sexta-feira, 22 de novembro de 2024

“Imunização pode atrasar doenças degenerativas associadas a vírus e bactérias”, diz Jamila Louahed

Apesar dos desafios atuais com a desinformação e os movimentos antivacinas, o papel da imunização é reconhecido globalmente como um dos fatores responsáveis pela saúde, bem-estar e qualidade de vida da população – e inclusive com o aumento da expectativa de vida ao longo dos anos. Agora, com o avanço da tecnologia, novas fronteiras estão se abrindo. A lógica é interessante. As pesquisas estão avançando para descobrir como vírus e bactérias se associam ao desenvolvimento de doenças como lúpus, esclerose múltipla e Alzheimer. Ao desvendar essa relação, a ideia é que as vacinas atuem justamente contra esses vírus e bactérias e, consequentemente, ajudem a retardar o desenvolvimento de outras doenças. Esse visão foi compartilhada por Jamila Louahed, vice-presidente e head global de pesquisa e desenvolvimento de vacinas da GSK, em entrevista realizada no centro de P&D da empresa na Bélgica.

As indústrias farmacêuticas de pesquisa têm se debruçado na descoberta de novas moléculas e soluções que podem contribuir para a saúde da população e a área de imunização é uma das que recebe maior foco da GSK. Durante a entrevista, ela falou sobre o que a companhia farmacêutica tem preparado e estudado como seus próximos passos. Louahed também falou do desenvolvimento de vacinas já existentes, como a da gripe, Covid, herpes zoster e vírus sincicial respiratório (VSR) e da importância de proteger contra cada vez mais sorotipos, além de buscar combinações possíveis entre as soluções.

Ela vê esses próximos passos com otimismo, mas comenta que um desafio para trazer esses produtos à realidade é o processo de estudo clínico, que costuma tomar um tempo considerável em virtude de sua complexidade. Ela também falou durante a entrevista sobre como o mercado farmacêutico vê e se prepara para possíveis novas pandemias após as movimentações da Covid-19 e vigilância nos casos atuais de gripe.

<><> Confira a entrevista na íntegra:

•                                    Dentre as novas tecnologias na área de vacinas, o que está no radar, quais tipos e com que objetivo elas estão desenvolvidas?

Jamila Louahed – Se olharmos para o peso das doenças a nível global, verificamos que, quando envelhecemos, as doenças respiratórias se tornam uma causa de hospitalização e morte. É algo que temos visto no segmento pediátrico. Por isso as vacinas contra a coqueluche e a gripe existem, e tantas outas que afastam os bebês dos hospitais. Nos adultos mais velhos, temos de garantir que a visão a longo prazo é a forma de lidar com as doenças respiratórias, por isso mencionei durante minha apresentação uma combinação também entre gripe e Covid.

“É uma combinação importante porque, se olharmos para a demografia, temos a gripe, depois o VSR (Vírus Sincicial Respiratório), a Covid e todos os vírus nos quais estamos trabalhando para termos um pacote completo de agentes patogênicos associados às doenças respiratórias”.

Este é um lado, no que diz respeito aos vírus. No que diz respeito às bactérias, uma das mais frequentes é a pneumocócica e, embora exista atualmente uma vacina no mercado, o fato de se imunizar permite o aparecimento de sorotipos de baixa incidência. É por isso que é necessário continuar a atualizar as vacinas com cada vez mais sorotipos. Estamos trabalhando para ampliar os limites da tecnologia para ter vacinas pneumocócicas com uma cobertura muito mais ampla. Pode parecer fácil, mas é como se transformássemos mais de 30 vacinas numa única, desde a fabricação até o desenvolvimento. Depois, se pensarmos em outros vírus, há também os da mesma família do VSR associados a doenças respiratórias. Onde é que queremos chegar? Há alguma coisa que possamos começar a trabalhar em combinação com o VSR? Trata-se de um vírus que não está mudando todos os anos, por isso, pode-se dizer que, se eu me vacinar, fico protegido durante dois ou três anos. Mais uma vez, doenças respiratórias. E a última parte que exige nossa atenção porque está aumentando é o vírus do herpes zoster.

•                                    Pode dar mais detalhes com relação ao vírus da herpes?

Jamila Louahed – Estamos todos muito sensibilizados pelo fato de uma doença do herpes zoster estar no ponto de virada da prevenção e do tratamento. O que todos precisam compreender é que o nosso corpo está cheio de vírus do herpes — mais de 90% de qualquer indivíduo tem esse vírus associado. Praticamente todos têm o vírus Epstein-Barr. Ele usa o nosso corpo para se manter vivo. Durante toda a nossa vida, não vemos nada. Mas quando envelhecemos, o nosso sistema imunológico não o controla mais e, assim, ele começa a provocar doenças crônicas. Ele está associado a linfoma, esclerose múltipla, lúpus e muitas outras doenças. Nem todas as pessoas vão ter essas doenças, mas se tiver algum defeito no seu sistema imunológico ou alguns fatores genéticos, é provável que as desenvolva.

“Se tivermos uma vacina terapêutica que possa ser administrada numa fase muito precoce, podemos atrasar a esclerose múltipla? É possível retardar o lúpus? Essa vacina poderá, eventualmente, ter um impacto em qualquer câncer que já esteja sendo tratado, mas que só se verá no futuro, em 10 anos?”

Este é um campo no qual estamos trabalhando ativamente. E, se formos mais longe, a comunidade científica, mas também nós, faremos algumas descobertas muito interessantes. Mais uma vez, graças aos dados que estão agora disponíveis muito mais facilmente, verificamos que, se controlarmos esses vírus através da imunização, acabamos por controlar a inflamação que não vemos, mas que está no nosso corpo e que pode estar associada a alguma doença neurológica. É algo que temos visto com a vacina contra o herpes zoster que foi desenvolvida até agora. Se formos vacinados, atrasamos a nossa doença generativa, Alzheimer, por exemplo. Por isso, talvez possamos ter uma vacina ainda mais eficaz. Acredito que estamos perto disso.

•                                    E qual o status deste tipo de pesquisa?

Jamila Louahed – Tudo começa com a ciência. Ciência, tecnologia e pessoas. A ciência é: primeiro é preciso compreender. Se existe uma verdadeira ligação entre a doença degenerativa e o agente patogênico, é preciso compreender o porquê que o agente patogênico faz isso. Alguns vírus, como o do herpes, estão localizados em células muito específicas, as neuronais, e é preciso compreender como se replicam nelas para se poder conceber uma resposta imunológica adequada. Depois de compreender a biologia, é preciso saber qual tecnologia será utilizada para obter a resposta imunológica correta. Por vezes é um anticorpo, mas por vezes não, pode ser uma resposta celular. Por isso, é preciso ter a tecnologia correta. Depois, é preciso ir para o contexto clínico. O grande desafio das últimas décadas para o tratamento preventivo é a duração do estudo clínico. Foi por isso que a indústria farmacêutica abandonou o tratamento da doença de Alzheimer, porque é muito difícil, o estudo clínico leva muito tempo. A única que teve êxito foi a vacina contra o HPV para o papilomavírus.

•                                    Mas há alguns avanços nesta área?

Jamila Louahed – Graças às novas tecnologias, atualmente é possível prever melhor se alguém irá desenvolver uma doença. Assim, podemos começar pela população e dizer “é provável que esta população desenvolva uma doença”, por exemplo, porque tem tal marcador genético. Esses biomarcadores preditivos podem ajudar a delinear o meu desenvolvimento clínico. E se conseguirmos demonstrar que temos eficácia, então temos um argumento muito mais forte para dizer que a causalidade é importante. E então, eventualmente, podemos convencer as pessoas a tomar esta vacina numa fase inicial, a tomar vacinas preventivas. Se pensarmos em todo o trabalho que tem sido feito sobre o aspecto cognitivo das doenças genéticas, em que se pede às pessoas que leiam mais, que façam mais atividade quando envelhecem, estas são ações preventivas que as pessoas fazem e que têm impacto. Por isso, espero que, no futuro, possamos dizer que, se tomarmos algumas vacinas, talvez também possamos ter um impacto sobre estas doenças.

•                                    Os especialistas em saúde pública estão preocupados com a possibilidade de uma próxima pandemia. É possível prever ou começar a trabalhar desde já na GSK para prepará-la para esse cenário? O que estão fazendo a respeito?

Jamila Louahed – Sim. É interessante porque antes da pandemia, devido à nossa experiência com a malária, o H1N1, o ebola, levantamos a preocupação de que uma empresa não pode fazer tudo sozinha. Por isso, temos ido à OMS, à Gavi (Vaccine Aliance) e a muitos governos para dizer: ‘OK, é necessário uma preparação para uma pandemia’. Mas, obviamente, ninguém quer gastar um grande orçamento para algo que pode acontecer no futuro, mas que não se pode controlar. O que aconteceu foi um grande recall e as pessoas perceberam que não estamos equipados para enfrentar uma emergência sanitária em nível global. É por isso que, após a pandemia de Covid-19, os governos têm dado muita ênfase à necessidade de garantir que têm a capacidade certa no local certo. Eu diria que isso perdeu força, é a natureza humana. Quando se está numa crise, se faz de tudo. Mas, apesar disso, houve muitos aprendizados que ainda se mantiveram.

•                                    Que tipo de aprendizados emergiram com a pandemia?

Jamila Louahed – A que para mim é super importante é a parte científica. Se não tivermos a ciência, não podemos enfrentar uma pandemia. Por isso, é importante garantir que existam recursos e orçamento para os cientistas de todo o mundo em universidades para que possam compreender as potenciais categorias de vírus ou bactérias que possam surgir no futuro e para que a ciência esteja disponível. A segunda é a procura de uma estrutura que possa acelerar o processo de financiamento. Se pensarmos nos EUA e na Europa, os EUA estavam muito mais preparados para a oportunidade de financiamento para ajudar os fabricantes, privados e públicos, a trabalhar. A Europa estava menos preparada. E, no resto do mundo, as pessoas também estavam se preparando para o abastecimento, porque queriam ter acesso. Por isso, houve, diria eu, algum aspecto positivo nesta disponibilidade de estrutura que precisa acontecer. Não na medida em que todos queriam durante a pandemia, mas pelo menos isso está acontecendo.

•                                    A vigilância também é muito importante, não é?

Jamila Louahed – Com certeza, porque se não se fizer a vigilância correta, ficamos no escuro com relação ao próximo agente infeccioso com potencial de se alastrar.

“Agora há muitas empresas, startups e governos que estão realmente procurando oportunidades para obter informações antecipadas sobre novos agentes patogênicos emergentes”.

Esse é o caso das águas residuais. Eles recolhem amostras de solo todos os dias ou todas as semanas e fazem um levantamento dos agentes patogênicos para ver se há alguma coisa que está mudando, para que se possa alertar a tempo. É por isso que se tem ouvido falar de uma potencial próxima pandemia de gripe, está relacionado com o fato de haver muito mais vigilância. Por vezes, damos um sinal, sabemos que está acontecendo e as pessoas podem começar a tomar medidas. O sinal desaparece, graças a todos, mas, se não desaparecer, a atividade já teve início. A ambição que todos esperavam durante a pandemia provavelmente desapareceu, mas há cientistas ativos e parcerias que continuam a trabalhar ativamente na preparação para uma pandemia.

*A jornalista viajou à convite da GSK.

 

Fonte: Entrevista para Natalia Cuminale, em  Futuro da Saúde

 

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