As
mulheres negras que ajudaram a construir o Brasil
Laudelina
de Campos Melo fundou, nos anos 1930, a primeira
associação para empregadas domésticas no Brasil.
Mariana
Preta Courá recorreu ao sistema judicial para reivindicar sua liberdade um
século e meio antes da abolição da escravatura, em 1738.
Iyalorixá
Obá Biyí, a Mãe Aninha, impulsionou a promulgação do decreto que extinguiu a
proibição aos cultos afro-brasileiros no governo Getúlio
Vargas, em 1934.
Essas
são algumas das cem mulheres
negras apresentadas no livro Dicionário
Biográfico – Histórias Entrelaçadas de Mulheres Afrodiaspóricas (Editora
Malê e Flup, 2024), que conta a história de figuras conhecidas ou desconhecidas
que deixaram sua marca no Brasil (leia um resumo de três perfis ao fim da
reportagem).
O
esforço é de resgatar e dar visibilidade a trajetórias de protagonismo,
resistência, pioneirismo, feminismo – seja no cenário nacional ou no âmbito
local e comunitário.
“O
livro contém biografias de cem mulheres afrodiaspóricas que atravessaram e se
entrelaçaram com a história do Brasil”, explica a historiadora e socióloga
Thais Alves Marinho, organizadora do livro com a historiadora Rosinalda Corrêa
da Silva Simoni, professora na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e
pesquisadora da PUC-Goiás.
O
termo “afrodiaspóricas” reflete a concepção de que não é raça que une pessoas
negras no Brasil, mas sim as resistências que surgem da Diáspora, após o
violento movimento transatlântico de saída forçada da África para o Brasil,
explica Marinho.
“Nossa
identidade está atravessada por esse processo violento, que é racista”, afirma
ela, que coordena o Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Goiás.
A
ideia de compor o dicionário surgiu a partir da criação da Rede
Latino-Americana e Caribenha sobre Feminismos de Terreiros (Relfet), em 2020,
com a proposta de estudar a organização coletiva de mulheres negras após a
Diáspora no contexto da América Latina e Caribe.
Para
as organizadoras, as diferentes formas de engajamento, lutas e resistência
dessas mulheres seria um primeiro movimento social feminista – anterior mesmo à
constituição do feminismo ocidental, a partir do fim do século 19.
“Em
todo o território brasileiro, encontramos mulheres que se organizaram e não se
deixaram oprimir, seja nos quilombos, nos terreiros, nas irmandades católicas,
ocupando lugares na sociedade, nos entre-lugares que não eram disputados por
brancos”, descreve Marinho.
<><> Quilombolas, celebridades, mães de santo
Estão
presentes biografias de figuras renomadas, como Carolina
Maria de Jesus, Marielle Franco, Elza
Soares, Daiane dos Santos, Dona
Ivone Lara, Lélia Gonzalez.
Mas
também há uma miríade de nomes desconhecidos, não apenas do grande público, mas
também das 120 autoras dos verbetes do livro, que reviraram arquivos e colheram
depoimentos orais para resgatar histórias marcantes de mulheres negras, também
documentando histórias no presente ou passado recente.
Um
exemplo é o verbete sobre Maria Corrêa da Silva, que deixou o quilombo de Água
Limpa, em Goiás, para se tornar empregada doméstica na cidade grande e dar
sustento – e estudo – aos filhos. Suas três filhas também se tornaram
empregadas ainda crianças, com a condição de que seguissem com a escola de
tarde.
Uma
delas se tornou historiadora e arqueóloga: é a organizadora do livro, Rosinalda
Corrêa da Silva Simoni. O verbete que escreveu sobre a mãe traz o subtítulo
“Chamem-nos pelo nosso Nome: Trabalho Doméstico e Invisibilidade Social.”
“Nesse
verbete, trago uma história cabulosa de como as mulheres negras e as crianças
quilombolas são tratadas no antro das casas grandes”, descreveu Simoni no
lançamento do livro.
<><> Quilombo acadêmico
O Dicionário
Biográfico foi lançado em novembro na Festa Literária das Periferias
(FLUP), no Rio, que propôs verter o palco do Circo Voador, na Lapa, em um
“quilombo acadêmico”.
Foram
sete mesas de debates discutindo recortes das biografias, como quilombolas e
trabalhadoras no pós-abolição, mães de santo, militantes e políticas.
O Dicionário
Biográfico não foi escrito a duas ou quatro mãos, mas sim a... 240.
Envolveu
120 autoras – no feminino, pois os homens formam uma pequena parcela.
A
organizadora Thais Alves Marinho descreve as participantes: “Temos líderes
quilombolas e de movimentos sociais, pessoas sem instrução de ensino superior,
assim como militantes políticas e pesquisadoras da universidade, desde
pós-doutoras a graduandas”.
Sessenta
dessas autoras participaram dos debates evocando um quilombo acadêmico na FLUP,
ressaltando o caráter coletivo da produção. As conversas destacavam não apenas
as histórias das biografadas, como também o processo de pesquisa e de
descobertas das próprias escritoras ao participar do projeto.
Tudo
inspirado pela obra da historiadora e poeta Beatriz Nascimento, que foi tema da
FLUP 2024 e defendia uma história escrita por mãos negras.
“Ela
diz que cada um de nós, afrodiaspóricos, se torna um quilombo. Este não é
necessariamente um espaço territorial. A construção de um quilombo acadêmico é
uma forma de homenageá-la e reproduzir o que ela diz ser nosso papel de
resistir, de lutar e dar visibilidade a essa história”, diz Marinho. “Estamos
tentando trazer isso para a academia, que é tão branca, eurocêntrica e
individualista e hierárquica.”
Leia
abaixo um resumo de três biografias do livro.
<><> Laudelina de Campos Melo
Nascida
em Poços de Caldas (MG) em 1904, Laudelina começou a trabalhar como babá aos 7
anos e foi empregada doméstica ao longo de grande parte da vida. Na juventude,
teria trabalhado como copeira para a família de Juscelino Kubitschek. Aos 16
anos, começou a ter experiência política em um grupo de militância negra.
Em
1936, fundou a primeira associação para empregadas domésticas no país, em
Santos, e filiou-se ao Partido Comunista do Brasil. A Associação Beneficente
das Domésticas tinha “objetivo de proteger as domésticas das violações de seus
direitos fundamentais”, segundo o verbete de Luciana de Oliveira Dias. Mas foi
proibida durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e reprimida durante a ditadura
militar.
Ao
longo das décadas, Laudelina lutou pela regulamentação da profissão de
empregada doméstica e pela transformação da associação em sindicato, sonho este
que só se concretizou após a promulgação da Constituição de 1988, quando
Laudelina e outras companheiras se mobilizaram ao lado da então deputada
federal Benedita da Silva.
Em
1989, em Campinas, foi fundada a Casa Laudelina de Campos Melo, uma ONG voltada
para angariar recursos para políticas voltadas para mulheres negras. Laudelina
se manteve engajada na causa até a morte, aos 87 anos, em 1991.
<><> Iyalorixá Obá Biyí, ou Mãe Aninha
Eugênia
Anna dos Santos (1869-1938), mais conhecida como Mãe Aninha, foi das mães de
santo mais influentes de Salvador nas primeiras décadas do século 20.
Tornou-se
conhecida nacionalmente por sua influência na promulgação, durante o primeiro
governo Getúlio Vargas, do Decreto Presidencial 1.202, que exinguiu a proibição
aos cultos afro-brasileiros em 1934 – obtendo o apoio de Oswaldo Aranha, então
Ministro da Fazenda, que era próximo de Mãe Aninha e teria intercedido para que
tivesse um encontro com Getúlio Vargas.
Mãe
Aninha era filha de pais dos povos Grunci e Ketu, e foi iniciada nos cultos
africanos ainda na infância. Começou sua vida de sacerdotisa com pouco mais de
30 anos. Seu terreiro, Ilê Axé Opô Afonjá, se transferiu para diversos
endereços em Salvador até se instalar definitivamente no alto de São Gonçalo,
no bairro do Retiro, onde fica até hoje.
A
iyalorixá “lutava para que os povos descendentes de africanos tivessem sua
cultura reconhecida e valorizada”, descrevem os autores do verbete, Rosinalda
Simoni e Robson Max de Oliveira Souza.
Mãe
Aninha “projetou a mulher negra nos espaços de poder não apenas religioso, mas
também político e social”, o que se refletiu também em sua casa de axé, onde
sempre se preocupou em projetar as mulheres como protagonistas nos cargos e na
organização hierárquica.
<><> Mariana Preta Courá
Africana
da nação Corana, na Costa da Mina, África Ocidental, Mariana Preta Courá teria
sido embarcada no Golfo do Benim na primeira metade do século 18. Em vez de
terminar na Bahia, Recife ou Rio de Janeiro, destinos mais comuns para essa
procedência, foi parar em Belém do Pará.
Em
1738, Mariana fez um pedido formal de alforria à Justiça, no processo que
provavelmente seja o primeiro registro desse tipo para o período em Belém.
Pelo
processo, sabe-se que Mariana conseguiu o valor correspondente à sua alforria
de uma pessoa que não é nomeada para comprar a liberdade de volta de Augusto
Domingues da Siqueira, para quem já trabalhava havia seis anos.
Apesar
do registro judicial do caso, permanecem inúmeras perguntas abertas sobre a
trajetória de Mariana. Fundamentalmente: qual foi o desfecho do caso?
“Não
foi possível identificar se houve uma resposta ao requerimento vinda do reino
e, por conseguinte, se Maria Antônia conseguiu ou não sua liberdade”, escreve a
autora do verbete, Marley Antônia Silva da Silva.
“É
possível, porém, afirmar a existência e o protagonismo dessa africana mina, que
empenhou esforços, por meios institucionais, para alcançar sua liberdade.
Deixando trilhas de busca por emancipação, evidenciando que era inconformada,
insubmissa e resistente.”
¨
Quem foi o 1º e único
presidente negro do Brasil
No
dia 14 de junho de 1909, o sexto presidente da República do Brasil, em exercício, morreu. Afonso Pena
(1847-1909) estava no terceiro ano de seu mandato e teve uma forte pneumonia. Assumiu o Executivo,
então, o vice: o político e advogado Nilo Peçanha (1867-1924).
De
origem humilde, ele é considerado o primeiro presidente negro da história
brasileira. Mas naquele início de século 20, com a preponderância de teorias racistas e uma
ideia de embranquecimento da população, sua própria identidade racial se tornou
objeto de controvérsia.
“Rigorosamente,
ele era um mestiço”, define à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues,
professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS), lembrando que pelas
categorias oficialmente utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), ele seria classificado como pardo.
“Isso
não era uma questão [naquela época]. A começar porque ele não se reconhecia
como um afrodescendente. Segundo porque ele até foi alvo de charges e pilhérias
racializadas por parte da imprensa, mas socialmente ele não era visto nem
tratado pelas lentes do racismo que ousava dizer o seu nome na Primeira
República”, acrescenta o professor.
“Pode-se
dizer que ele foi racializado sobretudo pelos adversários, desafetos ou em
situações de disputas políticas”, diz Domingues.
Para
o historiador Vitor Soares, que mantém o podcast História em Meia Hora, é
preciso ressaltar que Peçanha governou o país “em um período profundamente
marcado pelo racismo científico”. “Doutrinas como a frenologia e a eugenia
ganhavam força no país, legitimando teorias que buscavam justificar a
marginalização de pessoas negras e mestiças”, diz ele à BBC News Brasil.
Ele
lembra que na época teorias como as defendidas pelo médico e antropólogo Nina
Rodrigues (1862-1906) tinham força e “associavam características físicas a
predisposições comportamentais, reforçando estigmas que perpetuavam a exclusão
racial”.
“Descrito
como mulato por seus contemporâneos, Peçanha tornou-se alvo constante de
ridicularizações. Na imprensa, era caricaturado em charges e anedotas que
enfatizavam sua cor de pele de maneira depreciativa. Durante sua juventude, era
chamado pejorativamente de 'o mestiço do Morro do Coco’, em referência ao
pequeno distrito rural de suas origens”, acrescenta Soares. “Esses ataques
refletem o racismo estrutural da sociedade brasileira, que via na ascensão de
um homem mestiço ao poder uma ameaça à hierarquia racial estabelecida.”
“Ele
foi de plena época em que o processo de racialização das relações estava em
curso. Mas também uma época em que se apostava ou se tinha a expectativa da
ascensão do mulato e, quiçá, da extinção do preto”, explica à BBC News Brasil a
historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, membro da Rede de Historiadorxs
Negrxs e autora de Entre a Escravidão e a Liberdade: africanos e
crioulos nos tempos da Abolição, entre outros.
A
historiadora conta que “se apostava no mestiço para conduzir o embranquecimento
da sociedade brasileira”.
“Nilo
Peçanha era criticado como ‘mulato’, termo usado de forma pejorativa, e não
havia uma perspectiva de elevação de seu caráter, da sua importância, da sua
representatividade enquanto pardo ou negro”, analisa à BBC News Brasil o
historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas
Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não havia isso na época.”
“A
conjuntura era do favorecimento da vinda de imigrantes estrangeiros para o
Brasil, na ideia de que europeus brancos iriam, de certa forma, trazer o
progresso para o Brasil. E que, muito entre aspas, a raça negra iria perdendo
força, desaparecendo, a partir da miscigenação com uma raça branca superior,
também entre aspas”, completa ele.
<><> Casamento foi polêmico
Nascido
em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, ele era filho de um padeiro e de
uma filha de agricultores. Com seis irmãos, teve uma infância pobre em um
sítio. A família se mudou para a cidade quando Peçanha chegou à idade escolar.
Foi no meio urbano que seu pai ganhou o epíteto pelo qual seria conhecido,
virou “Sebastião da padaria”.
Ele
estudou direito na Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, mas acabou
concluindo o curso na Faculdade do Recife.
Seu
casamento chocou a sociedade da época: a noiva, Ana de Castro Belisário Soares
de Sousa, a Anita, era de família rica de Campos dos Goytacazes, neta de um
visconde e bisneta de dois barões.
Como
seus pais eram contra o casamento — com um pobre e mulato —, Ana fugiu de casa
e foi viver com uma tia. Depois do matrimônio oficializado, em 6 de dezembro de
1895, diversos parentes da aristocracia fluminense cortaram relações com ela.
“O
matrimônio foi inicialmente rechaçado pela família de Anita, que considerava
inadequado o casamento de uma jovem de sangue nobre com alguém pobre e
mestiço”, contextualiza o historiador Soares. “Anita chegou a fugir de casa
para concretizar a união, um escândalo social que refletia as barreiras
impostas pelas estruturas raciais e de classe da época.”
Questões
pessoais à parte, Peçanha trilhava uma sólida carreira política. Em 1890,
reconhecido por seu engajamento nas lutas abolicionista e republicana, foi
eleito para a Assembleia Constituinte que redigiu a primeira Carta Magna da
República.
Foi
deputado até 1902. No ano seguinte, tornou-se presidente do Rio de Janeiro —
cargo equivalente ao atual governador. Em 1906 foi eleito vice-presidente da
República.
“Do
casamento às suas relações dentro do núcleo político, mesmo que ele fosse
ligado a parte da elite carioca, o fato de ele ter sido uma pessoa negra,
chamado na época de mulato, era uma questão”, comenta à BBC News Brasil o
historiador Phillippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). “Isso tinha impacto sobre sua pessoa como político.”
Reis
diz que políticos e formadores de opinião da época que atacavam Nilo Peçanha
costumavam citar “a cor da pele dele, condição quase sempre trazida como uma
caricatura, como desleixo, como se fosse a cor de alguém que não tivesse a
capacidade de gerir o país”.
“Os
traços físicos eram destacados [pelos críticos], o cabelo crespo era associado
à questão de que ele não seria necessariamente uma pessoa preparada”, conta.
<><> Na Presidência
Quando
ele assumiu o governo do Brasil, substituindo Afonso Pena, trouxe para si o
lema “paz e amor”. Era uma tentativa de apaziguar os ânimos da oposição.
“Alguns jornais chegaram a publicar comentários políticos que questionavam a
capacidade do presidente na condução do país pelo fato de ele ser negro”,
ressalta à BBC News Brasil o filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez,
professor da Fundação Escola de Sociologia de de Paulo (FESPSP) e da Escola
Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
“Ou
seja: apesar de ele circular em meios políticos dominados por brancos, parte da
opinião pública o questionava, associando o fato de ele ser negro a eventuais
dificuldades em sua capacidade de conduzir o país”, observa.
“Paradoxalmente,
quando Peçanha alcançou destaque na política nacional, a elite brasileira,
alinhada com os ideais de branqueamento, tentou ‘corrigir’ sua imagem”, conta
Soares. “Fotografias oficiais e retratos eram manipulados para clarear sua pele
e aproximá-lo dos padrões eurocêntricos, numa tentativa de apagar qualquer
traço de diversidade racial em figuras públicas de prestígio.”
Em
sua curta passagem pelo Palácio do Catete, deixou duas marcas importantes. Foi
ele quem criou o Serviço de Proteção aos Índios, órgão que antecedeu a atual
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Peçanha
também fundou a Escola de Aprendizes Artífices, primeira instituição de ensino
técnico do país sem ligação com os militares. Esta escola é considerada a
precursora do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet). E por causa disso
em 2011 ele foi homenageado com uma lei federal que o tornou o patrono da
educação profissional e tecnológica no Brasil.
O
historiador Reis lembra ainda que Peçanha procurou encontrar soluções para
diminuir o problema da falta de habitação no país. Ele tinha experiência nisso,
pois foi uma questão enfrentada durante seu governo no Rio, anteriormente. E, a
julgar pela repercussão da imprensa da época, foi este um assunto no qual ele
convenceu a opinião pública de que era uma pessoa capacitada.
“O
assunto é de máxima importância e pode e deve ser resolvido pelo governo do dr.
Nilo Peçanha, que já tem dado provas de que é homem de capacidade para resolver
os mais sérios problemas sem delongas”, publicou o jornal A Imprensa, do Rio,
em 19 de agosto de 1909.
Seu
mandato se encerrou em 15 de novembro de 1910. Depois da Presidência, ele ainda
seguiu na política. Foi senador, novamente presidente do Rio, ministro das
Relações Exteriores e mais uma vez senador. Em 1921, foi candidato à
Presidência, sendo derrotado por Artur Bernardes (1875-1955).
Nilo
Peçanha morreu em 1924, vítima de um problema cardíaco causado pela doença de
Chagas. Há dois municípios brasileiros que o homenageiam com o nome: Nilo
Peçanha, na Bahia, e Nilópolis, na região metropolitana do Rio.
<><> Debate racial
“O
fato de termos um negro na política sempre foi e sempre será uma questão no
Brasil. Ainda mais um presidente. Vivemos em um país racializado, com um
histórico de escravidão extremamente violento, recente e ainda presente”, à BBC
News Brasil o sociólogo Giuliano Salvarani, professor na Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM). “Nilo Peçanha é um personagem interessante
justamente por romper essa barreira racial de representação política, tendo um
papel importante na história do nosso país.”
A
questão racial de Peçanha é tema de debate pelo simbolismo do fato de ele ter
sido um presidente negro — ainda que em um tempo em que essa questão não era
posta à mesa de forma identitária como hoje. Por isso, as controvérsias são
muitas.
“De
fato, ele foi acusado de ser mal resolvido com sua identidade racial e de ter
retocado fotografias oficiais, para escamotear sua origem afrodescendente, mas
não me parece que isso seja branqueamento”, afirma Domingues. “A importância de
hoje reconhecermos a sua negritude tem a ver, em primeiro lugar, com um acerto
de contas com certa narrativa histórica que operou com invisibilidades e
apagamentos de personagens afro-brasileiros. Em segundo lugar, com as questões
do tempo presente, em que a história e cultura afro-brasileira ou, antes, as
questões raciais ganham destaque na agenda nacional, a partir do protagonismo
negro, das políticas de ações afirmativas, do debate sobre representatividade,
etc.”
A
historiadora Santos entende que a identidade racial de Peçanha não foi ocultada
à época, justamente por causa do que publicavam os jornais, que costumavam
descrevê-lo como “rapaz moreno, de cabelos negros e anelados, olhar profundo e
superior”.
“Nos
últimos anos, os movimentos negros também entenderam que referências históricas
em posição de destaque poderiam contribuir para o fortalecimento do
pertencimento étnico, e para o orgulho deste pertencimento, por grande parcela
de brasileiros constituídas por negros, negras e indígenas”, acrescenta ela.
“Assim, com base em pesquisas históricas, recupera-se o protagonismo
personalidades como Nilo Peçanha. Essas ações colaboram para o processo de
emancipação do povo negro em termos reparação simbólica.”
Soares
diz que “reconhecer a negritude de Nilo Peçanha é um ato de resgate histórico e
político, especialmente em um país que sistematicamente negou e apagou as
constribuições de pessoas negras em posições de liderança”.
“Durante
sua vida e carreira, Peçanha foi vítima de práticas que buscavam roubar e
esconder sua identidade racial”, afirma ele. “Essa é a história da cor roubada,
como alguns historiadores descrevem e, no caso de Peçanha, deliberadamente
escondida.”
O
historiador lembra que até mesmo a biografia oficial de Nilo Peçanha, escrita
por seu parente, o jornalista, advogado e político Celso Peçanha (1916-2016),
“nada menciona sobre suas origens raciais”. “E seus descendentes negaram
consistentemente que ele fosse mulato, apesar de sua tez escura”, ressalta.
“A
negritude é atribuída historicamente. Nilo Peçanha não se reconhecer e não ser
reconhecido como negro é importantíssimo para entendermos a natureza social no
racismo e dos processos de racialização de pessoas negras, principalmente na
política”, diz o sociólogo Salvarani. “Agora as razões sociológicas desses
processos político-raciais envolvendo Nilo Peçanha são singulares e uma
oportunidade única para que mais pessoas radicalizadas se encorajem de
participar da política em seus diversos níveis e espaços.”
Ramirez
atenta para outra questão: os materiais didáticos que ensinam história no
Brasil. “Boa parte dos livros escolares negligenciam o fato de ele ser negro. E
isso mostra como a história é sempre a história de uma elite branca,
esquecendo-se dos protagonistas negros deste país”, comenta.
Fonte:
BBC News Brasil
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