“Imunização
pode atrasar doenças degenerativas associadas a vírus e bactérias”, diz Jamila
Louahed
Apesar
dos desafios atuais com a desinformação e os movimentos antivacinas, o papel da
imunização é reconhecido globalmente como um dos fatores responsáveis pela
saúde, bem-estar e qualidade de vida da população – e inclusive com o aumento
da expectativa de vida ao longo dos anos. Agora, com o avanço da tecnologia,
novas fronteiras estão se abrindo. A lógica é interessante. As pesquisas estão
avançando para descobrir como vírus e bactérias se associam ao desenvolvimento
de doenças como lúpus, esclerose múltipla e Alzheimer. Ao desvendar essa
relação, a ideia é que as vacinas atuem justamente contra esses vírus e
bactérias e, consequentemente, ajudem a retardar o desenvolvimento de outras
doenças. Esse visão foi compartilhada por Jamila Louahed, vice-presidente e
head global de pesquisa e desenvolvimento de vacinas da GSK, em entrevista
realizada no centro de P&D da empresa na Bélgica.
As
indústrias farmacêuticas de pesquisa têm se debruçado na descoberta de novas
moléculas e soluções que podem contribuir para a saúde da população e a área de
imunização é uma das que recebe maior foco da GSK. Durante a entrevista, ela
falou sobre o que a companhia farmacêutica tem preparado e estudado como seus
próximos passos. Louahed também falou do desenvolvimento de vacinas já
existentes, como a da gripe, Covid, herpes zoster e vírus sincicial
respiratório (VSR) e da importância de proteger contra cada vez mais sorotipos,
além de buscar combinações possíveis entre as soluções.
Ela
vê esses próximos passos com otimismo, mas comenta que um desafio para trazer
esses produtos à realidade é o processo de estudo clínico, que costuma tomar um
tempo considerável em virtude de sua complexidade. Ela também falou durante a
entrevista sobre como o mercado farmacêutico vê e se prepara para possíveis
novas pandemias após as movimentações da Covid-19 e vigilância nos casos atuais
de gripe.
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Confira a entrevista na íntegra:
• Dentre as
novas tecnologias na área de vacinas, o que está no radar, quais tipos e com
que objetivo elas estão desenvolvidas?
Jamila
Louahed – Se olharmos para o peso das doenças a nível global, verificamos que,
quando envelhecemos, as doenças respiratórias se tornam uma causa de
hospitalização e morte. É algo que temos visto no segmento pediátrico. Por isso
as vacinas contra a coqueluche e a gripe existem, e tantas outas que afastam os
bebês dos hospitais. Nos adultos mais velhos, temos de garantir que a visão a
longo prazo é a forma de lidar com as doenças respiratórias, por isso mencionei
durante minha apresentação uma combinação também entre gripe e Covid.
“É
uma combinação importante porque, se olharmos para a demografia, temos a gripe,
depois o VSR (Vírus Sincicial Respiratório), a Covid e todos os vírus nos quais
estamos trabalhando para termos um pacote completo de agentes patogênicos
associados às doenças respiratórias”.
Este
é um lado, no que diz respeito aos vírus. No que diz respeito às bactérias, uma
das mais frequentes é a pneumocócica e, embora exista atualmente uma vacina no
mercado, o fato de se imunizar permite o aparecimento de sorotipos de baixa
incidência. É por isso que é necessário continuar a atualizar as vacinas com
cada vez mais sorotipos. Estamos trabalhando para ampliar os limites da
tecnologia para ter vacinas pneumocócicas com uma cobertura muito mais ampla.
Pode parecer fácil, mas é como se transformássemos mais de 30 vacinas numa
única, desde a fabricação até o desenvolvimento. Depois, se pensarmos em outros
vírus, há também os da mesma família do VSR associados a doenças respiratórias.
Onde é que queremos chegar? Há alguma coisa que possamos começar a trabalhar em
combinação com o VSR? Trata-se de um vírus que não está mudando todos os anos,
por isso, pode-se dizer que, se eu me vacinar, fico protegido durante dois ou
três anos. Mais uma vez, doenças respiratórias. E a última parte que exige
nossa atenção porque está aumentando é o vírus do herpes zoster.
• Pode dar
mais detalhes com relação ao vírus da herpes?
Jamila
Louahed – Estamos todos muito sensibilizados pelo fato de uma doença do herpes
zoster estar no ponto de virada da prevenção e do tratamento. O que todos
precisam compreender é que o nosso corpo está cheio de vírus do herpes — mais
de 90% de qualquer indivíduo tem esse vírus associado. Praticamente todos têm o
vírus Epstein-Barr. Ele usa o nosso corpo para se manter vivo. Durante toda a
nossa vida, não vemos nada. Mas quando envelhecemos, o nosso sistema
imunológico não o controla mais e, assim, ele começa a provocar doenças
crônicas. Ele está associado a linfoma, esclerose múltipla, lúpus e muitas
outras doenças. Nem todas as pessoas vão ter essas doenças, mas se tiver algum
defeito no seu sistema imunológico ou alguns fatores genéticos, é provável que
as desenvolva.
“Se
tivermos uma vacina terapêutica que possa ser administrada numa fase muito
precoce, podemos atrasar a esclerose múltipla? É possível retardar o lúpus?
Essa vacina poderá, eventualmente, ter um impacto em qualquer câncer que já
esteja sendo tratado, mas que só se verá no futuro, em 10 anos?”
Este
é um campo no qual estamos trabalhando ativamente. E, se formos mais longe, a
comunidade científica, mas também nós, faremos algumas descobertas muito
interessantes. Mais uma vez, graças aos dados que estão agora disponíveis muito
mais facilmente, verificamos que, se controlarmos esses vírus através da
imunização, acabamos por controlar a inflamação que não vemos, mas que está no
nosso corpo e que pode estar associada a alguma doença neurológica. É algo que
temos visto com a vacina contra o herpes zoster que foi desenvolvida até agora.
Se formos vacinados, atrasamos a nossa doença generativa, Alzheimer, por
exemplo. Por isso, talvez possamos ter uma vacina ainda mais eficaz. Acredito
que estamos perto disso.
• E qual o
status deste tipo de pesquisa?
Jamila
Louahed – Tudo começa com a ciência. Ciência, tecnologia e pessoas. A ciência
é: primeiro é preciso compreender. Se existe uma verdadeira ligação entre a
doença degenerativa e o agente patogênico, é preciso compreender o porquê que o
agente patogênico faz isso. Alguns vírus, como o do herpes, estão localizados
em células muito específicas, as neuronais, e é preciso compreender como se
replicam nelas para se poder conceber uma resposta imunológica adequada. Depois
de compreender a biologia, é preciso saber qual tecnologia será utilizada para
obter a resposta imunológica correta. Por vezes é um anticorpo, mas por vezes
não, pode ser uma resposta celular. Por isso, é preciso ter a tecnologia
correta. Depois, é preciso ir para o contexto clínico. O grande desafio das
últimas décadas para o tratamento preventivo é a duração do estudo clínico. Foi
por isso que a indústria farmacêutica abandonou o tratamento da doença de
Alzheimer, porque é muito difícil, o estudo clínico leva muito tempo. A única
que teve êxito foi a vacina contra o HPV para o papilomavírus.
• Mas há
alguns avanços nesta área?
Jamila
Louahed – Graças às novas tecnologias, atualmente é possível prever melhor se
alguém irá desenvolver uma doença. Assim, podemos começar pela população e
dizer “é provável que esta população desenvolva uma doença”, por exemplo,
porque tem tal marcador genético. Esses biomarcadores preditivos podem ajudar a
delinear o meu desenvolvimento clínico. E se conseguirmos demonstrar que temos
eficácia, então temos um argumento muito mais forte para dizer que a
causalidade é importante. E então, eventualmente, podemos convencer as pessoas
a tomar esta vacina numa fase inicial, a tomar vacinas preventivas. Se
pensarmos em todo o trabalho que tem sido feito sobre o aspecto cognitivo das
doenças genéticas, em que se pede às pessoas que leiam mais, que façam mais atividade
quando envelhecem, estas são ações preventivas que as pessoas fazem e que têm
impacto. Por isso, espero que, no futuro, possamos dizer que, se tomarmos
algumas vacinas, talvez também possamos ter um impacto sobre estas doenças.
• Os
especialistas em saúde pública estão preocupados com a possibilidade de uma
próxima pandemia. É possível prever ou começar a trabalhar desde já na GSK para
prepará-la para esse cenário? O que estão fazendo a respeito?
Jamila
Louahed – Sim. É interessante porque antes da pandemia, devido à nossa
experiência com a malária, o H1N1, o ebola, levantamos a preocupação de que uma
empresa não pode fazer tudo sozinha. Por isso, temos ido à OMS, à Gavi (Vaccine
Aliance) e a muitos governos para dizer: ‘OK, é necessário uma preparação para
uma pandemia’. Mas, obviamente, ninguém quer gastar um grande orçamento para
algo que pode acontecer no futuro, mas que não se pode controlar. O que
aconteceu foi um grande recall e as pessoas perceberam que não estamos
equipados para enfrentar uma emergência sanitária em nível global. É por isso
que, após a pandemia de Covid-19, os governos têm dado muita ênfase à
necessidade de garantir que têm a capacidade certa no local certo. Eu diria que
isso perdeu força, é a natureza humana. Quando se está numa crise, se faz de
tudo. Mas, apesar disso, houve muitos aprendizados que ainda se mantiveram.
• Que tipo de
aprendizados emergiram com a pandemia?
Jamila
Louahed – A que para mim é super importante é a parte científica. Se não
tivermos a ciência, não podemos enfrentar uma pandemia. Por isso, é importante
garantir que existam recursos e orçamento para os cientistas de todo o mundo em
universidades para que possam compreender as potenciais categorias de vírus ou
bactérias que possam surgir no futuro e para que a ciência esteja disponível. A
segunda é a procura de uma estrutura que possa acelerar o processo de
financiamento. Se pensarmos nos EUA e na Europa, os EUA estavam muito mais
preparados para a oportunidade de financiamento para ajudar os fabricantes,
privados e públicos, a trabalhar. A Europa estava menos preparada. E, no resto
do mundo, as pessoas também estavam se preparando para o abastecimento, porque
queriam ter acesso. Por isso, houve, diria eu, algum aspecto positivo nesta
disponibilidade de estrutura que precisa acontecer. Não na medida em que todos
queriam durante a pandemia, mas pelo menos isso está acontecendo.
• A vigilância
também é muito importante, não é?
Jamila
Louahed – Com certeza, porque se não se fizer a vigilância correta, ficamos no
escuro com relação ao próximo agente infeccioso com potencial de se alastrar.
“Agora
há muitas empresas, startups e governos que estão realmente procurando
oportunidades para obter informações antecipadas sobre novos agentes
patogênicos emergentes”.
Esse
é o caso das águas residuais. Eles recolhem amostras de solo todos os dias ou
todas as semanas e fazem um levantamento dos agentes patogênicos para ver se há
alguma coisa que está mudando, para que se possa alertar a tempo. É por isso
que se tem ouvido falar de uma potencial próxima pandemia de gripe, está
relacionado com o fato de haver muito mais vigilância. Por vezes, damos um
sinal, sabemos que está acontecendo e as pessoas podem começar a tomar medidas.
O sinal desaparece, graças a todos, mas, se não desaparecer, a atividade já
teve início. A ambição que todos esperavam durante a pandemia provavelmente
desapareceu, mas há cientistas ativos e parcerias que continuam a trabalhar
ativamente na preparação para uma pandemia.
*A
jornalista viajou à convite da GSK.
Fonte:
Entrevista para Natalia Cuminale, em
Futuro da Saúde
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