sexta-feira, 22 de novembro de 2024

As mulheres negras que ajudaram a construir o Brasil

Laudelina de Campos Melo fundou, nos anos 1930, a primeira associação para empregadas domésticas no Brasil.

Mariana Preta Courá recorreu ao sistema judicial para reivindicar sua liberdade um século e meio antes da abolição da escravatura, em 1738.

Iyalorixá Obá Biyí, a Mãe Aninha, impulsionou a promulgação do decreto que extinguiu a proibição aos cultos afro-brasileiros no governo Getúlio Vargas, em 1934.

Essas são algumas das cem mulheres negras apresentadas no livro Dicionário Biográfico – Histórias Entrelaçadas de Mulheres Afrodiaspóricas (Editora Malê e Flup, 2024), que conta a história de figuras conhecidas ou desconhecidas que deixaram sua marca no Brasil (leia um resumo de três perfis ao fim da reportagem).

O esforço é de resgatar e dar visibilidade a trajetórias de protagonismo, resistência, pioneirismo, feminismo – seja no cenário nacional ou no âmbito local e comunitário.

“O livro contém biografias de cem mulheres afrodiaspóricas que atravessaram e se entrelaçaram com a história do Brasil”, explica a historiadora e socióloga Thais Alves Marinho, organizadora do livro com a historiadora Rosinalda Corrêa da Silva Simoni, professora na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e pesquisadora da PUC-Goiás.

O termo “afrodiaspóricas” reflete a concepção de que não é raça que une pessoas negras no Brasil, mas sim as resistências que surgem da Diáspora, após o violento movimento transatlântico de saída forçada da África para o Brasil, explica Marinho.

“Nossa identidade está atravessada por esse processo violento, que é racista”, afirma ela, que coordena o Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Goiás.

A ideia de compor o dicionário surgiu a partir da criação da Rede Latino-Americana e Caribenha sobre Feminismos de Terreiros (Relfet), em 2020, com a proposta de estudar a organização coletiva de mulheres negras após a Diáspora no contexto da América Latina e Caribe.

Para as organizadoras, as diferentes formas de engajamento, lutas e resistência dessas mulheres seria um primeiro movimento social feminista – anterior mesmo à constituição do feminismo ocidental, a partir do fim do século 19.

“Em todo o território brasileiro, encontramos mulheres que se organizaram e não se deixaram oprimir, seja nos quilombos, nos terreiros, nas irmandades católicas, ocupando lugares na sociedade, nos entre-lugares que não eram disputados por brancos”, descreve Marinho.

<><> Quilombolas, celebridades, mães de santo

Estão presentes biografias de figuras renomadas, como Carolina Maria de JesusMarielle FrancoElza Soares, Daiane dos Santos, Dona Ivone Lara, Lélia Gonzalez.

Mas também há uma miríade de nomes desconhecidos, não apenas do grande público, mas também das 120 autoras dos verbetes do livro, que reviraram arquivos e colheram depoimentos orais para resgatar histórias marcantes de mulheres negras, também documentando histórias no presente ou passado recente.

Um exemplo é o verbete sobre Maria Corrêa da Silva, que deixou o quilombo de Água Limpa, em Goiás, para se tornar empregada doméstica na cidade grande e dar sustento – e estudo – aos filhos. Suas três filhas também se tornaram empregadas ainda crianças, com a condição de que seguissem com a escola de tarde.

Uma delas se tornou historiadora e arqueóloga: é a organizadora do livro, Rosinalda Corrêa da Silva Simoni. O verbete que escreveu sobre a mãe traz o subtítulo “Chamem-nos pelo nosso Nome: Trabalho Doméstico e Invisibilidade Social.”

“Nesse verbete, trago uma história cabulosa de como as mulheres negras e as crianças quilombolas são tratadas no antro das casas grandes”, descreveu Simoni no lançamento do livro.

<><> Quilombo acadêmico

Dicionário Biográfico foi lançado em novembro na Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio, que propôs verter o palco do Circo Voador, na Lapa, em um “quilombo acadêmico”.

Foram sete mesas de debates discutindo recortes das biografias, como quilombolas e trabalhadoras no pós-abolição, mães de santo, militantes e políticas.

Dicionário Biográfico não foi escrito a duas ou quatro mãos, mas sim a... 240.

Envolveu 120 autoras – no feminino, pois os homens formam uma pequena parcela.

A organizadora Thais Alves Marinho descreve as participantes: “Temos líderes quilombolas e de movimentos sociais, pessoas sem instrução de ensino superior, assim como militantes políticas e pesquisadoras da universidade, desde pós-doutoras a graduandas”.

Sessenta dessas autoras participaram dos debates evocando um quilombo acadêmico na FLUP, ressaltando o caráter coletivo da produção. As conversas destacavam não apenas as histórias das biografadas, como também o processo de pesquisa e de descobertas das próprias escritoras ao participar do projeto.

Tudo inspirado pela obra da historiadora e poeta Beatriz Nascimento, que foi tema da FLUP 2024 e defendia uma história escrita por mãos negras.

“Ela diz que cada um de nós, afrodiaspóricos, se torna um quilombo. Este não é necessariamente um espaço territorial. A construção de um quilombo acadêmico é uma forma de homenageá-la e reproduzir o que ela diz ser nosso papel de resistir, de lutar e dar visibilidade a essa história”, diz Marinho. “Estamos tentando trazer isso para a academia, que é tão branca, eurocêntrica e individualista e hierárquica.”

Leia abaixo um resumo de três biografias do livro.

<><> Laudelina de Campos Melo

Nascida em Poços de Caldas (MG) em 1904, Laudelina começou a trabalhar como babá aos 7 anos e foi empregada doméstica ao longo de grande parte da vida. Na juventude, teria trabalhado como copeira para a família de Juscelino Kubitschek. Aos 16 anos, começou a ter experiência política em um grupo de militância negra.

Em 1936, fundou a primeira associação para empregadas domésticas no país, em Santos, e filiou-se ao Partido Comunista do Brasil. A Associação Beneficente das Domésticas tinha “objetivo de proteger as domésticas das violações de seus direitos fundamentais”, segundo o verbete de Luciana de Oliveira Dias. Mas foi proibida durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e reprimida durante a ditadura militar.

Ao longo das décadas, Laudelina lutou pela regulamentação da profissão de empregada doméstica e pela transformação da associação em sindicato, sonho este que só se concretizou após a promulgação da Constituição de 1988, quando Laudelina e outras companheiras se mobilizaram ao lado da então deputada federal Benedita da Silva.

Em 1989, em Campinas, foi fundada a Casa Laudelina de Campos Melo, uma ONG voltada para angariar recursos para políticas voltadas para mulheres negras. Laudelina se manteve engajada na causa até a morte, aos 87 anos, em 1991.

<><> Iyalorixá Obá Biyí, ou Mãe Aninha

Eugênia Anna dos Santos (1869-1938), mais conhecida como Mãe Aninha, foi das mães de santo mais influentes de Salvador nas primeiras décadas do século 20.

Tornou-se conhecida nacionalmente por sua influência na promulgação, durante o primeiro governo Getúlio Vargas, do Decreto Presidencial 1.202, que exinguiu a proibição aos cultos afro-brasileiros em 1934 – obtendo o apoio de Oswaldo Aranha, então Ministro da Fazenda, que era próximo de Mãe Aninha e teria intercedido para que tivesse um encontro com Getúlio Vargas.

Mãe Aninha era filha de pais dos povos Grunci e Ketu, e foi iniciada nos cultos africanos ainda na infância. Começou sua vida de sacerdotisa com pouco mais de 30 anos. Seu terreiro, Ilê Axé Opô Afonjá, se transferiu para diversos endereços em Salvador até se instalar definitivamente no alto de São Gonçalo, no bairro do Retiro, onde fica até hoje.

A iyalorixá “lutava para que os povos descendentes de africanos tivessem sua cultura reconhecida e valorizada”, descrevem os autores do verbete, Rosinalda Simoni e Robson Max de Oliveira Souza.

Mãe Aninha “projetou a mulher negra nos espaços de poder não apenas religioso, mas também político e social”, o que se refletiu também em sua casa de axé, onde sempre se preocupou em projetar as mulheres como protagonistas nos cargos e na organização hierárquica.

<><> Mariana Preta Courá

Africana da nação Corana, na Costa da Mina, África Ocidental, Mariana Preta Courá teria sido embarcada no Golfo do Benim na primeira metade do século 18. Em vez de terminar na Bahia, Recife ou Rio de Janeiro, destinos mais comuns para essa procedência, foi parar em Belém do Pará.

Em 1738, Mariana fez um pedido formal de alforria à Justiça, no processo que provavelmente seja o primeiro registro desse tipo para o período em Belém.

Pelo processo, sabe-se que Mariana conseguiu o valor correspondente à sua alforria de uma pessoa que não é nomeada para comprar a liberdade de volta de Augusto Domingues da Siqueira, para quem já trabalhava havia seis anos.

Apesar do registro judicial do caso, permanecem inúmeras perguntas abertas sobre a trajetória de Mariana. Fundamentalmente: qual foi o desfecho do caso?

“Não foi possível identificar se houve uma resposta ao requerimento vinda do reino e, por conseguinte, se Maria Antônia conseguiu ou não sua liberdade”, escreve a autora do verbete, Marley Antônia Silva da Silva.

“É possível, porém, afirmar a existência e o protagonismo dessa africana mina, que empenhou esforços, por meios institucionais, para alcançar sua liberdade. Deixando trilhas de busca por emancipação, evidenciando que era inconformada, insubmissa e resistente.”

 

¨      Quem foi o 1º e único presidente negro do Brasil

No dia 14 de junho de 1909, o sexto presidente da República do Brasil, em exercício, morreu. Afonso Pena (1847-1909) estava no terceiro ano de seu mandato e teve uma forte pneumonia. Assumiu o Executivo, então, o vice: o político e advogado Nilo Peçanha (1867-1924).

De origem humilde, ele é considerado o primeiro presidente negro da história brasileira. Mas naquele início de século 20, com a preponderância de teorias racistas e uma ideia de embranquecimento da população, sua própria identidade racial se tornou objeto de controvérsia.

“Rigorosamente, ele era um mestiço”, define à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS), lembrando que pelas categorias oficialmente utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ele seria classificado como pardo.

“Isso não era uma questão [naquela época]. A começar porque ele não se reconhecia como um afrodescendente. Segundo porque ele até foi alvo de charges e pilhérias racializadas por parte da imprensa, mas socialmente ele não era visto nem tratado pelas lentes do racismo que ousava dizer o seu nome na Primeira República”, acrescenta o professor.

“Pode-se dizer que ele foi racializado sobretudo pelos adversários, desafetos ou em situações de disputas políticas”, diz Domingues.

Para o historiador Vitor Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, é preciso ressaltar que Peçanha governou o país “em um período profundamente marcado pelo racismo científico”. “Doutrinas como a frenologia e a eugenia ganhavam força no país, legitimando teorias que buscavam justificar a marginalização de pessoas negras e mestiças”, diz ele à BBC News Brasil.

Ele lembra que na época teorias como as defendidas pelo médico e antropólogo Nina Rodrigues (1862-1906) tinham força e “associavam características físicas a predisposições comportamentais, reforçando estigmas que perpetuavam a exclusão racial”.

“Descrito como mulato por seus contemporâneos, Peçanha tornou-se alvo constante de ridicularizações. Na imprensa, era caricaturado em charges e anedotas que enfatizavam sua cor de pele de maneira depreciativa. Durante sua juventude, era chamado pejorativamente de 'o mestiço do Morro do Coco’, em referência ao pequeno distrito rural de suas origens”, acrescenta Soares. “Esses ataques refletem o racismo estrutural da sociedade brasileira, que via na ascensão de um homem mestiço ao poder uma ameaça à hierarquia racial estabelecida.”

“Ele foi de plena época em que o processo de racialização das relações estava em curso. Mas também uma época em que se apostava ou se tinha a expectativa da ascensão do mulato e, quiçá, da extinção do preto”, explica à BBC News Brasil a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro da Rede de Historiadorxs Negrxs e autora de Entre a Escravidão e a Liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição, entre outros.

A historiadora conta que “se apostava no mestiço para conduzir o embranquecimento da sociedade brasileira”.

“Nilo Peçanha era criticado como ‘mulato’, termo usado de forma pejorativa, e não havia uma perspectiva de elevação de seu caráter, da sua importância, da sua representatividade enquanto pardo ou negro”, analisa à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não havia isso na época.”

“A conjuntura era do favorecimento da vinda de imigrantes estrangeiros para o Brasil, na ideia de que europeus brancos iriam, de certa forma, trazer o progresso para o Brasil. E que, muito entre aspas, a raça negra iria perdendo força, desaparecendo, a partir da miscigenação com uma raça branca superior, também entre aspas”, completa ele.

<><> Casamento foi polêmico

Nascido em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, ele era filho de um padeiro e de uma filha de agricultores. Com seis irmãos, teve uma infância pobre em um sítio. A família se mudou para a cidade quando Peçanha chegou à idade escolar. Foi no meio urbano que seu pai ganhou o epíteto pelo qual seria conhecido, virou “Sebastião da padaria”.

Ele estudou direito na Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, mas acabou concluindo o curso na Faculdade do Recife.

Seu casamento chocou a sociedade da época: a noiva, Ana de Castro Belisário Soares de Sousa, a Anita, era de família rica de Campos dos Goytacazes, neta de um visconde e bisneta de dois barões.

Como seus pais eram contra o casamento — com um pobre e mulato —, Ana fugiu de casa e foi viver com uma tia. Depois do matrimônio oficializado, em 6 de dezembro de 1895, diversos parentes da aristocracia fluminense cortaram relações com ela.

“O matrimônio foi inicialmente rechaçado pela família de Anita, que considerava inadequado o casamento de uma jovem de sangue nobre com alguém pobre e mestiço”, contextualiza o historiador Soares. “Anita chegou a fugir de casa para concretizar a união, um escândalo social que refletia as barreiras impostas pelas estruturas raciais e de classe da época.”

Questões pessoais à parte, Peçanha trilhava uma sólida carreira política. Em 1890, reconhecido por seu engajamento nas lutas abolicionista e republicana, foi eleito para a Assembleia Constituinte que redigiu a primeira Carta Magna da República.

Foi deputado até 1902. No ano seguinte, tornou-se presidente do Rio de Janeiro — cargo equivalente ao atual governador. Em 1906 foi eleito vice-presidente da República.

“Do casamento às suas relações dentro do núcleo político, mesmo que ele fosse ligado a parte da elite carioca, o fato de ele ter sido uma pessoa negra, chamado na época de mulato, era uma questão”, comenta à BBC News Brasil o historiador Phillippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Isso tinha impacto sobre sua pessoa como político.”

Reis diz que políticos e formadores de opinião da época que atacavam Nilo Peçanha costumavam citar “a cor da pele dele, condição quase sempre trazida como uma caricatura, como desleixo, como se fosse a cor de alguém que não tivesse a capacidade de gerir o país”.

“Os traços físicos eram destacados [pelos críticos], o cabelo crespo era associado à questão de que ele não seria necessariamente uma pessoa preparada”, conta.

<><> Na Presidência

Quando ele assumiu o governo do Brasil, substituindo Afonso Pena, trouxe para si o lema “paz e amor”. Era uma tentativa de apaziguar os ânimos da oposição. “Alguns jornais chegaram a publicar comentários políticos que questionavam a capacidade do presidente na condução do país pelo fato de ele ser negro”, ressalta à BBC News Brasil o filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de de Paulo (FESPSP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

“Ou seja: apesar de ele circular em meios políticos dominados por brancos, parte da opinião pública o questionava, associando o fato de ele ser negro a eventuais dificuldades em sua capacidade de conduzir o país”, observa.

“Paradoxalmente, quando Peçanha alcançou destaque na política nacional, a elite brasileira, alinhada com os ideais de branqueamento, tentou ‘corrigir’ sua imagem”, conta Soares. “Fotografias oficiais e retratos eram manipulados para clarear sua pele e aproximá-lo dos padrões eurocêntricos, numa tentativa de apagar qualquer traço de diversidade racial em figuras públicas de prestígio.”

Em sua curta passagem pelo Palácio do Catete, deixou duas marcas importantes. Foi ele quem criou o Serviço de Proteção aos Índios, órgão que antecedeu a atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Peçanha também fundou a Escola de Aprendizes Artífices, primeira instituição de ensino técnico do país sem ligação com os militares. Esta escola é considerada a precursora do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet). E por causa disso em 2011 ele foi homenageado com uma lei federal que o tornou o patrono da educação profissional e tecnológica no Brasil.

O historiador Reis lembra ainda que Peçanha procurou encontrar soluções para diminuir o problema da falta de habitação no país. Ele tinha experiência nisso, pois foi uma questão enfrentada durante seu governo no Rio, anteriormente. E, a julgar pela repercussão da imprensa da época, foi este um assunto no qual ele convenceu a opinião pública de que era uma pessoa capacitada.

“O assunto é de máxima importância e pode e deve ser resolvido pelo governo do dr. Nilo Peçanha, que já tem dado provas de que é homem de capacidade para resolver os mais sérios problemas sem delongas”, publicou o jornal A Imprensa, do Rio, em 19 de agosto de 1909.

Seu mandato se encerrou em 15 de novembro de 1910. Depois da Presidência, ele ainda seguiu na política. Foi senador, novamente presidente do Rio, ministro das Relações Exteriores e mais uma vez senador. Em 1921, foi candidato à Presidência, sendo derrotado por Artur Bernardes (1875-1955).

Nilo Peçanha morreu em 1924, vítima de um problema cardíaco causado pela doença de Chagas. Há dois municípios brasileiros que o homenageiam com o nome: Nilo Peçanha, na Bahia, e Nilópolis, na região metropolitana do Rio.

<><> Debate racial

“O fato de termos um negro na política sempre foi e sempre será uma questão no Brasil. Ainda mais um presidente. Vivemos em um país racializado, com um histórico de escravidão extremamente violento, recente e ainda presente”, à BBC News Brasil o sociólogo Giuliano Salvarani, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Nilo Peçanha é um personagem interessante justamente por romper essa barreira racial de representação política, tendo um papel importante na história do nosso país.”

A questão racial de Peçanha é tema de debate pelo simbolismo do fato de ele ter sido um presidente negro — ainda que em um tempo em que essa questão não era posta à mesa de forma identitária como hoje. Por isso, as controvérsias são muitas.

“De fato, ele foi acusado de ser mal resolvido com sua identidade racial e de ter retocado fotografias oficiais, para escamotear sua origem afrodescendente, mas não me parece que isso seja branqueamento”, afirma Domingues. “A importância de hoje reconhecermos a sua negritude tem a ver, em primeiro lugar, com um acerto de contas com certa narrativa histórica que operou com invisibilidades e apagamentos de personagens afro-brasileiros. Em segundo lugar, com as questões do tempo presente, em que a história e cultura afro-brasileira ou, antes, as questões raciais ganham destaque na agenda nacional, a partir do protagonismo negro, das políticas de ações afirmativas, do debate sobre representatividade, etc.”

A historiadora Santos entende que a identidade racial de Peçanha não foi ocultada à época, justamente por causa do que publicavam os jornais, que costumavam descrevê-lo como “rapaz moreno, de cabelos negros e anelados, olhar profundo e superior”.

“Nos últimos anos, os movimentos negros também entenderam que referências históricas em posição de destaque poderiam contribuir para o fortalecimento do pertencimento étnico, e para o orgulho deste pertencimento, por grande parcela de brasileiros constituídas por negros, negras e indígenas”, acrescenta ela. “Assim, com base em pesquisas históricas, recupera-se o protagonismo personalidades como Nilo Peçanha. Essas ações colaboram para o processo de emancipação do povo negro em termos reparação simbólica.”

Soares diz que “reconhecer a negritude de Nilo Peçanha é um ato de resgate histórico e político, especialmente em um país que sistematicamente negou e apagou as constribuições de pessoas negras em posições de liderança”.

“Durante sua vida e carreira, Peçanha foi vítima de práticas que buscavam roubar e esconder sua identidade racial”, afirma ele. “Essa é a história da cor roubada, como alguns historiadores descrevem e, no caso de Peçanha, deliberadamente escondida.”

O historiador lembra que até mesmo a biografia oficial de Nilo Peçanha, escrita por seu parente, o jornalista, advogado e político Celso Peçanha (1916-2016), “nada menciona sobre suas origens raciais”. “E seus descendentes negaram consistentemente que ele fosse mulato, apesar de sua tez escura”, ressalta.

“A negritude é atribuída historicamente. Nilo Peçanha não se reconhecer e não ser reconhecido como negro é importantíssimo para entendermos a natureza social no racismo e dos processos de racialização de pessoas negras, principalmente na política”, diz o sociólogo Salvarani. “Agora as razões sociológicas desses processos político-raciais envolvendo Nilo Peçanha são singulares e uma oportunidade única para que mais pessoas radicalizadas se encorajem de participar da política em seus diversos níveis e espaços.”

Ramirez atenta para outra questão: os materiais didáticos que ensinam história no Brasil. “Boa parte dos livros escolares negligenciam o fato de ele ser negro. E isso mostra como a história é sempre a história de uma elite branca, esquecendo-se dos protagonistas negros deste país”, comenta.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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