sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Erik Chiconelli Gomes: O legado de Zumbi nos dados da desigualdade brasileira

O dia 20 de novembro transcende sua origem histórica como data da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, configurando-se hoje como um momento crucial de reflexão sobre as disparidades raciais que persistem na sociedade brasileira. Em 2024, mesmo após 135 anos da abolição formal da escravidão, os indicadores socioeconômicos revelam um país ainda profundamente dividido por linhas raciais. Como argumenta Florestan Fernandes (1978, p. 45), “a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino”, uma realidade que encontra respaldo nos dados atuais e demonstra como o processo de abolição foi incompleto e insuficiente para garantir a verdadeira inclusão social da população negra.

Os dados do IBGE evidenciam a magnitude dessa desigualdade estrutural. A população negra, que representa 56,1% dos brasileiros, enfrenta disparidades significativas em todos os indicadores sociais. No mercado de trabalho, a taxa de informalidade entre trabalhadores negros atinge 47%, enquanto entre os brancos esse número cai para 32%. A disparidade salarial é ainda mais alarmante: o rendimento médio dos trabalhadores brancos é quase duas vezes maior do que o recebido por negros e pardos, uma diferença que se mantém mesmo quando considerados níveis similares de escolaridade (IBGE 2023, p. 12). Essa realidade evidencia como o racismo estrutural se manifesta nas relações laborais, perpetuando um ciclo de pobreza e exclusão.

O sistema educacional brasileiro, embora tenha apresentado avanços nas últimas décadas, ainda reflete e reproduz desigualdades raciais históricas. A taxa de analfabetismo entre pretos e pardos (7,4%) é mais que o dobro da observada entre os brancos, e sete em cada dez jovens que não completaram o ensino médio são pretos ou pardos (IBGE 2022, p. 8). Essa disparidade educacional tem raízes profundas no processo histórico de exclusão e se reflete diretamente nas oportunidades de mobilidade social, criando um ciclo vicioso de perpetuação da pobreza e da desigualdade.

segregação espacial nas grandes cidades brasileiras representa uma das manifestações mais visíveis da desigualdade racial. As periferias urbanas, onde se concentra a maior parte da população negra, frequentemente carecem de serviços básicos e infraestrutura adequada. Esse processo de segregação espacial não é aleatório, mas resultado de políticas urbanas históricas que privilegiaram determinadas áreas em detrimento de outras, como demonstram os estudos sobre habitação da Fundação João Pinheiro (2023, p. 15), que apontam que famílias negras representam 70% do déficit habitacional no Brasil.

No campo da saúde, as disparidades são igualmente alarmantes. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, implementada em 2009, busca reduzir essas desigualdades, mas os obstáculos persistem. O Ministério da Saúde (2023, p. 25) aponta que a população negra enfrenta maiores dificuldades no acesso a serviços de saúde de qualidade, apresenta maiores índices de mortalidade materna e infantil, e foi desproporcionalmente afetada pela pandemia de COVID-19, tanto em termos de mortalidade quanto de impactos socioeconômicos.

A interseccionalidade entre raça e gênero amplia e aprofunda as desigualdades existentes. Mulheres negras enfrentam uma dupla discriminação, que se reflete em indicadores ainda mais preocupantes. Dados do IBGE (2023, p. 18) mostram que mulheres negras recebem, em média, apenas 48% do salário dos homens brancos, evidenciando como diferentes formas de discriminação se sobrepõem e se potencializam. Essa realidade demonstra a necessidade de políticas públicas que considerem a complexidade das relações entre gênero e raça na sociedade brasileira.

O empreendedorismo negro enfrenta barreiras estruturais significativas, incluindo menor acesso a crédito e redes de negócios. Segundo dados do SEBRAE (2023, p. 9), apenas 5% dos empresários negros conseguiram acesso a linhas de crédito bancário tradicionais em 2023. Essa exclusão financeira reflete o racismo institucional presente no sistema bancário e limita as possibilidades de desenvolvimento econômico da população negra.

As políticas de ação afirmativa, embora tenham trazido avanços significativos nas últimas décadas, ainda enfrentam resistências e limitações. O sistema de cotas nas universidades públicas aumentou expressivamente o acesso ao ensino superior para estudantes negros, mas como ressalta Kabengele Munanga (Munanga 2001, p. 31), “as ações afirmativas são necessárias, mas insuficientes para eliminar as raízes profundas do racismo estrutural”. A permanência e conclusão do curso continuam sendo desafios significativos para muitos estudantes negros.

A exclusão digital emerge como uma nova dimensão da desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Pesquisas do CGI.br (2023, p. 45) indicam que o acesso à internet e a dispositivos tecnológicos é significativamente menor entre a população negra, criando novas barreiras para a inclusão social e econômica. Em um mundo cada vez mais digitalizado, essa disparidade tem implicações sérias para o futuro do trabalho e da educação.

A sub-representação política da população negra permanece como um desafio significativo para a democracia brasileira. Nas eleições de 2022, apenas 24% dos parlamentares eleitos se autodeclararam negros, um número que não reflete a composição demográfica do país. Essa disparidade na representação política tem impactos diretos na formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a população negra.

O movimento negro brasileiro tem desempenhado um papel fundamental na luta por reconhecimento e direitos. Como observa Lélia Gonzalez (1984, p. 225), “a mobilização política e cultural da população negra é essencial para a transformação das estruturas de poder”. A atuação desses movimentos tem sido crucial para pautar o debate público sobre o racismo e a desigualdade racial, além de pressionar por políticas públicas mais efetivas.

O sistema de justiça criminal reflete e reproduz as desigualdades raciais de forma particularmente perversa. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023, p. 32) mostram que a população negra é desproporcionalmente afetada pela violência policial e pelo encarceramento em massa. Esse padrão de seletividade racial do sistema penal brasileiro evidencia como o racismo institucional opera nas estruturas do Estado. A saúde mental da população negra emerge como uma questão cada vez mais preocupante. O Ministério da Saúde (2023, p. 38) aponta que a população negra apresenta maiores índices de transtornos mentais relacionados ao estresse e à ansiedade, resultado direto do racismo estrutural e das múltiplas formas de discriminação enfrentadas cotidianamente.

É necessário reconhecer que o combate ao racismo é responsabilidade de toda a sociedade e que a superação das desigualdades raciais é condição fundamental para a construção de um país verdadeiramente democrático e justo. Apenas quando o Brasil conseguir enfrentar de forma honesta e corajosa seu passado escravocrata e suas consequências presentes, será possível vislumbrar um futuro de real igualdade racial.

A pandemia de COVID-19 atuou como um catalisador das desigualdades raciais existentes. Os dados do Ministério da Saúde (2023, p. 42) revelam que a população negra não apenas apresentou maiores taxas de mortalidade, mas também sofreu impactos socioeconômicos mais severos, evidenciando como crises sanitárias e sociais afetam de forma desproporcional os grupos já vulnerabilizados. A saúde mental da população negra tem emergido como um dos aspectos mais preocupantes deste cenário de desigualdades sistêmicas. Os impactos do racismo estrutural não se limitam apenas às condições materiais de vida, mas afetam profundamente o bem-estar psicológico dos indivíduos. O peso do preconceito cotidiano, a constante necessidade de provar sua capacidade, o medo da violência policial e a ansiedade gerada pela instabilidade econômica criam uma sobrecarga emocional que tem consequências devastadoras para a saúde mental da população negra.

O quadro apresentado ao longo desta análise evidencia que o racismo estrutural no território nacional opera como um sistema complexo e multifacetado de exclusão. Dos bancos escolares ao mercado de trabalho, das periferias aos centros urbanos, das delegacias aos hospitais, a população negra enfrenta barreiras que se retroalimentam e se fortalecem mutuamente. Não se trata apenas de preconceito individual ou de casos isolados de discriminação, mas de um sistema profundamente enraizado que permeia todas as esferas da vida social.

O futuro da igualdade racial no Brasil depende de uma transformação profunda e estrutural da sociedade. Esta transformação exige mais do que políticas públicas pontuais ou ações afirmativas isoladas – demanda um compromisso coletivo com a construção de uma nova realidade social. 

É necessário reconhecer que o combate ao racismo é responsabilidade de toda a sociedade e que a superação das desigualdades raciais é condição fundamental para a construção de um país verdadeiramente democrático e justo. Apenas quando o Brasil conseguir enfrentar, de forma honesta e corajosa, seu passado escravocrata e suas consequências presentes, será possível vislumbrar um futuro de real igualdade racial.

 

¨      Caçula, babá, cafuné: como mulheres negras escravizadas ajudaram a criar o português brasileiro

Caçula, babá, moleque, dengo, cafuné. Algumas palavras que usamos no nosso dia a dia escondem traços e fonemas de uma herança africana que está profundamente ligada às mulheres e ao trabalho doméstico exercido pelas negras escravizadas no Brasil dos séculos 16 a 19.

Estima-se que cerca de 4 a 5 milhões de africanos foram traficados para o país durante o período. Destes, cerca de 75% eram bantos, um grupo que se espalhou por uma vasta área ao sul da Linha do Equador na África.

A característica mais evidente que une esses povos é justamente o fato de eles falarem línguas da família linguística banto — de onde emprestamos algumas palavras que seguem até hoje em nosso vocabulário.

A maioria dos que foram enviados à força ao Brasil tinha origem em Angola e República Democrática do Congo, e posteriormente, Moçambique.

No ambiente da família colonial, esses escravizados aprenderam o português na convivência diária com seus senhores — e também imprimiram em seu falar hábitos e características de suas próprias línguas.

Ao mesmo tempo, os colonizadores portugueses foram se apropriando pouco a pouco de termos africanos, que passaram a ser usados principalmente para designar os objetos e atividades do dia a dia.

Nesse contexto, as mulheres africanas tiveram um papel especial, seja por meio do cuidado com as crianças, do seu trabalho na cozinha ou como amas de companhia e curandeiras.

<><> ‘Grande mãe ancestral dos brasileiros’

Autora de diversos livros e artigos sobre o tema, a etnolinguista baiana Yeda Pessoa de Castro vê no passado brasileiro um processo que invisibilizou a força de trabalho da mulher negra escravizada na historiografia.

Mas para a pesquisadora, que se dedica ao estudo das línguas africanas e sua influência no Brasil, essas mulheres tiverem um protagonismo na família e vida diária do colonizador que foi muito além do serviço doméstico prestado.

Em seu livro Camões com Dendé, Castro descreve como as mulheres africanas influenciaram as famílias brasileiras por meio da contação de histórias do seu universo fantástico afrorreligioso, do compartilhamento de seu conhecimento nato de folhas e ervas medicinais, como cozinheiras introduzindo elementos de sua dieta nativa na comida diária da casa e como amas de companhia das jovens solteiras e cuidadoras das crianças.

Na função “da mãe preta e babá”, reconta a linguista, essas mulheres amamentaram e criaram os filhos do colonizador “e, à maneira de pedagoga, os ensinou a balbuciar as primeiras palavras, também na sua língua nativa, no embalo do seu canto de acalento” que os fazia dormir.

A própria palavra babá é uma das muitas marcas deixadas por esse importante trabalho: pesquisadores rastreiam a sua origem no quimbundo, uma das línguas bantas faladas em Angola.

Da mesma forma, várias outras palavras ligadas ao cuidado e à maternidade também foram inseridas no contexto brasileiro por esse meio.

“No campo afetivo, a mãe negra nos deixou o xodó, o cafuné, o cochilo, o dengo, e nos falou que ‘o caçula é o dengo da família’, o irmão mais jovem, sempre tratado com muito mimo por todas da casa”, diz Yeda Pessoa de Castro.

Enquanto dengo vem do quicongo, falada no norte de Angola e no baixo Congo, caçula tem origem no quimbundo. Não há no Brasil outra palavra para se referir ao filho mais novo. No português europeu diz-se benjamin, que para o falante brasileiro, além de nome próprio, é um adaptador multiplicador de tomada elétrica.

“Diante de tantas evidências apontadas pelo vocabulário, entre muitas outras ainda encobertas por falta de pesquisas mais detalhadas nesse domínio, a mulher angolana, entre tantas outras mulheres negras de igual valor, é projetada historicamente como a figura emblemática da grande mãe ancestral dos brasileiros. Não é em vão que Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, é apresentada como uma santa negra!.”

<><> Exemplos de expressões de origem banta

1. Babá

Tem origem na língua quimbundo e vem do verbo ‘kubaba’, que significa ‘acalentar ou embalar uma criança para adormecer’.

2. Cafuné

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kafa’, que se refere à ação de bater, estalar com os dedos

3. Cochilo

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kukoshila’.

4. Dengo

Tem origem no quicongo e, na língua original, quer dizer um pedido de aconchego.

5. Caçula

Vem de 'kasule', do quimbundo, que significa 'último filho'.

6. Moleque

Tem origem no quimbundo e vem da forma ‘muleke’, associado com 'menino'.

7. Xingar

Tem origem no quimbundo e na palavra ‘kukoshinga’.

8. Moringa

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘mudingi’.

9. Caçamba

Tem origem no quimbundo e vem da palavra ‘kasambu’ que significa cesto.

10. Capenga

Tem origem no quimbundo e na palavra ‘kiapenga’.

11. Dendê

Do quimbundo ‘ndende’, o dendê, ou óleo de palma, é popular nas culinárias africana e brasileira.

12. Marimbondo

Do quimbundo, vem de ‘madimbindo’, palavra usada para vespa.

13. Lenga-lenga

Tem origem no quimbundo e em ‘ku langa’, que significa enganar alguém.

14. Beleléu

Do quimbundo, vem de ‘mbelele’, palavra usada para se referir à morte.

15. Bunda

Do quimbundo, vem de ‘mbunda’, palavra usada para se referir a nádegas ou ânus.

As línguas bantas e o português

Fundamental para a construção do Brasil e para o movimento abolicionista, a cultura banto reverbera até hoje não só no vocabulário do português brasileiro, mas também na entonação, pronúncia e sintaxe.

‘Bantu’ é a forma como a língua é referida nos próprios idiomas locais. No Brasil, porém, os linguistas tendem a falar em línguas bantas para se referir ao conjunto de línguas.

Margarida Petter, linguista e professora aposentada do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP), explica que a denominação foi adotada por linguistas a partir da percepção de uma característica comum entre muitas das línguas: a palavra ‘pessoa’ tem sempre o uso da raiz ‘utu’, além do prefixo ‘ba’ para indicar o plural.

“Alguns africanos que foram transplantados para o Brasil já falavam alguma coisa de português por conta do contato com os colonizadores na região no entorno do Reino do Congo”, diz.

Ao mesmo tempo, diz a especialista, ao aprender a língua estrangeira, essas populações impuseram algo da gramática, da sonoridade e do vocabulário de suas línguas nativas. “Eles trouxeram para o português palavras e estruturas de suas línguas bantas”, explica Petter.

Construções como "algumas lojas estão caindo preço" ou "as ruas do centro não estão passando ônibus", que são consideradas gramaticalmente incorretas na língua culta pelo uso equivocado do sujeito, são exemplos dessa influência na língua falada, diz a linguista.

“Outra influência é a tendência na língua falada de dizer coisas como ‘as menina bonita’”, diz Margarida Petter. “Nas línguas bantas, o plural não é indicado com a letra ‘s’ no final das palavras, como no português, mas sim com o uso de um prefixo.”

“Para o falante da língua banta, apenas colocar o primeiro elemento no plural já seria suficiente para entender o sentido completo — colocar o ‘s’ no final do substantivo seria uma redundância.”

A influência banta no Brasil também está nas religiões, nas músicas e na dança. Os escravizados traficados para o país deixaram seu legado, por exemplo, na origem de ritmos e expressões musicais como o samba, o maracatu, a congada, o jongo e a capoeira.

Para Yeda Pessoa de Castro, a cantiga popular Escravos de Jó também seria mais uma marca dos bantos — e das mulheres que cantavam e ensinavam jogos para os filhos dos colonizadores.

Segundo a pesquisadora, a palavra ‘jó’ poderia ter origem na língua quimbundo e na palavra ‘njo’, que significa ‘casa’. Já o ‘caxangá’ era um jogo de tabuleiro, diz.

De acordo com Castro, as denominações candomblé, macumba e catimbó são também de origem banto e representam provavelmente as mais antigas manifestações de religiosidade afro-brasileira nascidas na escravidão, como consequência do contato de orientações religiosas ameríndias e africanas com o catolicismo nos primórdios da colonização.

Na África colonizada por Portugal, os governos de países como Angola, Moçambique e Cabo Verde adotaram o português como língua oficial após sua independência na década de 1970.

“Havia uma diversidade linguística muito grande, então decidiu-se adotar o português também para evitar contendas tribais”, explica Alexandre António Timbane, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

As línguas locais, porém, continuaram a ser usadas em contextos informais e no seio das famílias.

“As pessoas começaram a aprender o português para conseguir emprego, resolver questões burocráticas em órgãos do governo. Mas as línguas locais continuaram a ser faladas em contextos informais, nas famílias, nas canções e na educação local também”, diz Timbane.

O pesquisador moçambicano, porém, lamenta que ainda exista preconceito fora da África em relação às variedades do português africano, especialmente na área do ensino.

“A minha variedade, o meu sotaque, são influências da minha língua materna, da minha história”, diz. “Temos que considerar e tolerar sem preconceito linguístico todas as variedades e incentivar estudos e pesquisas sobre elas, porque elas são úteis.”

 

Fonte: Le Monde/BBC News Brasil

 

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