sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Da espada à urna: 135 anos de República nos convida a refletir sobre os desafios atuais da democracia brasileira

A Proclamação da República no Brasil, ocorrida em 15 de novembro de 1889, marcou uma mudança significativa na estrutura política e social do país. Ao completar 135 anos, este evento histórico continua a suscitar debates e reflexões sobre seus impactos e legados para a sociedade brasileira contemporânea.

O fim do século XIX no Brasil foi marcado por profundas transformações sociais, econômicas e políticas. A abolição da escravatura em 1888 desestabilizou as bases do poder imperial, enquanto os ideais republicanos ganhavam força entre militares e setores da elite urbana. Além disso, o país enfrentava uma série de crises que minavam a legitimidade do regime monárquico. A Guerra do Paraguai (1864-1870) havia exposto as fragilidades do Exército e gerado insatisfações entre os militares. A questão religiosa, na década de 1870, criou atritos entre a Igreja Católica e o Estado, enfraquecendo um dos pilares tradicionais de apoio ao Império. E em relação a economia, o endividamento decorrente da guerra e as mudanças nas relações de trabalho pós-abolição geravam instabilidade.

A historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em As Barbas do Imperador (1998), argumenta que esses fatores, somados ao desgaste da figura do Imperador D. Pedro II e à crescente influência das ideias positivistas entre a elite intelectual, criaram um cenário propício para a queda da monarquia e o advento do regime republicano. Maria Tereza Chaves de Mello, também historiadora argumenta sua obra A República Consentida (2007), que a transição do Império para a República foi mais complexa do que um simples golpe militar. Segundo ela, houve uma construção gradual de um imaginário republicano que permitiu a aceitação do novo regime por grande parte da população. O estabelecimento da República não significou, contudo, uma ruptura completa com as estruturas de poder anteriores. A historiadora Emília Viotti da Costa, em Da Monarquia à República: momentos decisivos (1999), destaca a continuidade de práticas oligárquicas e a exclusão política da maioria da população. Lima Barreto, escritor e jornalista carioca, foi um dos mais contundentes críticos da Primeira República. Em obras como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), ele expôs as contradições e falhas do novo regime, denunciando o autoritarismo e a exclusão social que persistiam sob a fachada republicana.

A Proclamação da República não resultou em uma ampliação imediata da cidadania. A historiadora Ângela de Castro Gomes, em Cidadania e Direitos do Trabalho (2002), analisa como os direitos políticos e sociais evoluíram lentamente ao longo da Primeira República. A Constituição de 1891, embora tenha estabelecido o sufrágio universal masculino, manteve restrições significativas ao excluir analfabetos, mulheres, mendigos, e membros de ordens religiosas. Essas limitações, em um país onde a maioria da população não sabe ler e escrever, resultaram em um eleitorado extremamente reduzido, perpetuando a exclusão política das massas. O conceito de cidadania na Primeira República estava intrinsecamente ligado à questão do trabalho, como argumenta a historiadora Ângela de Castro em sua obra A Invenção do Trabalhismo (1988). A ideia de que o “bom cidadão” era aquele que contribuía para a nação através do trabalho ganhou força, mas essa noção era permeada por preconceitos raciais e de classe. Os ex-escravos e seus descendentes, assim como os imigrantes pobres, enfrentavam obstáculos significativos para serem reconhecidos como cidadãos plenos. A legislação trabalhista era praticamente inexistente, e as condições de trabalho nas fábricas e no campo eram frequentemente desumanas, refletindo a falta de reconhecimento dos direitos sociais básicos.

A luta pela expansão da cidadania durante a Primeira República não foi um processo linear, nem pacífico. Movimentos sociais, como as greves operárias do início do século XX, as revoltas populares como a Revolta da Vacina (1904) e o movimento sufragista feminino, pressionaram por mudanças e ampliação de direitos. A historiadora Margareth Rago, em Do Cabaré ao Lar (1985), destaca o papel das mulheres trabalhadoras na luta por direitos e reconhecimento, desafiando as normas patriarcais da sociedade republicana. Esses movimentos, embora nem sempre bem-sucedidos no curto prazo, lançaram as bases para as transformações que viriam nas décadas seguintes, culminando com a expansão dos direitos sociais e trabalhistas na Era Vargas e, mais tarde, com o reconhecimento pleno dos direitos políticos das mulheres em 1932. Apesar das limitações, o período republicano viu o surgimento de importantes movimentos sociais. A Revolta da Vacina e a Greve Geral de 1917 são exemplos de como as classes populares buscaram se fazer ouvir e reivindicar direitos.

A abolição da escravidão não eliminou as desigualdades raciais no Brasil. A historiadora Wlamyra Albuquerque, em O Jogo da Dissimulação (2009), examina como as hierarquias raciais foram reconfiguradas no contexto republicano. O ideal de branqueamento, amplamente aceito pelas elites intelectuais e políticas da época, influenciou políticas públicas e práticas sociais. A imigração europeia foi incentivada não apenas para suprir a demanda por mão de obra, mas também como parte de um projeto de “melhoramento racial” da população brasileira. Esse pensamento, fundamentado em teorias raciais pseudocientíficas, perpetuou e, em alguns aspectos, intensificou as desigualdades raciais no país.

As primeiras décadas da República também viram o surgimento de teorias que buscavam explicar e, muitas vezes, justificar a composição racial da sociedade brasileira. Schwarcz, em “O Espetáculo das Raças” (1993), analisa como as ideias de darwinismo social e determinismo racial foram apropriadas e adaptadas no contexto brasileiro. Paradoxalmente, enquanto essas teorias frequentemente reforçavam preconceitos, também começava a se desenvolver o mito da “democracia racial”, uma narrativa que, embora aparentemente positiva, acabava por mascarar e naturalizar as desigualdades raciais existentes. Essa complexa teia de ideias teve um impacto duradouro na forma como a sociedade brasileira percebia e lidava com as questões raciais. Apesar do contexto adverso, a população negra não permaneceu passiva diante das discriminações e exclusões. O historiador Petrônio Domingues, em Uma História Não Contada (2004), destaca a formação de associações, clubes e jornais da comunidade negra já nas primeiras décadas do século XX. Essas organizações não apenas proporcionavam espaços de sociabilidade e ajuda mútua, mas também se constituíam em importantes focos de resistência e luta por direitos. Movimentos como a Frente Negra Brasileira, fundada em 1931, demonstram como a população afro-brasileira se mobilizou politicamente para reivindicar sua cidadania plena e combater o racismo institucionalizado. Essas iniciativas lançaram as bases para os movimentos negros que se desenvolveriam ao longo do século XX, contribuindo para os debates sobre raça, identidade e igualdade que continuam relevantes na sociedade brasileira contemporânea.

O modelo econômico da Primeira República, baseado na exportação de produtos primários, principalmente o café, gerou riqueza para as elites, mas também criou vulnerabilidades e desigualdades regionais que persistem até hoje. A historiadora econômica Marcia Naomi Kuniochi, em sua obra Crédito, Especulação e Acumulação (2019), argumenta que este período foi marcado por uma transição complexa de uma economia escravista para uma economia capitalista de exportação. Esta transição não foi linear nem homogênea, resultando em diferentes ritmos de desenvolvimento entre as regiões do país. O café, como principal produto de exportação, desempenhou um papel central na economia da Primeira República. O historiador econômico Wilson Cano, em Raízes da Concentração Industrial em São Paulo (1977), demonstra como a economia cafeeira, especialmente no estado de São Paulo, gerou um processo de acumulação de capital que posteriormente seria fundamental para o início da industrialização brasileira. Porém, esta concentração econômica em São Paulo também acentuou as desigualdades regionais, criando o que alguns historiadores chamam de “arquipélago econômico”, com regiões em diferentes estágios de desenvolvimento e integração ao mercado mundial.

A política econômica do período foi marcada pelo que ficou conhecido como “política do café com leite”, uma aliança entre as elites cafeeiras de São Paulo e as elites pecuaristas de Minas Gerais. Esta política, como analisada pela historiadora Maria Antonieta P. Leopoldi em Política e Interesses (2000), priorizava a defesa dos interesses agroexportadores, muitas vezes em detrimento de outros setores econômicos. As várias intervenções do governo para valorizar o café, como o Convênio de Taubaté em 1906, demonstram a estreita relação entre o poder político e os interesses econômicos das elites agrárias. Apesar do predomínio da economia agroexportadora, o período também viu o início de um processo de industrialização, ainda que incipiente e concentrado. O historiador econômico João Manuel Cardoso de Mello, em O Capitalismo Tardio (1982), argumenta que esta industrialização foi, em grande parte, um desdobramento da economia cafeeira, aproveitando-se da infraestrutura, do mercado consumidor e do capital gerado pelo café. Este processo foi acelerado durante a Primeira Guerra Mundial, quando a dificuldade de importação de produtos manufaturados estimulou a produção interna.

A economia da Primeira República também foi marcada por crises e instabilidades. A historiadora econômica Gail D. Triner, em Banking and Economic Development: Brazil, 1889-1930 (2000), analisa como a fragilidade do sistema financeiro e as políticas monetárias inconsistentes contribuíram para crises econômicas recorrentes. A crise do Encilhamento no início da República e a crise de 1929, que atingiu duramente a economia cafeeira, são exemplos das vulnerabilidades do modelo econômico adotado. Estas crises não apenas impactaram a economia, mas também tiveram profundas repercussões políticas e sociais, contribuindo para o desgaste do sistema político da Primeira República e pavimentando o caminho para as transformações que viriam na década de 1930.

A República trouxe consigo ideais de modernização e progresso que se refletiram na educação e na cultura. No entanto, como aponta a historiadora Marta Maria Chagas de Carvalho em A Escola e a República (1989), o acesso à educação permaneceu restrito e elitista. As cidades brasileiras passaram por transformações significativas durante a Primeira República. Reformas urbanas, como a do Rio de Janeiro conduzida por Pereira Passos, buscavam “civilizar” e “modernizar” os espaços urbanos, muitas vezes à custa da população mais pobre.

A luta das mulheres por direitos políticos e sociais ganhou força durante a Primeira República, intimamente ligada às transformações econômicas do período. A historiadora June E. Hahner, em Emancipação do Sexo Feminino (2003), analisa como o processo de urbanização e o início da industrialização abriram novas oportunidades de trabalho para as mulheres, especialmente nas fábricas têxteis. No entanto, como ressalta a historiadora Margareth Rago em Do Cabaré ao Lar (1985), essas oportunidades vieram acompanhadas de condições de trabalho precárias e salários inferiores aos dos homens. A entrada das mulheres no mercado de trabalho formal, ainda que em condições desiguais, foi um fator crucial para o questionamento dos papéis de gênero tradicionais e para o surgimento de movimentos por direitos trabalhistas e sociais. O movimento sufragista brasileiro, liderado por figuras como Bertha Lutz, estava intrinsecamente ligado às questões econômicas e sociais. A historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, em A Mulher Casada no Código Civil de 1916 (2004), demonstra como a luta pelo direito ao voto estava associada a reivindicações por direitos civis e econômicos, como o direito de administrar propriedades e exercer profissões sem a autorização do marido. Essas demandas refletiam as contradições de uma sociedade que se modernizava economicamente, mas mantinha estruturas legais e sociais patriarcais. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundada em 1922, foi um importante espaço de articulação dessas lutas, unindo mulheres de diferentes classes sociais em torno de objetivos comuns.

É importante ressaltar que a experiência das mulheres na Primeira República não foi homogênea, variando significativamente de acordo com a classe social e a raça. A historiadora Sônia Roncador, em A Doméstica Imaginária (2008), analisa como as mulheres negras e pobres, muitas delas trabalhando como empregadas domésticas, enfrentavam uma dupla opressão de gênero e raça. Enquanto as mulheres da elite e da classe média emergente lutavam por direitos políticos e acesso à educação superior, as trabalhadoras domésticas e operárias enfrentavam jornadas exaustivas, baixos salários e falta de proteção legal. Esta realidade complexa e diversa do trabalho feminino foi um elemento central nas lutas por direitos sociais e trabalhistas do período. As mulheres também desempenharam um papel significativo na economia informal e em setores não reconhecidos oficialmente. A historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, em Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX (1984), embora focando no período anterior, lança luz sobre práticas econômicas e estratégias de sobrevivência das mulheres pobres que continuaram relevantes na Primeira República. Quitandeiras, lavadeiras e costureiras, por exemplo, foram figuras importantes na economia urbana, mesmo que marginalizadas nos discursos oficiais sobre trabalho e produção. Essas atividades econômicas, muitas vezes invisibilizadas, foram fundamentais para a subsistência de famílias e comunidades, e serviram como espaços de articulação de demandas sociais e resistência cultural, especialmente entre as mulheres negras e mestiças.

O desenvolvimento da imprensa foi crucial para a formação de uma opinião pública na República. Jornais e revistas tornaram-se importantes arenas de debate político e cultural. A República buscou inserir o Brasil de forma mais ativa no cenário internacional. A atuação do Barão do Rio Branco como ministro das Relações Exteriores foi fundamental para definir as fronteiras nacionais e projetar o país diplomaticamente. Ao longo de sua existência, a Primeira República enfrentou diversas crises políticas e econômicas. Revoltas como a de Canudos e a do Contestado expuseram as tensões sociais e os limites do poder central.

O movimento tenentista dos anos 1920 sinalizou o esgotamento do modelo político da Primeira República. As revoltas militares desse período pavimentaram o caminho para a Revolução de 1930. O historiador Boris Fausto, em A Revolução de 1930 (1997), argumenta que o tenentismo foi uma expressão da crescente insatisfação das camadas médias urbanas com o sistema oligárquico que dominava a política brasileira. Este movimento deve ser entendido no contexto das transformações econômicas e sociais discutidas anteriormente, como a incipiente industrialização e urbanização, que criaram grupos sociais não representados no sistema político vigente. As demandas do movimento tenentista, como a moralização da política, o voto secreto e a reforma da educação, refletiam as contradições de uma sociedade em transformação. Como observa a historiadora Maria Cecília Spina Forjaz em Tenentismo e Política (1987), os tenentes se viam como porta-vozes de uma modernização que a elite política tradicional, ligada aos interesses agroexportadores, resistia em implementar. Esta tensão entre modernização e conservadorismo se relacionava diretamente com as questões econômicas abordadas anteriormente, como a dependência do café e a necessidade de diversificação econômica. Além disso, o tenentismo incorporou, ainda que de forma limitada, algumas das demandas dos movimentos sociais discutidos, como o movimento operário e o movimento feminista, em sua crítica ao sistema oligárquico. É importante notar, contudo, que o tenentismo não era um movimento homogêneo nem necessariamente progressista em todas as suas facetas. O historiador José Murilo de Carvalho, em Forças Armadas e Política no Brasil (2005), destaca que muitos tenentes tinham visões autoritárias e elitistas, vendo-se como uma vanguarda iluminada capaz de modernizar o país “de cima para baixo”. Esta característica do movimento tenentista refletia as contradições da própria formação da cidadania no Brasil, discutida anteriormente, onde os direitos sociais muitas vezes precederam os direitos políticos, em um processo de cidadania “regulada” pelo Estado. O legado do tenentismo, portanto, é complexo e ambíguo, tendo contribuído tanto para o fim da Primeira República quanto para a configuração do Estado autoritário e centralizador que emergiu após 1930.

Ao analisar o legado da Primeira República, é importante considerar tanto seus avanços quanto suas limitações. A construção de instituições republicanas e a ampliação, ainda que limitada, da participação política foram conquistas importantes.

A relação entre república e democracia no Brasil tem sido complexa e por vezes contraditórias. O ideal republicano, que prometia uma ruptura com as estruturas oligárquicas do Império, nem sempre se traduziu em práticas verdadeiramente democráticas. Como observa José Murilo de Carvalho em Os Bestializados (1987), a transição para a República foi marcada por uma participação popular limitada, o que ele descreve como um processo no qual “o povo assistiu bestializado” às mudanças políticas. Esta observação se alinha com o que discutimos anteriormente sobre as limitações da cidadania na Primeira República, onde o direito ao voto era restrito e as decisões políticas permaneciam nas mãos de uma elite. A estrutura econômica da Primeira República, baseada na exportação de produtos primários e dominada pelas oligarquias cafeeiras, como analisamos anteriormente, teve um impacto profundo na configuração do sistema político. A “política dos governadores” e o coronelismo, discutidos por Victor Nunes Leal em Coronelismo, Enxada e Voto (1948), demonstram como as relações de poder econômico se traduziam em controle político, limitando severamente o exercício da democracia. Esta realidade contrasta fortemente com os ideais republicanos de igualdade e representação popular, evidenciando a distância entre o discurso e a prática na jovem república brasileira.

No entanto, seria um erro considerar a Primeira República como um período de estagnação democrática. Como vimos na discussão sobre os movimentos sociais, incluindo o movimento operário, o movimento feminista e as organizações negras, este foi um período de intensa mobilização e luta por direitos. Estas lutas, embora nem sempre bem-sucedidas no curto prazo, foram fundamentais para a expansão gradual da cidadania e para a construção de uma cultura democrática no Brasil. Ângela de Castro, em A Invenção do Trabalhismo (1988), demonstra como as demandas dos trabalhadores por direitos sociais e políticos contribuíram para redefinir o conceito de cidadania no país. O tenentismo, discutido anteriormente, representa outro aspecto complexo da relação entre república e democracia no Brasil. Por um lado, o movimento criticava as práticas oligárquicas e demandava reformas que poderiam ampliar a participação política. Por outro lado, como observamos, muitos tenentes tinham visões autoritárias e elitistas sobre a condução do país. Esta ambiguidade reflete as tensões presentes na sociedade brasileira da época, dividida entre o desejo de mudança e o temor de uma participação popular mais ampla.

A crise da Primeira República, que culminou na Revolução de 1930, pode ser vista como o resultado dessas contradições acumuladas. O novo regime que emergiu após 1930, embora tenha ampliado certos direitos sociais, especialmente os trabalhistas, também se caracterizou por tendências autoritárias. Este padrão de expansão de direitos sociais acompanhada de restrições aos direitos políticos, que o sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada” em Cidadania e Justiça (1979), tornou-se uma característica recorrente na história republicana brasileira. Assim, o desafio de conciliar os ideais republicanos com práticas verdadeiramente democráticas permaneceu (e, em muitos aspectos, ainda permanece) uma questão central na política brasileira.

A forma como a República e seus símbolos foram recebidos e reinterpretados pela população é um campo fértil de estudos. A historiadora Maria de Lourdes Monaco Janotti, em Os Subversivos da República (1986), explora as resistências e reelaborações populares do ideário republicano. Este processo de recepção e reinterpretação não pode ser dissociado das realidades econômicas e sociais discutidas anteriormente. Como vimos na análise da estrutura econômica da Primeira República, a manutenção de desigualdades profundas e a exclusão de grande parte da população dos benefícios do progresso econômico influenciaram diretamente a forma como os ideais republicanos eram percebidos e assimilados pelas camadas populares. O imaginário republicano, com seus símbolos e rituais, muitas vezes contrastava com a experiência cotidiana da maioria da população. José Murilo, em  A Formação das Almas (1990), analisa como os símbolos republicanos, como a figura de Tiradentes e a bandeira nacional, foram construídos e difundidos, nem sempre encontrando ressonância imediata no imaginário popular. Esta dissonância entre o discurso oficial e a percepção popular pode ser relacionada com as discussões anteriores sobre cidadania e participação política. A exclusão de grande parte da população do processo político formal, como vimos ao analisar as restrições ao voto e a “política dos governadores”, criava um distanciamento entre o povo e os ideais republicanos propagados pelas elites. Todavia, seria equivocado pensar que a população permaneceu passiva diante desse processo. Como discutimos ao abordar os movimentos sociais e as lutas por direitos, diversos grupos reinterpretaram e ressignificaram os ideais republicanos de acordo com suas próprias aspirações e necessidades. O movimento operário, por exemplo, apropriou-se do discurso de igualdade e cidadania para reivindicar direitos trabalhistas. As mulheres, como vimos, utilizaram a retórica republicana de progresso e modernização para demandar o direito ao voto e à participação política. Estes movimentos demonstram como o imaginário republicano foi constantemente negociado e contestado, não apenas imposto de cima para baixo.

A literatura da época, especialmente as obras de autores como Lima Barreto, mencionado anteriormente, oferece um vislumbre valioso de como a República era percebida e criticada por setores mais amplos da sociedade. Em romances como “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Barreto expõe as contradições entre os ideais republicanos e a realidade social do país, dando voz a um desencantamento que era compartilhado por muitos. Esta visão crítica da República no imaginário popular se alinha com as discussões anteriores sobre as limitações da democracia no período e as persistentes desigualdades econômicas e sociais. Assim, podemos ver como o imaginário popular sobre a República não era monolítico, mas sim um terreno contestado, refletindo as complexidades e contradições da sociedade brasileira do período.

As celebrações dos aniversários da República oferecem oportunidades para reflexão crítica sobre o passado e o presente. A maneira como esses marcos são lembrados e comemorados revela muito sobre as disputas de memória e os projetos políticos em curso. Ao completar 135 anos, a Proclamação da República nos convida a refletir sobre os desafios atuais da democracia brasileira. Questões como desigualdade social, representatividade política e participação cidadã continuam a demandar atenção e ação. A persistência de desigualdades econômicas e sociais, que remontam ao início da República e foram discutidas ao longo deste texto, permanece como um dos principais obstáculos à realização plena dos ideais republicanos e democráticos. Como vimos na análise da estrutura econômica da Primeira República, a concentração de riqueza e poder nas mãos de uma elite restrita criou padrões de desigualdade que, embora transformados, ainda se fazem sentir na sociedade brasileira contemporânea.

A questão da representatividade política, tema central nas discussões sobre cidadania e participação ao longo da história republicana, continua sendo um desafio crucial. Embora tenhamos avançado significativamente desde as restrições ao voto da Primeira República, persistem questões sobre a qualidade da representação e a inclusão efetiva de grupos historicamente marginalizados no processo político. As lutas das mulheres, dos afro-brasileiros e dos trabalhadores por reconhecimento e direitos, que analisamos no contexto da Primeira República, continuam relevantes, assumindo novas formas no cenário político atual. A compreensão dessas continuidades históricas é fundamental para enfrentar os desafios contemporâneos da democracia brasileira, reafirmando o compromisso com os ideais de igualdade, liberdade e participação que estiveram no cerne do projeto republicano desde seu início, mesmo que muitas vezes mais como aspiração do que como realidade.

Ao fazer um balanço desses 135 anos, é evidente que seu legado é complexo e multifacetado. A Proclamação da República representou uma ruptura significativa com o passado monárquico, trazendo consigo promessas de modernização, progresso e participação popular. No entanto, como vimos ao longo deste texto, a realização desses ideais foi marcada por contradições e desafios persistentes. A República nasceu de um golpe militar, com limitada participação popular, e suas primeiras décadas foram caracterizadas por uma democracia restrita, dominada por oligarquias regionais. Ao mesmo tempo, esse período viu o surgimento de importantes movimentos sociais e lutas por direitos, que contribuíram para moldar a trajetória da cidadania no Brasil.

O legado econômico da Primeira República é igualmente complexo. Por um lado, o modelo agroexportador, centrado no café, gerou riqueza e lançou as bases para a futura industrialização do país. Por outro, consolidou padrões de desigualdade regional e social que persistem até os dias atuais. A República também trouxe consigo novos debates sobre identidade nacional, raça e cultura, que tiveram profundo impacto na formação da sociedade brasileira moderna. A questão racial, em particular, permaneceu um desafio não resolvido, com a persistência de desigualdades e discriminações, apesar dos avanços formais na legislação.

Olhando para o presente, é claro que muitos dos desafios enfrentados pela jovem República ainda ecoam na sociedade brasileira contemporânea. A luta por uma democracia mais inclusiva e participativa, por uma economia que gere prosperidade compartilhada, e por uma sociedade que supere suas profundas desigualdades continua sendo central. Porém, o legado da Proclamação da República também inclui uma tradição de mobilização social e luta por direitos que tem sido fundamental para os avanços democráticos alcançados. Assim, ao refletir sobre esses 135 anos, somos lembrados de que a República não é apenas um sistema de governo, mas um projeto em constante construção, que demanda o engajamento contínuo dos cidadãos para sua plena realização.

 

Fonte: Por Erik Chiconelli Gomes, no Le Monde

 

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