Erik
Chiconelli Gomes: O legado de Zumbi nos dados da desigualdade brasileira
O
dia 20 de novembro transcende sua origem histórica como data da morte de Zumbi
dos Palmares, em 1695, configurando-se hoje como um momento crucial de reflexão
sobre as disparidades raciais que persistem na sociedade brasileira. Em 2024,
mesmo após 135 anos da abolição formal da escravidão, os indicadores socioeconômicos revelam um país ainda
profundamente dividido por linhas raciais. Como argumenta Florestan Fernandes (1978,
p. 45), “a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino”, uma
realidade que encontra respaldo nos dados atuais e demonstra como o processo de
abolição foi incompleto e insuficiente para garantir a verdadeira inclusão
social da população negra.
Os dados do IBGE evidenciam a magnitude dessa desigualdade
estrutural. A população negra, que representa
56,1% dos brasileiros, enfrenta disparidades significativas em todos os
indicadores sociais. No mercado de trabalho, a taxa de informalidade entre
trabalhadores negros atinge 47%, enquanto
entre os brancos esse número cai para 32%. A disparidade salarial é ainda mais
alarmante: o rendimento médio dos trabalhadores brancos é quase duas vezes
maior do que o recebido por negros e pardos, uma diferença que se mantém mesmo
quando considerados níveis similares de escolaridade (IBGE 2023, p. 12). Essa
realidade evidencia como o racismo estrutural se manifesta nas relações
laborais, perpetuando um ciclo de pobreza e exclusão.
O
sistema educacional brasileiro, embora tenha apresentado avanços nas últimas
décadas, ainda reflete e reproduz desigualdades raciais históricas. A taxa de analfabetismo entre pretos e pardos (7,4%) é mais que
o dobro da observada entre os brancos, e sete
em cada dez jovens que não completaram o ensino médio são pretos ou pardos
(IBGE 2022, p. 8). Essa disparidade educacional tem raízes profundas no
processo histórico de exclusão e se reflete diretamente nas oportunidades de
mobilidade social, criando um ciclo vicioso de perpetuação da pobreza e da
desigualdade.
A segregação espacial nas grandes cidades brasileiras representa uma das manifestações mais visíveis da
desigualdade racial. As periferias urbanas, onde se concentra a maior parte da
população negra, frequentemente carecem de serviços básicos e infraestrutura
adequada. Esse processo de segregação espacial não é aleatório, mas resultado
de políticas urbanas históricas que privilegiaram determinadas áreas em
detrimento de outras, como demonstram os estudos sobre habitação da Fundação João Pinheiro (2023, p. 15), que apontam que famílias negras representam
70% do déficit habitacional no Brasil.
No
campo da saúde, as disparidades são igualmente alarmantes. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, implementada em 2009, busca reduzir essas desigualdades, mas
os obstáculos persistem. O Ministério da Saúde (2023, p. 25) aponta que a população negra enfrenta maiores dificuldades no acesso a
serviços de saúde de qualidade,
apresenta maiores índices de mortalidade materna e infantil, e foi desproporcionalmente afetada pela pandemia de COVID-19, tanto em
termos de mortalidade quanto de impactos socioeconômicos.
A
interseccionalidade entre raça e gênero amplia e aprofunda as desigualdades
existentes. Mulheres negras enfrentam uma dupla discriminação, que se reflete
em indicadores ainda mais preocupantes. Dados do IBGE (2023, p. 18) mostram
que mulheres negras recebem, em média, apenas 48% do salário dos
homens brancos, evidenciando como diferentes formas de
discriminação se sobrepõem e se potencializam. Essa realidade demonstra a
necessidade de políticas públicas que considerem a complexidade das relações
entre gênero e raça na sociedade brasileira.
O
empreendedorismo negro enfrenta barreiras estruturais significativas, incluindo
menor acesso a crédito e redes de negócios. Segundo dados do SEBRAE (2023, p.
9), apenas 5% dos empresários negros conseguiram acesso a linhas de crédito
bancário tradicionais em 2023. Essa exclusão financeira reflete o racismo
institucional presente no sistema bancário e limita as possibilidades de
desenvolvimento econômico da população negra.
As
políticas de ação afirmativa, embora tenham trazido avanços significativos nas
últimas décadas, ainda enfrentam resistências e limitações. O sistema de cotas
nas universidades públicas aumentou expressivamente o acesso ao ensino superior
para estudantes negros, mas como ressalta Kabengele
Munanga (Munanga 2001, p. 31), “as ações
afirmativas são necessárias, mas insuficientes para eliminar as raízes
profundas do racismo estrutural”. A permanência e conclusão do curso continuam
sendo desafios significativos para muitos estudantes negros.
A
exclusão digital emerge como uma nova dimensão da desigualdade racial no Brasil
contemporâneo. Pesquisas do CGI.br (2023, p. 45) indicam que o acesso à
internet e a dispositivos tecnológicos é significativamente menor entre a
população negra, criando novas barreiras para a inclusão social e econômica. Em
um mundo cada vez mais digitalizado, essa disparidade tem implicações sérias
para o futuro do trabalho e da educação.
A
sub-representação política da população negra permanece como um desafio
significativo para a democracia brasileira. Nas eleições de 2022, apenas 24%
dos parlamentares eleitos se autodeclararam negros, um número que não reflete a
composição demográfica do país. Essa disparidade na representação política tem
impactos diretos na formulação e implementação de políticas públicas voltadas
para a população negra.
O
movimento negro brasileiro tem desempenhado um papel fundamental na luta por
reconhecimento e direitos. Como observa Lélia Gonzalez (1984,
p. 225), “a mobilização política e cultural da população negra é essencial para
a transformação das estruturas de poder”. A atuação desses movimentos tem sido
crucial para pautar o debate público sobre o racismo e a desigualdade racial,
além de pressionar por políticas públicas mais efetivas.
O
sistema de justiça criminal reflete e reproduz as desigualdades raciais de
forma particularmente perversa. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(2023, p. 32) mostram que a população negra é desproporcionalmente afetada pela violência
policial e pelo encarceramento em massa. Esse
padrão de seletividade racial do sistema penal brasileiro evidencia como o
racismo institucional opera nas estruturas do Estado. A saúde mental da
população negra emerge como uma questão cada vez mais preocupante. O Ministério
da Saúde (2023, p. 38) aponta que a população negra apresenta maiores índices de transtornos mentais
relacionados ao estresse e à ansiedade,
resultado direto do racismo estrutural e das múltiplas formas de discriminação
enfrentadas cotidianamente.
É
necessário reconhecer que o combate ao racismo é responsabilidade de toda a
sociedade e que a superação das desigualdades raciais é condição fundamental
para a construção de um país verdadeiramente democrático e justo. Apenas quando
o Brasil conseguir enfrentar de forma honesta e corajosa seu passado
escravocrata e suas consequências presentes, será possível vislumbrar um futuro
de real igualdade racial.
A
pandemia de COVID-19 atuou como um catalisador das desigualdades raciais
existentes. Os dados do Ministério da Saúde (2023, p. 42) revelam que a
população negra não apenas apresentou maiores taxas de mortalidade, mas também
sofreu impactos socioeconômicos mais severos, evidenciando como crises
sanitárias e sociais afetam de forma desproporcional os grupos já
vulnerabilizados. A saúde mental da população negra tem emergido como um dos
aspectos mais preocupantes deste cenário de desigualdades sistêmicas. Os
impactos do racismo estrutural não se limitam apenas às condições materiais de
vida, mas afetam profundamente o bem-estar psicológico dos indivíduos. O peso
do preconceito cotidiano, a constante necessidade de provar sua capacidade, o
medo da violência policial e a ansiedade gerada pela instabilidade econômica
criam uma sobrecarga emocional que tem consequências devastadoras para a saúde
mental da população negra.
O
quadro apresentado ao longo desta análise evidencia que o racismo estrutural no
território nacional opera como um sistema complexo e multifacetado de exclusão.
Dos bancos escolares ao mercado de trabalho, das periferias aos centros
urbanos, das delegacias aos hospitais, a população negra enfrenta barreiras que
se retroalimentam e se fortalecem mutuamente. Não se trata apenas de
preconceito individual ou de casos isolados de discriminação, mas de um sistema
profundamente enraizado que permeia todas as esferas da vida social.
O
futuro da igualdade racial no Brasil depende de uma transformação profunda e
estrutural da sociedade. Esta transformação exige mais do que políticas
públicas pontuais ou ações afirmativas isoladas – demanda um compromisso
coletivo com a construção de uma nova realidade social.
É
necessário reconhecer que o combate ao racismo é responsabilidade de toda a
sociedade e que a superação das desigualdades raciais é condição fundamental
para a construção de um país verdadeiramente democrático e justo. Apenas quando
o Brasil conseguir enfrentar, de forma honesta e corajosa, seu passado
escravocrata e suas consequências presentes, será possível vislumbrar um futuro
de real igualdade racial.
¨
Caçula, babá, cafuné:
como mulheres negras escravizadas ajudaram a criar o português brasileiro
Caçula,
babá, moleque, dengo, cafuné. Algumas palavras que usamos no nosso dia a dia
escondem traços e fonemas de uma herança africana que está profundamente ligada
às mulheres e ao trabalho doméstico exercido pelas negras escravizadas no Brasil dos
séculos 16 a 19.
Estima-se
que cerca de 4 a 5 milhões de africanos foram traficados para o país durante o
período. Destes, cerca de 75% eram bantos, um grupo que se espalhou por uma
vasta área ao sul da Linha do Equador na África.
A
característica mais evidente que une esses povos é justamente o fato de eles
falarem línguas da família linguística banto — de onde emprestamos algumas
palavras que seguem até hoje em nosso vocabulário.
A
maioria dos que foram enviados à força ao Brasil tinha origem em Angola e República Democrática do Congo, e
posteriormente, Moçambique.
No
ambiente da família colonial, esses escravizados aprenderam o português na
convivência diária com seus senhores — e também imprimiram em seu falar hábitos
e características de suas próprias línguas.
Ao
mesmo tempo, os colonizadores portugueses foram se apropriando pouco a pouco de
termos africanos, que passaram a ser usados principalmente para designar os
objetos e atividades do dia a dia.
Nesse
contexto, as mulheres africanas tiveram um papel especial, seja por meio do
cuidado com as crianças, do seu trabalho na cozinha ou como amas de companhia e
curandeiras.
<><> ‘Grande mãe ancestral dos brasileiros’
Autora
de diversos livros e artigos sobre o tema, a etnolinguista baiana Yeda Pessoa
de Castro vê no passado brasileiro um processo que invisibilizou a força de
trabalho da mulher negra escravizada na historiografia.
Mas
para a pesquisadora, que se dedica ao estudo das línguas africanas e sua
influência no Brasil, essas mulheres tiverem um protagonismo na família e vida
diária do colonizador que foi muito além do serviço doméstico prestado.
Em
seu livro Camões com Dendé, Castro descreve como as mulheres
africanas influenciaram as famílias brasileiras por meio da contação de
histórias do seu universo fantástico afrorreligioso, do compartilhamento de seu
conhecimento nato de folhas e ervas medicinais, como cozinheiras introduzindo
elementos de sua dieta nativa na comida diária da casa e como amas de companhia
das jovens solteiras e cuidadoras das crianças.
Na
função “da mãe preta e babá”, reconta a linguista, essas mulheres amamentaram e
criaram os filhos do colonizador “e, à maneira de pedagoga, os ensinou a
balbuciar as primeiras palavras, também na sua língua nativa, no embalo do seu
canto de acalento” que os fazia dormir.
A
própria palavra babá é uma das muitas marcas deixadas por esse importante
trabalho: pesquisadores rastreiam a sua origem no quimbundo, uma das línguas
bantas faladas em Angola.
Da
mesma forma, várias outras palavras ligadas ao cuidado e à maternidade também
foram inseridas no contexto brasileiro por esse meio.
“No
campo afetivo, a mãe negra nos deixou o xodó, o cafuné, o cochilo, o dengo, e
nos falou que ‘o caçula é o dengo da família’, o irmão mais jovem, sempre
tratado com muito mimo por todas da casa”, diz Yeda Pessoa de Castro.
Enquanto
dengo vem do quicongo, falada no norte de Angola e no baixo Congo, caçula tem
origem no quimbundo. Não há no Brasil outra palavra para se referir ao filho
mais novo. No português europeu diz-se benjamin, que para o falante brasileiro,
além de nome próprio, é um adaptador multiplicador de tomada elétrica.
“Diante
de tantas evidências apontadas pelo vocabulário, entre muitas outras ainda
encobertas por falta de pesquisas mais detalhadas nesse domínio, a mulher
angolana, entre tantas outras mulheres negras de igual valor, é projetada
historicamente como a figura emblemática da grande mãe ancestral dos
brasileiros. Não é em vão que Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, é
apresentada como uma santa negra!.”
<><> Exemplos de expressões de origem banta
1. Babá
Tem
origem na língua quimbundo e vem do verbo ‘kubaba’, que significa ‘acalentar ou
embalar uma criança para adormecer’.
2. Cafuné
Tem
origem no quimbundo e vem da palavra ‘kafa’, que se refere à ação de bater,
estalar com os dedos
3. Cochilo
Tem
origem no quimbundo e vem da palavra ‘kukoshila’.
4. Dengo
Tem
origem no quicongo e, na língua original, quer dizer um pedido de aconchego.
5. Caçula
Vem
de 'kasule', do quimbundo, que significa 'último filho'.
6. Moleque
Tem
origem no quimbundo e vem da forma ‘muleke’, associado com 'menino'.
7. Xingar
Tem
origem no quimbundo e na palavra ‘kukoshinga’.
8. Moringa
Tem
origem no quimbundo e vem da palavra ‘mudingi’.
9. Caçamba
Tem
origem no quimbundo e vem da palavra ‘kasambu’ que significa cesto.
10. Capenga
Tem
origem no quimbundo e na palavra ‘kiapenga’.
11. Dendê
Do
quimbundo ‘ndende’, o dendê, ou óleo de palma, é popular nas culinárias
africana e brasileira.
12. Marimbondo
Do
quimbundo, vem de ‘madimbindo’, palavra usada para vespa.
13. Lenga-lenga
Tem
origem no quimbundo e em ‘ku langa’, que significa enganar alguém.
14. Beleléu
Do
quimbundo, vem de ‘mbelele’, palavra usada para se referir à morte.
15. Bunda
Do
quimbundo, vem de ‘mbunda’, palavra usada para se referir a nádegas ou ânus.
As línguas bantas e o português
Fundamental
para a construção do Brasil e para o movimento abolicionista, a cultura banto
reverbera até hoje não só no vocabulário do português brasileiro, mas também na
entonação, pronúncia e sintaxe.
‘Bantu’
é a forma como a língua é referida nos próprios idiomas locais. No Brasil,
porém, os linguistas tendem a falar em línguas bantas para se referir ao
conjunto de línguas.
Margarida
Petter, linguista e professora aposentada do Departamento de Linguística da
Universidade de São Paulo (USP), explica que a denominação foi adotada por
linguistas a partir da percepção de uma característica comum entre muitas das
línguas: a palavra ‘pessoa’ tem sempre o uso da raiz ‘utu’, além do prefixo
‘ba’ para indicar o plural.
“Alguns
africanos que foram transplantados para o Brasil já falavam alguma coisa de
português por conta do contato com os colonizadores na região no entorno do
Reino do Congo”, diz.
Ao
mesmo tempo, diz a especialista, ao aprender a língua estrangeira, essas
populações impuseram algo da gramática, da sonoridade e do vocabulário de suas
línguas nativas. “Eles trouxeram para o português palavras e estruturas de suas
línguas bantas”, explica Petter.
Construções
como "algumas lojas estão caindo preço" ou "as ruas do centro
não estão passando ônibus", que são consideradas gramaticalmente
incorretas na língua culta pelo uso equivocado do sujeito, são exemplos dessa
influência na língua falada, diz a linguista.
“Outra
influência é a tendência na língua falada de dizer coisas como ‘as menina
bonita’”, diz Margarida Petter. “Nas línguas bantas, o plural não é indicado
com a letra ‘s’ no final das palavras, como no português, mas sim com o uso de
um prefixo.”
“Para
o falante da língua banta, apenas colocar o primeiro elemento no plural já
seria suficiente para entender o sentido completo — colocar o ‘s’ no final do
substantivo seria uma redundância.”
A
influência banta no Brasil também está nas religiões, nas músicas e na dança.
Os escravizados traficados para o país deixaram seu legado, por exemplo, na
origem de ritmos e expressões musicais como o samba, o maracatu, a congada, o
jongo e a capoeira.
Para
Yeda Pessoa de Castro, a cantiga popular Escravos de Jó também
seria mais uma marca dos bantos — e das mulheres que cantavam e ensinavam jogos
para os filhos dos colonizadores.
Segundo
a pesquisadora, a palavra ‘jó’ poderia ter origem na língua quimbundo e na
palavra ‘njo’, que significa ‘casa’. Já o ‘caxangá’ era um jogo de tabuleiro,
diz.
De
acordo com Castro, as denominações candomblé, macumba e catimbó são também de
origem banto e representam provavelmente as mais antigas manifestações de
religiosidade afro-brasileira nascidas na escravidão, como consequência do
contato de orientações religiosas ameríndias e africanas com o catolicismo nos
primórdios da colonização.
Na
África colonizada por Portugal, os governos de países como Angola, Moçambique e
Cabo Verde adotaram o português como língua oficial após sua independência na
década de 1970.
“Havia
uma diversidade linguística muito grande, então decidiu-se adotar o português
também para evitar contendas tribais”, explica Alexandre António Timbane,
professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira.
As
línguas locais, porém, continuaram a ser usadas em contextos informais e no
seio das famílias.
“As
pessoas começaram a aprender o português para conseguir emprego, resolver
questões burocráticas em órgãos do governo. Mas as línguas locais continuaram a
ser faladas em contextos informais, nas famílias, nas canções e na educação
local também”, diz Timbane.
O
pesquisador moçambicano, porém, lamenta que ainda exista preconceito fora da
África em relação às variedades do português africano, especialmente na área do
ensino.
“A
minha variedade, o meu sotaque, são influências da minha língua materna, da
minha história”, diz. “Temos que considerar e tolerar sem preconceito
linguístico todas as variedades e incentivar estudos e pesquisas sobre elas,
porque elas são úteis.”
Fonte:
Le Monde/BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário