimento do extremismo político. É o caminho que se abre para a marcha da alcateia.

Em novembro deste ano, a Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC), originalmente batizada com o nome de Martins Filho, em homenagem ao fundador e primeiro reitor da instituição, teria seu nome alterado para homenagear o ex-estudante assassinado pela Ditadura. A decisão gerou debates intensos e ressuscitou figuras como o ex-reitor interventor Cândido Albuquerque e o ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT), ambos lobos em pele de cordeiro, que se apresentam como defensores da tradição, mas operam para deslegitimar a memória da resistência democrática. A solução da polêmica sobre a homenagem hoje, divulgada na mesma manhã da Operação Contragolpe, não encerra a discussão mais ampla sobre a preservação da memória de combatentes da democracia. Como destaca Roberto Maciel, em sua análise sobre a manipulação da memória histórica, a extrema direita busca deslegitimar movimentos de resistência democrática para glorificar o autoritarismo e justificar ações extremistas contemporâneas. Esse esforço deliberado para deformar o passado reflete a mesma lógica que tenta minimizar a gravidade de grupos como os kids pretos, ou o suicida-bomba de Brasília. Nos três casos há uma tentativa de transformar agressores em vítimas ou desconectá-los de uma estrutura maior: o bolsonarismo.

A manipulação histórica serve a um propósito claro. Ao desmerecer símbolos de resistência como Bergson Gurjão, esses grupos não apenas tentam apagar o passado, mas também pavimentam o caminho para normalizar atos de violência política no presente. Essa estratégia cria uma narrativa que relativiza o extremismo, legitima ações autoritárias e desvaloriza a importância de figuras que deram suas vidas para garantir as liberdades que temos hoje.

A radicalização de grupos extremistas, assim como o caso de Francisco Wanderley Luiz, ilustra a organização hierárquica de uma alcateia. Nesse contexto, Jair Bolsonaro desempenha o papel do líder alfa, cujo discurso e postura alimentaram a radicalização de seguidores. Durante anos, o ex-presidente usou a retórica do "nós contra eles", transformando adversários políticos e instituições democráticas em inimigos públicos.

É necessário um esforço contínuo para desmantelar não apenas as estruturas materiais dessas alcateias, mas também o ambiente simbólico que as alimenta. Isso implica combater narrativas que romantizam o autoritarismo, fortalecer a educação para a cidadania e valorizar a memória daqueles que resistiram ao despotismo. Bergson afinal não deu seu nome à Concha Acústica, mas se tornou definitivamente mártir e símbolo de uma luta que persiste. Nossa sociedade tem mais uma oportunidade de reafirmar seu compromisso com a democracia e recusar qualquer retorno às sombras do autoritarismo, exigindo que toda a alcateia seja devidamente responsabilizada.

 

•                                    Reunião na casa de Braga Netto ocorreu um dia depois da nota dos comandantes militares estimulando caos. Por  Jeferson Miola

O golpe foi uma diretriz institucional das cúpulas partidarizadas das Forças Armadas. Bolsonaro, oficiais militares, ativistas midiáticos e políticos extremistas foram instrumentos deste projeto institucional, não seus idealizadores centrais.

É fundamental, neste sentido, que as investigações e as punições alcancem, também, a mais alta hierarquia militar [1] envolvida desde a concepção do projeto de poder militar, acalentado muitos anos antes, e [2] atuante na tentativa de materialização deste projeto antidemocrático.

A candidatura presidencial de Bolsonaro foi lançada na AMAN, Academia Militar das Agulhas Negras, ainda em novembro de 2014, em cerimônia de formação de aspirantes a oficiais então presidida pelo atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, outro personagem da dinâmica golpista que em 2022 comandava o Comando Militar do Sudeste tomado pelo acampamento de golpistas autorizados por ele a se manterem no local.

E a vitória eleitoral do Bolsonaro em 2018 foi assegurada pelo Alto Comando do Exército. O emparedamento do STF para manter a prisão ilegal e inconstitucional de Lula e tirá-lo do pleito do qual seria vitorioso foi fator decisivo para a eleição da chapa militar Bolsonaro/Mourão.

O golpe em 2022 só foi abortado porque naquela ocasião, diferente de 1964, o governo dos EUA não autorizou a empreitada militar, o que dividiu os integrantes do Alto Comando. Emissários da Administração Biden foram mandados a Brasília com instruções diretas de que o regime originado do golpe não seria aceito e não seria reconhecido pela potência imperial.

O general Braga Netto foi um personagem central das cúpulas fardadas na consecução do plano golpista. Ele foi uma peça do jogo desde antes mesmo da eleição de Bolsonaro.

Designado interventor federal no Rio de Janeiro em 2018, cumpriu com eficiência a missão dada a ele pelo Alto Comando. Como reconhecimento por suposto serviço essencial para o plano militar, Braga Netto foi considerado pelo general Eduardo Villas Bôas como uma das “três personalidades se destacaram para que o ‘Rio da História’ voltasse ao seu curso normal”.

As outras duas “personalidades” eram [1] Bolsonaro, que “traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar”; e [2] Sérgio Moro, “protagonista da cruzada contra a corrupção ora em curso”.

“O Brasil muito lhes deve”, disse um comovido Villas Bôas ao se despedir do Comando do Exército [11/1//2019].

Braga Netto ocupou lugares de alto poder no período Bolsonaro. Foi chefe da Casa Civil, ministro da Defesa e, na eleição de 2022, integrou a chapa militar como candidato a vice.

E ele também teve papel destacado nas articulações de golpe de Estado tramadas depois da eleição e que, como mostram as investigações da PF, incluíam o assassinato do Lula e seu vice eleito, Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes.

Em 12 de novembro de 2022, Braga Netto se reuniu com outros comparsas criminosos na sua residência para planejar o plano assassinato.

Esta reunião aconteceu exatamente um dia depois de os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica publicarem a nota infame Às instituições e ao povo brasileiro, em 11 de novembro de 2022.

Naquela nota, os comandantes atacaram o STF, defenderam os acampamentos criminosos nos quartéis e estimularam o ambiente de caos e de desestabilização do país.

A manifestação dos comandantes foi a senha para os dramáticos acontecimentos subsequentes:

[1] a articulação de Braga Netto com as forças especiais do Exército [os kids pretos] para a missão “Punhal Verde Amarelo”,

[2] as depredações e ataques à PF em Brasília na data de diplomação de Lula e Alckmin, em 12/12/2022,

[3] o fracassado atentado terrorista no aeroporto da capital federal, em 24/12/2022 e, finalmente,

[4] o 8 de janeiro de 2023.

Em 18 de novembro daquele ano Braga Netto tranquilizou bolsonaristas presentes no Palácio do Alvorada com uma declaração enigmática e que, à luz das novas descobertas, pode ser interpretada como uma sinalização do andamento do plano assassino para a tomada de poder: “Não percam a fé. É só o que eu posso falar para vocês agora”.

A expectativa de concretização do golpe ainda com Bolsonaro na Presidência durou pelo menos até o dia 27 de dezembro de 2022, quando faltavam apenas quatro dias para o fim do governo.

Conversas legalmente interceptadas mostram o general Braga Netto orientando o capitão Sérgio Rocha Cordeiro, da equipe de segurança do Bolsonaro, sobre currículo de uma pessoa buscando vaga de trabalho – “Cordeiro, se continuarmos, poderia enviar para a Sec. Geral. Fora isso vai ser foda”. Note-se que este diálogo surreal aconteceu em 27/12/2022, faltando apenas 5 dias para a posse do presidente Lula.

O que aconteceu no Brasil no último período não foram atitudes isoladas de alguns militares inescrupulosos, porque foi um empreendimento arquitetado e cadenciado pela alta hierarquia militar. A dinâmica golpista envolve as cúpulas partidarizadas das Forças Armadas.

Além dos oficiais já identificados e denunciados, é preciso avançar-se em relação a outros militares envolvidos de diferentes maneiras neste processo e que, apesar disso, continuam ocupando postos no Alto Comando do Exército. Pelo menos quatro deles são da mesma turma AMAN do general Mario Fernandes, hoje preso.

Bolsonaro, Mauro Cid, Braga Netto e outros criminosos não podem servir de biombo para esconder o envolvimento institucional profundo das Forças Armadas no plano golpista.

 

•                                    Mancha verde-oliva. Por Hildegard Hangel

Vem de longe no Brasil a articulação de um golpe "verde e amarelo" para os militares voltarem ao poder. Os militares do mais baixo estrato intelectual e ideológico.

O Brasil precisa se livrar disso, dessa eterna nuvem verde oliva ameaçadora, que plana sobre a nossa Democracia, rangendo seus dentes à mostra, babando ressentimento e rancor, como sequela de uma anistia que jamais poderia ter contemplado os "terroristas de estado", isto é, aqueles detentores do poder de 1964 a 1985, impondo o silêncio, o medo, as torturas, os atentados a bomba (que eles praticavam para atribuir à resistência juvenil), uma fase vergonhosa de nosso país.

Temos que rever nosso comportamento repetitivo de sempre conciliar com nossos algozes, os inimigos do povo. Precisou haver um ministro do STF firme, como Alexandre Moraes, para investigar e enfrentar essa corja.

Tudo estava no pacote do "golpe verde e amarelo", desde o já longínquo Mentirão, passando pelo golpe em Dilma, com a grande contribuição de Temer titiretado pelo general linha dura Etchegoyen, passando pela conspiração Lava Jato, com o boneco de ventríloquo do Departamento de Estado norte-americano, o ignóbil bat-Moro e o ambicioso "Robin" Dallagnol.

Esse enredo chinfrim incluiu um STF dominado, humilhado, recebendo ordens de general pelo Twitter, até o ministro Gilmar Mendes enfim se dar conta do processo galopante de desmoralização, que o Supremo estava sofrendo, e começar a falar grosso, denunciando os arbítrios da Lava Jato.

Foram tantas decepções, aflições, angústias daqueles que enxergavam, pressentiam, sabiam, denunciavam, contra tudo e contra todos, enquanto a mídia corporativa enchia essa empada azeda com mais azeitonas, mais enganação, mais mentiras, mais lixo.

Entrou nesse jogo a pós-verdade introduzida por Donald Trump (royalties para Steve Bannon), e veio a enxurrada de esgoto, e o Brasil descendo ladeira abaixo, com a fakeada, o quasímodo Bolsonaro, subindo a rampa acompanhado pelos generais dementes, os pastores gananciosos, a família Adams do Alvorada, a matança das carpas, dos indígenas, da natureza, da COVID, do garimpo, os colares de diamante...

As fezes se espalharam e mancharam para sempre a História do Brasil. #anistianuncamais

 

Fonte: Brasil 247

 

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