Quanto o
Brasil esteve perto de um golpe militar em 2022?
Uma
operação da Polícia Federal (PF) feita no dia 8 de fevereiro deste ano contra
pessoas acusadas de uma "tentativa de abolição do Estado Democrático de
Direito" jogou luz sobre membros da cúpula das Forças Armadas e sobre o
risco de um golpe militar no Brasil na virada de 2022 para 2023.
Entre
os investigados na operação estavam o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira
e o almirante da reserva Almir Garnier Santos -— eles foram, respectivamente,
comandante do Exército e comandante-geral da Marinha no governo Bolsonaro.
Ambos foram alvos de mandados de busca e apreensão.
A
PF disse na época que as pessoas investigadas na operação, batizada de Tempus
Veritatis e autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Alexandre de Moraes, buscavam "a manutenção do então presidente da
República (Bolsonaro) no poder".
Nove
meses depois, a Polícia Federal indiciou nesta quinta-feira (21/11) Jair
Bolsonaro e outras 36 pessoas por suspeita de uma tentativa de golpe de Estado
para manter o ex-presidente no poder após as eleições de 2022.
Entre
os indiciados também estão o general Walter Braga Netto, que foi candidato a
vice-presidente na chapa derrotada com Bolsonaro em 2022, e o general Augusto
Heleno, que chefiou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante o
governo de Bolsonaro.
O
relatório final com a conclusão da investigação foi encaminhado ao Supremo
Tribunal Federal (STF) e acusa os indiciados pelos crimes de abolição violenta
do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
O
indiciamento é quando a polícia formaliza, em um inquérito, que há indícios
suficientes de que alguém foi autor de um crime para que a pessoa se torne réu
em um processo penal.
Agora,
caberá à Procuradoria-Geral da República (PGR), comandada por Paulo Gonet,
avaliar as provas apresentadas e decidir se formaliza uma denúncia contra os
acusados.
A
PF diz ter obtido provas que comprovam tais crimes ao longo da investigação que
já dura quase dois anos, por meio da quebra de sigilos telemático, telefônico,
bancário, fiscal, colaboração premiada, buscas e apreensões, entre outras
medidas devidamente autorizadas pelo poder Judiciário.
• Mesmos
investigados
Em
fevereiro, aliados e ex-ministros de Bolsonaro foram alvo da operação da
Polícia Federal, incluindo o general da reserva Augusto Heleno e Walter Braga
Netto - que também foram indiciados nesta quinta.
Outro
general, que em 2022 era o Comandante de Operações Terrestres do Exército,
Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, também foi citado na operação de
fevereiro como tendo concordado com uma suposta sublevação. Quatro militares,
na época ainda da ativa, de diversas patentes, também estavam entre os
implicados nas investigações.
Em
entrevista à CNN após a operação, Jair Bolsonaro disse que não articulou um
golpe de Estado. Antes, afirmou à Folha de S.Paulo que estava sendo alvo de uma
perseguição implacável (veja aqui o que disseram outros acusados).
Aliados
do ex-presidente também criticaram a operação na época e a associaram ao
retorno de Bolsonaro a eventos públicos (leia mais abaixo).
Um
dos documentos que embasaram a operação do início do ano, segundo a PF, foi uma
minuta que decretava a prisão de autoridades e determinava a convocação de
novas eleições. O texto teria sido apresentado a Bolsonaro em novembro de 2022
por seu então assessor Filipe Martins, que foi preso em fevereiro.
Segundo
o tenente-coronel Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro e se
tornou depois colaborador das investigações, o texto que propunha a ruptura da
ordem democrática chegou a ser debatido pela alta cúpula militar.
Se
todos as informações forem comprovadas, isso significa que o Brasil esteve
próximo de ser palco de um golpe de Estado quase 60 anos depois da última
ruptura, em 1964?
Para
dois historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, sim, houve risco, ainda que o
suposto movimento investigado aparenta não ter tido força para convencer um
órgão central na hierarquia militar, o Alto Comando do Exército.
A
instância é composta por 16 generais de quatro estrelas da força terrestre,
tradicionalmente a mais influente das Forças Armadas.
• 'Muito perto
de um golpe'
Para
João Roberto Martins, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de
São Carlos (Ufscar) e pesquisador de temas militares, os fatos divulgados até
agora, se comprovados, indicam que "estivemos muito perto de um
golpe".
Para
ele, já havia indícios de participação de autoridades em discussões sobre um
golpe de Estado mesmo antes desta última operação.
"O
que talvez não se acreditasse é que iria ser feita uma investigação tão
profunda e detalhada como esta", afirma.
Martins
diz que a suposta presença de comandantes das Forças Armadas em uma reunião que
teria tratado de um possível golpe sugere que o tema chegou à alta cúpula
militar. "É impossível chegar mais alto do que isso."
Ele
diz acreditar que só não houve um golpe porque o Alto Comando do Exército teria
rejeitado a iniciativa.
Martins
avalia que um golpe de Estado teria de ser necessariamente aprovado por essa
instância formada por 16 generais do topo de carreira -— afinal, a entidade
controla a mais poderosa das três forças brasileiras.
Ele
diz acreditar que o comandante do Exército -— que é um dos membros do Alto
Comando -— levou o tema para o órgão, mas que não houve apoio majoritário à
causa.
Martins
embasa essa opinião no fato de que, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva
na eleição, apoiadores de Bolsonaro que defendiam uma intervenção militar
passaram a divulgar nomes de generais que seriam "traidores" do
movimento.
Ainda
assim, o pesquisador rejeita a noção de que o "Exército agiu em defesa da
democracia".
"Não,
o Exército impediu uma aventura que era defendida por um grupo muito
comprometido com Bolsonaro e que recebeu um apoio assustador no seio militar,
mas isso não foi suficiente para convencer a alta cúpula do Exército."
"Um
grupo de generais percebeu que, numa aventura dessas, você sabe como entra, mas
não sabe como sai", prossegue, afirmando que as condições para um golpe em
2022 eram muito mais adversas do que em 1964, última ocasião em que as Forças
Armadas tomaram o poder no Brasil.
Em
1964, diz Martins, o golpe era apoiado por uma grande potência, os Estados
Unidos. Já em 2022, a vitória de Lula foi saudada por muitos líderes
estrangeiros, e os EUA sinalizaram que não aceitariam uma ruptura democrática
no Brasil, diz o professor.
• 'Quadrilha
contra Estado de Direito'
"Acho
que o risco (de um golpe militar) foi muito grande", diz Francisco
Teixeira da Silva, professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para
Silva, a operação desta quinta-feira expôs "um caso claro de formação de
quadrilha contra o Estado de Direito Democrático no Brasil".
Segundo
o professor, de acordo com o relato da PF, se tramou em 2022 um dos
"famosos auto-golpes latino-americanos", nos quais governantes agem
para se manter no poder ao arrepio da lei.
Silva
também diz acreditar que a iniciativa fracassou por ter sido rejeitada pela
maioria dos membros do Alto Comando do Exército.
Foi
então, que, segundo o professor, defensores de uma intervenção militar teriam
mudado de estratégia: em vez de promover um golpe "pelo alto",
passaram a apostar numa "via por baixo", na qual uma mobilização
popular impediria Lula de governar e forçaria os militares a entrar em ação.
Ele
diz acreditar que os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023
foram uma tentativa de pôr esse plano B em prática.
Silva
critica os que, ao argumentar que "as instituições estavam
funcionando", minimizavam os riscos de uma ruptura no Brasil.
"Numa
democracia que funciona, quem perde eleições vai pra casa, e não trama um golpe
de Estado", diz.
"Nossa
democracia não está assegurada enquanto não houver exemplo muito claro de
punição de qualquer tentativa golpista", completa.
• 'Último
suspiro de grupos delirantes'
Não
é unânime, no entanto, a opinião de que a democracia brasileira correu sérios
riscos na virada de 2022 para 2023.
Em
dois artigos publicados em janeiro no jornal O Estado de São Paulo -—antes,
portanto, da operação desta quinta -—, Carlos Pereira, professor de Ciência
Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que não houve chance real de
ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.
Ele
não atribui essa resiliência à suposta não adesão do Alto Comando do Exército a
uma eventual proposta golpista ou a ação de Alexandre Moraes no Supremo.
Segundo
ele, a estrutura do sistema político brasileiro, composta por órgãos
independentes e que impõem limites uns aos outros, é que desencoraja
"saídas extremas e radicais", conforme escreveu em 8 de janeiro.
Para
Pereira, "Bolsonaro ficou sem alternativas e terminou sendo domesticado,
forçado a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão em busca de um escudo
protetor, ainda que minoritário, no Legislativo".
Em
outro artigo, de 17 de janeiro, Pereira associou os ataques em Brasília ao
"ultimo suspiro de grupos delirantes e saudosistas da ditadura" e
rejeitou a ideia de que um eventual golpe não aconteceu pela atuação de
"heróis" individualmente.
"Ou
seja, significaram o ocaso ou o esgotamento das esperanças de um projeto
autoritário que não tinha as mínimas condições de vingar em uma democracia
sofisticada e consolidada como a brasileira."
• Próximos
passos
Se
militares forem condenados por envolvimento em uma tentativa de golpe, o que
ocorrerá com eles?
Militares
são julgados pela Justiça Militar quando as acusações tratam de crimes
militares.
Mas
isso não impede que também sejam julgados pela Justiça comum quando são
acusados de crimes não militares. É o caso das investigações em curso, que
apuram, entre outros pontos, a violação do artigo 359 do Código Penal
("tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo
legitimamente constituído").
O
crime tem pena de reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à
violência.
Para
Carlos Fico, professor titular de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), se a Justiça comum condenar os militares a mais de dois anos de
reclusão, a Justiça Militar terá o dever de cassar suas patentes, conforme
previsto na Constituição.
"O
STM (Superior Tribunal Militar) teria de declarar a indignidade ou a
incompatibilidade desses oficiais com o oficialato, sendo obrigatória a
cassação do posto e da patente", o professor afirmou em sua conta no X
(antigo Twitter).
Segundo
Fico, no entanto, esse processo demoraria, pois só seria consumado com uma
sentença definitiva da Justiça Militar.
"Seria
mais ou menos inédito (militares golpistas sendo punidos), mas é previsível em
função da quantidade de crimes cometidos, dos inúmeros vestígios que deixaram e
do empoderamento do STF desde 1988", diz o professor.
"Duro
é termos de 'celebrar' que o Alto Comando do Exército não tenha optado pelo
golpe, o que significa que havia a alternativa", afirma Fico.
• 'Perseguição'
e pedido de ação dos militares
A
operação desta quinta-feira foi criticada por aliados de Bolsonaro. Um dos
protestos mais veementes veio do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS),
general da reserva que foi vice-presidente no governo Bolsonaro.
Mourão
disse que estava havendo uma "supressão da oposição política no país"
e que "nenhuma suposta ameaça ao Estado Democrático de Direito justifica
tal devassa persecutória".
O
senador disse ainda que havia uma "condução arbitrária" de processos
que investigam generais da ativa e cobrou que as Forças Armadas não se omitam.
"Não
podemos nos omitir, nem as Forças Armadas, nem a Justiça Militar, sobre esse
fenômeno de desmando desenfreado que persegue adversários e que pode acarretar
instabilidade no país", disse Mourão.
Os
deputados federais Helio Lopes (PSL-RJ) e Carla Zambelli (PSL-SP) citaram o
fato de que a operação ocorreu um dia após Bolsonaro participar de evento com
centenas de apoiadores em São Sebastião (SP).
"Ações
contra a direita sempre depois de um grande evento… coincidência ou
perseguição?", escreveu Lopes no X.
"24h
após uma linda demonstração de apoio popular, Bolsonaro e aliados são alvo de
mandados", disse Zambelli, na mesma plataforma.
Para
o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o "regime"
instalado no país "acua, persegue, silencia e aplaca a oposição no Brasil
querendo exterminar politicamente os seus opositores com a mão de ferro do
Judiciário e a Polícia do Estado"
• SADI: golpe
só não ocorreu por fator externo, avalia STF
Para
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o inquérito sobre a tentativa de
golpe concluído pela Polícia Federal (PF) nesta quinta-feira (21) traz
elementos suficientes para punir ao menos parte dos 37 indiciados. De acordo
com eles, há elementos concretos para evidenciar que o golpe só não ocorreu por
fatores externos. O artigo 14 do Código Penal descreve serem passíveis de
punição crimes não consumados por motivos alheios à vontade dos investigados.
Aliados
do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) vêm argumentando que não pode haver
punição porque o golpe não ocorreu. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), por
exemplo, afirmou em rede social que, "por mais que seja repugnante pensar
em matar alguém, isso não é crime". Flávio, que é advogado, seguiu dizendo
que "para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida
por alguma situação alheia à vontade dos agentes, o que não parece ter
ocorrido".
O
artigo 14 do Código Penal define quais são os tipos de crime e as respectivas
penas. O mais grave é o consumado, "quando nele se reúnem todos os
elementos de sua definição legal". Já a tentativa do crime se configura
quando "iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à
vontade do agente", detalha. Nesse caso, segue o Código Penal, pune-se com
pena correspondente ao crime consumado, mas reduzida de uma a dois terços.
Ministros
ouvidos pelo blog destacam que o relatório tornado público pelo ministro do STF
Alexandre de Moraes na terça-feira (19) traz elementos suficientes para
caracterizar que o golpe efetivamente não ocorreu por fatores alheios à vontade
dos investigados. Segundo eles, o documento deixa claro que os golpistas
iniciaram a execução, compraram armas, fizeram documentos falsos e tocaia. Além
disso, tinham um plano completo, que envolvia listagem de armamentos e próximos
passos, tal como a constituição de um gabinete de crise chefiado pelo general
Augusto Heleno.
No
dia 15 de dezembro de 2022, seis pessoas se posicionaram para executar a ação.
Um deles se colocou próximo à residência de Alexandre de Moraes. A ação só é
abortada às 20h59, cerca de seis minutos após os investigados compartilharem
uma mensagem informando a suspensão da sessão do STF.
A
pena por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, que acontece
quando alguém tenta "com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o
Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos
poderes constitucionais" tem pena que varia de 4 a 8 anos de prisão. Já a
punição para golpe de Estado, que fica configurado quando uma pessoa tenta
"depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente
constituído", é de 4 a 12 anos de reclusão. Por fim, organização criminosa
tem pena de cinco a 10 anos.
¨
Pazuello sugeriu
ruptura a Bolsonaro em 2022, mas não foi indiciado
O
deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), ex-ministro da Saúde e general da
reserva, teria sugerido ao então presidente Jair Bolsonaro (PL) uma ruptura
democrática após o resultado das eleições de 2022. A informação consta em um
áudio enviado pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro, ao comandante do Exército à época, Freire Gomes. O áudio foi
incluído em um dos relatórios da Polícia Federal (PF) que basearam a operação
Contragolpe, realizada em 19 de novembro.
No
áudio, Mauro Cid relatou que Pazuello esteve no Palácio da Alvorada logo após o
resultado das eleições para discutir com Bolsonaro formas de usar o artigo 142
da Constituição Federal, frequentemente citado de forma equivocada como
justificativa para intervenção militar. Segundo Cid, Bolsonaro teria rejeitado
a proposta do general: "Desconversou, não quis nem saber. Não deu bola,
né… para o que o general Pazuello estava levando pra ele", afirmou o
tenente-coronel na mensagem.
Embora
o nome de Pazuello não conste entre os 37 indiciados pela Polícia Federal por
tentativa de golpe de Estado após as eleições, a operação Contragolpe levou à
prisão de militares das Forças Armadas e um policial federal, acusados de
planejar um golpe e atentados contra autoridades, incluindo o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do
STF Alexandre de Moraes. Entre os detidos estava o general Mario Fernandes, que
trabalhou como assessor de Pazuello na Câmara dos Deputados entre março de 2023
e março de 2024.
Em
nota emitida após as prisões, Pazuello negou envolvimento nos fatos
investigados pela PF e afirmou ter tomado conhecimento das detenções pela
imprensa. “O deputado reafirma sua crença nas instituições do país e na
idoneidade do general Mário Fernandes, na certeza de que logo tudo será
esclarecido”, declarou.
Antes
de se eleger deputado federal, Eduardo Pazuello comandou o Ministério da Saúde
entre 2020 e 2021, durante os momentos mais críticos da pandemia de Covid-19 no
Brasil. Sua gestão foi marcada por atrasos na aquisição de vacinas e polêmicas
em relação ao enfrentamento da crise sanitária.
Fonte:
BBC News Brasil/g1 /Brasi 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário