Os números
implacáveis da economia mileísta
Em
duas notas anteriores analisamos a política econômica do governo da legenda
política La Libertad Avanza (LLA). Neste artigo, atualizamos alguns números da
economia argentina até 2024. Com isso, não temos nenhuma pretensão de
originalidade. Simplesmente queremos contribuir para a crítica que se eleva de
muitos outros focos de resistência contra uma política brutalmente dirigida
contra os trabalhadores e as massas despojadas e empobrecidas. Começamos com os
números de pobreza e indigência fornecidos pelo INDEC (Instituto Nacional de
Desenvolvimento Econômico).
<><>
Pobreza: 52,9% da população. São 24,8 milhões de pessoas. No final de 2023, a
pobreza era de 42%. Hoje, há 5,4 milhões de pobres a mais do que no segundo
trimestre de 2023. A pobreza infantil atinge 66%.
<><>
Indigência: 18,1%; são 8,5 milhões de pessoas; 3 milhões a mais do que no
segundo trimestre de 2023; 27% das crianças menores de 14 anos estão em
situação de indigência. No final de 2023, a indigência era de 11%. Além disso,
23% das crianças entre 3 e 5 anos não frequentam estabelecimentos educativos
formais; 35% dos jovens não concluíram o ensino médio.
De
acordo com o Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica
Argentina, em uma pesquisa conjunta com o Banco Hipotecário, 56% dos menores de
idade em centros urbanos não têm acesso a esgoto, pavimentação e calçadas; 53%
não têm acesso ao gás; 38% carecem de sistemas de esgoto; 19% estão em situação
de precariedade habitacional e 18% sofrem com superlotação. É nesse corpo
social, de carne viva, que o governo de LLA aplica o “ajuste” dos gastos
públicos.
·
Queda dos salários
Desde
que Milei assumiu, houve uma queda acentuada dos salários reais, devido à
erosão causada pela inflação. Em julho de 2024, o aumento médio, interanual,
dos salários foi de 206%. Nesse mês, os salários dos funcionários públicos
aumentaram, interanualmente, 170%; os do setor privado não registrado, 178%; e
os do setor privado registrado cresceram 235,1%, também de forma interanual. Por
outro lado, a inflação, em julho, interanual, foi de 263,4%. Portanto, os
salários dos funcionários públicos caíram, em termos reais, 25,7%; os do setor
privado não registrado diminuíram 23,2%; e os do setor privado registrado
caíram, em termos reais, 7,8%.
·
Manobra discursiva
Para
dissimular a contundência desses dados, o governo recorre à comparação
trimestral ou mensal. No caso da pobreza, os 52,9% do semestre informado pelo
INDEC surgem da média dos dados dos dois primeiros trimestres: a pobreza no 1º
trimestre foi de 55%; no 2º trimestre caiu para 51%. Milei utiliza essa queda
para afirmar que “a pobreza está diminuindo”. Algo semelhante ocorre com a
evolução dos salários. Dado que nos últimos 4 meses os aumentos salariais foram
um pouco superiores à inflação, novamente, o discurso oficial é “os salários
estão subindo”. Dessa forma, dissimula a forte queda de longo prazo dos
salários e o aumento, também de longo prazo, da pobreza e da indigência. Os
repiques são apenas isso, repiques, que não modificam a tendência de fundo. Mais
geralmente, é uma regra no capitalismo que, quando ocorrem grandes crises e
depressões, chega um ponto em que a queda dos salários atinge um limite e os
rendimentos têm alguma recuperação, ao mesmo tempo que a atividade econômica se
recupera. Mas isso não apaga que: a) a crise é paga pelos trabalhadores e
setores populares; b) os salários terminam em níveis inferiores aos do início
da crise; c) a pobreza e a indigência permanecem em níveis mais elevados do que
antes da crise. Como bem advertia Marx, quando se fala de salários, o que
importa é o longo prazo, acima das alterações conjunturais. E o que se impõe
hoje, na Argentina, é uma queda profunda dos salários reais (ou seja, da cesta
de bens que reproduzem a força de trabalho) de milhões de trabalhadores.
·
A economia no fundo
O
Produto Interno Bruto (PIB) no 2º trimestre caiu 1,7% interanual; e 1,7% em
relação ao 1º trimestre. No primeiro semestre, a queda foi de 3,4%. No 2º
trimestre pode ter atingido um fundo, mas não há sinal de que esteja ocorrendo
uma recuperação importante e sustentada. Por enquanto, apenas se registram
leves repiques, sem que a economia saia do buraco. Segundo o Relevamento de
Expectativas de Mercado (REM), a pesquisa realizada pelo Banco Central, a
atividade econômica no 3º trimestre aumentou apenas entre 1,1% e 1,6% em
relação ao 2º trimestre. E espera-se um crescimento menor, entre 0,6% e 0,9%,
no 4º trimestre em relação ao 3º trimestre. O resultado é que a economia
fecharia o ano com uma queda entre 3,8% e 3,9%.
Outros
dados: o Estimador Mensal de Atividade Econômica (EMAE) foi negativo em 3,5%
nos primeiros 7 meses do ano. Segundo a FIEL (Fundación de Investigaciones
Económicas Latinoamericanas), em agosto a indústria caiu 0,7% em relação a
julho. O acumulado dos primeiros oito meses do ano é negativo em 10,5%. De
acordo com a consultoria Orlando Ferreres, o Índice Geral de Atividade, após
registrar um avanço de 1% em julho em comparação com junho, voltou a retroceder
0,6% em agosto. Na comparação anual, o índice foi negativo em 5,6%.
Também
na comparação interanual, houve melhora na agricultura e pecuária, mas a
indústria, construção e comércio experimentaram uma forte queda (Ámbito
Financiero, 28/09/2024). Um relatório da Superintendência de Riscos do Trabalho
indica que nos primeiros seis meses do ano encerraram suas atividades 9092
microempresas (microempresas são aquelas com menos de cinco trabalhadores). E
fecharam 2634 empresas de maior porte (M. Zalazar, Infobae, 25/09/2024).
Em
relação ao consumo privado, no 2º trimestre de 2024 foi 9,8% menor do que no 2º
trimestre de 2023. O consumo público, também na comparação interanual, foi 6%
menor. Em relação ao 1º trimestre de 2024, no 2º trimestre ambos foram
negativos em 4,1% e 1,1%, respectivamente (INDEC). Segundo a Câmara Argentina
de Comércio (CAC), em agosto o consumo caiu 7,8% interanual e 1,8% em relação a
julho; em julho, havia aumentado 1,8% em relação a junho. Nos primeiros oito
meses do ano, a queda do consumo privado foi de 6,4%. Alguns setores são
particularmente afetados: recreação e cultura caíram, em agosto,
interanualmente, 21,7%. O setor de vestuário teve uma queda de 17%, interanual.
De acordo com a consultoria Scentia, especializada em consumo de massa, em
julho o consumo caiu, em termos interanuais, 16,1%. Em agosto, a queda
interanual chegou a 20%. No segmento de eletrodomésticos, a queda chega a 33%.
Os
números fornecidos pela Confederação Argentina da Média Empresa (CAME) em
relação a setembro são coincidentes: as vendas no varejo caíram 5,2% em relação
ao mesmo mês de 2023; nos primeiros 9 meses de 2024 acumulam uma queda
interanual de 15% (La Nación, 07/10/2024). A porcentagem de queda diminui – de
21,9% em junho para 5,2% em setembro – mas não há indícios de que se tenha
entrado em uma fase de recuperação da recessão. Em agosto, a construção caiu
2,9% em relação a julho, e no acumulado do ano teve uma queda de 30,3%.
A
indústria cresceu 1,5% intermensal, mas no acumulado do ano caiu 13,6%. Outro
exemplo ilustrativo é a venda de automóveis zero quilômetro (o consumo de bens
duráveis tende a crescer fortemente nas recuperações). Em setembro, as vendas
aumentaram 5% em relação a agosto, mas entre janeiro e setembro caíram 11,7% em
comparação com o mesmo período de 2023. No que se refere ao investimento, ele
também está em queda acentuada. Tudo muito distante da recuperação em “V” que,
segundo Milei e Caputo, ocorreria a partir de março ou abril.
·
Trabalho informal e o
decreto 847/2024
De
acordo com o INDEC, no segundo semestre de 2024, 36,4% dos assalariados não
tiveram contribuições previdenciárias. Isso significa que esses trabalhadores
não possuem benefícios básicos, como plano de saúde, férias remuneradas ou
direito à indenização em caso de demissão. Algumas áreas são especialmente
afetadas. Na construção civil, 70% dos trabalhadores não estão registrados.
Entre as mulheres que trabalham como domésticas, 76% estão na informalidade.
Essa elevada informalidade explica o fato de que a taxa de desemprego tenha
subido apenas dois pontos percentuais (no 1º trimestre foi de 7,7%, no 2º
trimestre de 7,6%, contra 5,7% no 4º trimestre de 2023), apesar da forte queda
da economia.Nesse contexto, o decreto 847/2024 consolida e legitima a informalidade
trabalhista. Entre outras medidas, cria a categoria de “colaboradores”: será
possível contratar até três “colaboradores” sem que isso gere vínculo
empregatício. Além disso, sob o pretexto de “Promoção do emprego registrado”, o
empregador fica isento de multas, sanções ou contribuições por ter empregados
não registrados. O Registro de Sanções Trabalhistas é eliminado, e as dívidas
pendentes devido à falta de pagamento de contribuições ou encargos patronais
são perdoadas. Ademais, abre-se a possibilidade de modificar as indenizações
por demissão, com os trabalhadores “negociando livremente” com as empresas, em
uma posição claramente desfavorável.
·
Aumento da
participação dos lucros no PIB
Se
os salários caem mais do que o PIB, necessariamente a relação lucro/salário
aumenta, ou seja, a participação dos lucros no produto cresce. “Lucros”
compreendem os benefícios das empresas, as rendas (agrícola, mineral,
imobiliária) e os juros. Em termos marxistas, isso indica um aumento na taxa de
mais-valia.
Essa
é uma relação fundamental a ser observada. Ela evidencia que o conflito social
chave é, em termos de classes sociais, a transferência do valor agregado
(gerado pelo trabalho) aos proprietários dos meios de produção e do capital.
Esse é o objetivo final da política econômica da LLA. Essa transferência se
manifesta no aumento do coeficiente de Gini, um indicador de desigualdade de
renda. No 2º trimestre de 2024, foi de 0,436 (1 indica desigualdade absoluta, 0
igualdade absoluta de renda). “No mesmo trimestre de 2023, o valor foi de
0,417, o que mostra um aumento significativo da desigualdade na comparação
anual” (“Evolução da distribuição da renda”, INDEC, 2T 2024). Outro dado
significativo: no 2º trimestre de 2024, o 10% mais rico recebeu 32,5% da renda,
enquanto os 50% mais pobres receberam 19,9% (INDEC, 31 aglomerados urbanos;
rendas individuais). A renda média dos quatro primeiros decis da população,
classificada conforme a renda de sua ocupação principal, foi de $153.323
(US$138 com a taxa de câmbio de $1300/US$).
·
Investimento
O
investimento é fundamental para o desenvolvimento das forças produtivas
(primeiramente, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento do trabalho
produtivo). Segundo o INDEC, a formação bruta de capital fixo (incluindo
edifícios, equipamentos de transporte, máquinas industriais, equipamentos de
informática e software) no 2º trimestre foi 29,4% menor em relação ao mesmo
período de 2023. Em relação ao 1º trimestre de 2024, foi 9,1% menor. De acordo
com a consultoria Orlando Ferreres y Asociados, o investimento real em agosto
caiu 25,8% em termos anuais. O acumulado dos primeiros oito meses do ano é de
-21,5%. No setor de máquinas e equipamentos, o estudo registrou uma queda anual
de 23,7%. A importação de equipamentos duráveis para produção caiu 42,8%. No setor
de construção, o investimento caiu 27,6% em termos anuais. Quanto ao
investimento público, este praticamente desapareceu. Uma situação insustentável
no médio prazo, pois a reprodução do capital é impossível sem investimento em
infraestrutura, que muitas vezes só pode ser realizado pelo Estado. Neste
sentido, é também preocupante a redução do investimento estatal em pesquisa e
desenvolvimento (com cortes no financiamento do CONICET, das universidades e de
outros órgãos como o INTI). O investimento em P&D na Argentina já era muito
baixo, representando apenas 0,52% do PIB (menos que a média da América Latina;
muito abaixo de países como os EUA ou Coreia do Sul). Milei e seu grupo querem
reduzi-lo ainda mais. Trata-se, simplesmente, de barbárie, mesmo considerando a
questão do ponto de vista do desenvolvimento capitalista.Outro dado
significativo é que, de dezembro de 2023 a agosto de 2024, oito multinacionais
deixaram a Argentina: HSBC, Xerox, Clorox, Prudential, Nutrien, ENAP, Fresenius
Medical Care e Procter & Gamble. Parece que não basta apenas o equilíbrio
fiscal para garantir o investimento.
·
Investimento direto,
de portfólio e moratória
Em
repetidas oportunidades, o Governo afirmou que capitais internacionais estão
considerando investir na Argentina. Mas a realidade é que, por enquanto, o
investimento estrangeiro direto de não residentes é muito fraco: o acumulado
até agosto foi de apenas US$ 531 milhões. O acumulado do investimento de
portfólio de não residentes, entre janeiro e agosto, foi até negativo, com US$
10 milhões (Balanço cambial). Por outro lado, nesse mesmo período, o acumulado
de “Formação de ativos externos do setor privado não financeiro” foi de US$ 1.2
bilhão (em agosto, US$ 456 milhões; Balanço Cambial). Lembremos que os ativos
de argentinos no exterior somam US$ 450,7 bilhões (investimentos diretos,
investimentos de portfólio, depósitos em dólares, mais reservas do BCRA). Isso
demonstra que a falta de desenvolvimento não se deve a uma escassez de
poupança, mas sim à falta de investimento (em termos marxistas, reinvestimento
da mais-valia em trabalho produtivo). Nesse quadro, insere-se a recente entrada
de dólares pela ocultação. Até 24 de setembro, os depósitos em dólares nos
bancos experimentaram um aumento de US$ 11.9 bilhões. Uma parte desses capitais
comprou títulos públicos e bônus corporativos (obrigações negociáveis). Assim,
os preços dos bônus do Tesouro subiram, o risco país caiu abaixo de 1.200
pontos, o dólar blue e os dólares financeiros caíram; e a taxa à qual grandes
empresas se endividaram diminuiu. O aumento dos depósitos em dólares também
permitiu uma certa recuperação dos créditos em dólares, principalmente
destinados a pré-financiar exportações. Daí o “veranito financeiro”. Mas nada
indica que esteja em andamento uma recuperação sustentada da acumulação de
capital. Menos ainda que se superem os níveis historicamente baixos de
investimento na Argentina: há décadas, nos melhores anos, não ultrapassam 20%
do PIB.
·
Superávit fiscal com
mais fome e miséria
O
superávit nos oito primeiros meses foi de 0,35% do PIB. Esse resultado foi
obtido principalmente por meio de “ajustes” nos salários dos servidores
públicos, nas aposentadorias, na redução de subsídios e no colapso da obra
pública. Segundo “Profit Consultores”, e reproduzido no programa de Maxi
Montenegro, nos primeiros oito meses a redução das despesas públicas foi:
• Gastos de capital: -79,4%
• Transferências correntes para províncias: -69,1%
• Outros gastos correntes: -46,5%
• Subsídios à energia: -36,8%
• Subsídios econômicos: -34,9%
• Subsídios às universidades: -34,2%
• Outros gastos de funcionamento: -32,8%
• Subsídios ao transporte: -27,5%
• Programas sociais: -26,4%
• Gastos correntes primários: -24,7%
• Aposentadorias e pensões contributivas: -22,6%
• Gastos de funcionamento e outros: -22,3%
• Atribuições familiares, ativos, passivos e outros: -21,5%
• Pensões não contributivas: -20,6%
• Salários: -19,5%
• Prestação social: -19,5%
A
participação no ajuste do gasto público nos primeiros oito meses de 2024 (mesma
fonte):
• Aposentadorias e pensões não contributivas: 25,3%
• Gastos de capital: 23,2%
• Subsídios econômicos: 14,5%
• Outros programas sociais: 8,8%
• Salários: 8,6%
• Transferências correntes para províncias: 7%
• Transferências para universidades: 3,9%
• Resto: 8,8%
Além
disso, e devido à queda da economia, a arrecadação fiscal diminui. No primeiro
semestre, caiu em termos reais, 7% em relação ao ano anterior. Em agosto, a
receita, em termos reais, diminuiu 14% em relação ao ano anterior. Em setembro,
caiu “apenas” 3,4% devido a um fator circunstancial, os adiantamentos do
imposto sobre bens pessoais. A arrecadação relacionada à evolução do produto
diminuiu fortemente. A do IVA foi negativa, em relação ao ano anterior, em
16,3%, e os impostos sobre ganhos, -13%. Isso poderia levar a novas reduções do
gasto público e novas quedas na arrecadação.
·
Controle da inflação é
suficiente para o desenvolvimento?
Milei
e seus apoiadores apresentam como se fosse um grande feito ter reduzido a
inflação de 25% em dezembro – potencializada pela desvalorização que o próprio
governo provocou – para, aproximadamente, 4% ou (previsto) 3,8%,
aproximadamente (mas a “inflação núcleo” parece continuar em 4,2%). Um “feito”
obtido com base em uma profunda recessão; a queda dos rendimentos salariais e
aposentadorias; o aumento, por milhões, dos pobres e indigentes; e o colapso da
obra pública; o desfinanciamento da educação pública e de entidades culturais,
científicas e técnicas. Esse desastre social é justificado em alguns círculos
com o argumento de que “se reduzirmos a inflação, haverá desenvolvimento”. Mas
isso não é verdade. A redução de uma taxa de inflação elevada para uma mais
baixa não é uma condição suficiente para que haja desenvolvimento ou para
melhorar a vida das massas. Afinal, o sistema capitalista passou por crises e
depressões não apenas sem inflação, mas com pressões deflacionárias. Por
exemplo, a crise de 1929-1933 nos EUA; e a crise e depressão pós-1992 no Japão.
Ou a crise argentina de 2001.Mas mais significativo é um caso como o do Peru. A
partir de um duríssimo plano de ajuste, que começou a ser implementado por
Fujimori, desde 1997, o Peru tem uma inflação anual de um dígito. No entanto, a
situação das massas trabalhadoras não melhorou de forma substancial. A pobreza
caiu em relação aos altos níveis alcançados nos anos 1990 – durante “o ajuste”
– mas se estabilizou em 29%. E 50% dos empregos são informais ou precários.
·
Crescimento da dívida
Em
agosto, o estoque da dívida bruta em condições de pagamento normal ascendeu a
US$ 455,9 bilhões (Ministério da Economia). Em relação a julho, a dívida
aumentou em US$ 6,3 bilhões, um aumento de 1,4%. Em relação a dezembro de 2023,
o estoque da dívida aumentou em mais de US$ 87,7 bilhões, em grande parte
porque a dívida do BCRA (Banco Central da República Argentina) foi transferida
ao Tesouro. E há negociações em andamento para aumentar o endividamento com um
grupo de bancos (veja mais abaixo).
·
Interlúdio: algumas
precisões sobre a dívida
Em
primeiro lugar, é importante destacar que o problema da dívida não se limita à
dívida externa, como algumas pessoas parecem pensar. De fato, a dívida externa
do governo geral (governo central mais governos provinciais), no segundo
trimestre de 2024, era de US$ 154,5 bilhões. Isso representa 34% do total da
dívida. As duas terças partes da dívida estão nas mãos de residentes
argentinos. Portanto, não é um problema “nacional” ou de defesa “da pátria”,
mas sim de interesses capitalistas.
Em
segundo lugar, deve-se considerar que mais de 45% da dívida está nas mãos de
agências do setor público; 92% no Fundo de Garantia de Sustentabilidade (FGS)
da ANSES; e os 8% restantes em outras entidades do setor público, como o Banco
Nacional e o BCRA. O FGS é, então, um fundo soberano de investimento composto
por diversos ativos financeiros, integrado ao sistema previdenciário. Possui
títulos do Tesouro no valor de cerca de US$ 31,3 bilhões (essa avaliação varia
de acordo com a taxa de câmbio utilizada como referência), que representam 10%
dos títulos emitidos pelo setor público. De acordo com a lei Ómnibus, esses
títulos públicos que estão sob a posse do FGS serão transferidos para o
Tesouro, serão cancelados e deixarão de circular. O que, na prática, é um
default dos títulos em mãos da ANSES. Uma questão a ser considerada quando a
esquerda demanda a suspensão do pagamento da dívida.
Em
terceiro lugar, os títulos de dívida emitidos pelo Tesouro, mais os créditos
concedidos ao setor público, representam hoje uma parte significativa dos
ativos dos bancos. O governo pressionou os bancos a adquirirem títulos do
Tesouro. Como resultado, em julho, as LEFI (Letras Fiscais de Liquidez),
emitidas pelo Tesouro para substituir os Pases do BCRA, representavam 37,1% dos
ativos dos bancos. Isso se soma a mais 6% por créditos ao setor público (BCRA,
“Relatório sobre bancos”, julho de 2024). Essa exposição cresceu continuamente
nos últimos 12 meses, ou pouco mais. Em abril de 2023, os passivos do Tesouro
representavam 16,4% dos ativos dos bancos; em junho, a proporção havia subido
para 36,9%. Agora, chega a 43,9%. Portanto, um default da dívida colocaria o
sistema bancário em graves dificuldades (e a contrapartida desses ativos são os
depósitos dos poupadores). Tanto essa questão quanto a posse de dívida pública
pela ANSES mostram que um default da dívida só pode ter um sentido progressista
se a medida estiver articulada em um programa de transformação social radical.
Caso contrário, é um remendo que não modifica nada substancialmente.
Por
último, lembremos que 19,6% do estoque da dívida corresponde a organismos
internacionais. A dívida com o FMI representa 9,4% da dívida total; e 26% da
dívida externa. Outro dado que deve ser levado em conta, desta vez por aqueles
que reduzem a reivindicação de se livrar da dívida a simplesmente parar de
pagar ao FMI.
·
Reservas
internacionais e pagamentos da dívida em 2025
Há
muitas décadas, as crises econômicas na Argentina explodem do lado externo,
especialmente devido a crises na balança de pagamentos – perda de reservas,
corridas cambiais – muitas vezes seguidas de crises bancárias e financeiras,
incluindo defaults da dívida pública. Daí a importância de acompanhar as contas
externas.
Entre
dezembro de 2023 e maio de 2024, o balanço cambial da conta corrente foi
superavitário em US$ 12,1 bilhões. Assim, o BCRA reduziu o negativo das
reservas internacionais de mais de US$ 10 bilhões, no final do governo de
Fernández, para cerca de US$ 2 ou 3 bilhões. No entanto, a situação mudou a
partir de maio. Entre junho e agosto, o balanço cambial da conta corrente foi
deficitário em US$ 3,16 bilhões. Na soma de junho e julho, o BCRA perdeu US$
162 milhões; em agosto acumulou US$ 535 milhões e em setembro, US$ 373 milhões.
Nos primeiros dias de outubro, houve mais compras pelo Banco Central,
possibilitadas em parte pela já mencionada moratória e pelo crescimento dos
depósitos em dólares. No entanto, ainda está longe de cobrir os pagamentos
pendentes. No total, em 2025, os pagamentos por serviço da dívida superam os
US$ 17 bilhões (incluem pagamento de juros ao FMI; capital e juros a outros
organismos internacionais; a credores). A isso se soma a dívida por BOPREAL
(pagamento postergado de importações já realizadas) que ultrapassa os US$ 2,1
bilhões.
Além
disso, devemos acrescentar:
a)
o peso está se valorizando gradualmente, já que o dólar oficial aumenta 2% ao
mês, que é metade do aumento dos preços. Isso enfraquecerá o balanço da conta
corrente;
b)
a variação do preço do dólar abaixo da taxa de juros em pesos possibilita uma
lucrativa bicicleta financeira. Por exemplo, se o juro pago por um título em
pesos é de 4% ao mês, e se o peso se desvaloriza em 2% ao mês, haverá um lucro
em dólares de 2% ao mês. É um rendimento insustentável, que tradicionalmente
termina em corridas cambiais e desvalorizações abruptas de capital;
c)
na medida em que a economia se recupere - mesmo que seja na escala de um
ressurgimento - as importações aumentarão e, portanto, a demanda por dólares
para pagá-las;
d)
o preço da soja caiu. Hoje gira em torno de US$ 330 por tonelada, contra cerca
de US$ 500 em 2022;
e)
de acordo com a Bolsa de Cereais de Rosario, devido à seca “já há 30% do trigo
em condições de regulares a más”; e a semeadura do milho começa a ser afetada;
f)
o déficit na balança de serviços aumentou. Em agosto, alcançou US$ 640 milhões,
um déficit 49% maior do que no mesmo mês de 2023. Entre janeiro e agosto de
2024, o turismo receptivo caiu 12,2% e o emissivo subiu 10,7%.
A
única forma de cobrir as necessidades de dólares em 2025 seria com uma forte
entrada de capitais. Mas isso não aparece. Devido ao crescimento dos depósitos
em dólares nos bancos, aumentaram as reservas brutas do BCRA. No entanto, não
são dólares de livre disponibilidade. Isso significa que quando o BCRA anuncia
que tem os dólares para pagar os serviços da dívida em janeiro de 2025, na
realidade, não os tem. Por isso, o governo teria a intenção de aumentar a
dívida com um grupo de bancos em cerca de US$ 3,5 bilhões. O objetivo é
enfrentar os pagamentos comprometidos, de US$ 4,9 bilhões, que devem ser feitos
em janeiro de 2025. Naturalmente, mais dívida não resolve nenhum problema de
fundo.
<><>
Para concluir
O
“ajuste” sobre os salários, as condições de trabalho e de vida das massas
trabalhadoras e populares, por enquanto, foi imposto. Isso aconteceu com o
apoio e consentimento – além de pequenas diferenças – das câmaras empresariais,
dos principais partidos políticos (incluindo governadores e legisladores do
peronismo) e a “tolerância”, em um conteúdo profundo, da maior parte dos
dirigentes sindicais.
A
ofensiva contra o trabalho não cessa. O governo manifestou, em várias
oportunidades – em conflitos como os da Aerolíneas e com docentes, entre outros
– sua vontade de suprimir o direito de greve em muitas atividades. O recente
veto à lei de orçamento universitário e os ataques aos trabalhadores da saúde
(hospitais Garrahan e Laura Bonaparte) são outras tantas expressões desse
ataque. Em março de 2024, escrevíamos: “No sistema capitalista não existem
saídas ‘progressistas’ para as crises. A resposta do sistema à crise passa pela
queda dos salários (incluindo os salários sociais, a educação e a saúde
públicas, e semelhantes); pela perda de direitos trabalhistas; o
enfraquecimento das organizações sindicais; a flexibilidade para contratar e
demitir; e semelhantes. Toda a ciência econômica de Milei, Espert (e Hayek e
Friedman) se concretiza neste programa brutal. Que é o programa do capital em
geral. O central é que o capital não sai das crises diminuindo a exploração do
trabalho, mas sim aumentando-a. (...) Hoje o governo e o capital buscam
recompor a acumulação pela mesma via de sempre. Mesmo governantes e políticos
que se consideram defensores dos setores populares agora implementam os ajustes
na queda dos salários e aposentadorias, e consentem que se avance na reforma
trabalhista”.
Também:
“Não há crises capitalistas sem saída. Chega um ponto em que a desvalorização
dos ativos; a perda de direitos trabalhistas; a queda dos salários; a
destruição das forças produtivas; as reestruturações dos capitais (fusões,
fechamento de empresas improdutivas) induzem os capitalistas a investir. À
custa de uma tragédia social (pobreza e indigência em níveis recordes), o
capital recompõe as condições para a acumulação (...) A única forma de que se
imponha um programa progressista, humanista, é com uma transformação que mude
radicalmente esta estrutura social, que gira em torno dos lucros do capital e
sua contrapartida, a exploração do trabalho”
Fonte:
Por Rolando Astarita, no Correio da Cidadania
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