A máquina
de terroristas do bolsonarismo
Com
a notícia de que o “homem-bomba de Brasília" não foi o único a planejar a
morte de Xandão, ficou praticamente impossível defender a ideia de que ele era
um lobo solitário do golpismo.
Dia
após dia, está mais clara a existência de um movimento antidemocrático com
apoio e raízes institucionais profundas, que agora ganhou um novo fôlego de
esperança com a eleição de Donald Trump.
Caso
você não saiba do que estamos falando, em menos de uma semana o Brasil foi
chacoalhado por dois acontecimentos: um novo ataque terrorista ao STF que
culminou no suicídio do bolsonarista conhecido como "Tio França”, e a
prisão de quatro militares de alta patente e de alta confiança durante o
governo Bolsonaro, suspeitos de tramar uma operação em 2022 na qual matariam o
presidente recentemente eleito Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF
Alexandre de Moraes.
As
razões pelas quais os militares e parceiros políticos do ex-presidente
inelegível conspirariam para tomar a presidência são óbvias: poder. Mas o que
leva pessoas como os presos do 8 de janeiro e Tio França a tentar derrubar as
instituições democráticas do próprio país, utilizando-se de medidas tão
extremas?
É
isso que explica nossa repórter Laís Martins em sua mais recente matéria
publicada aqui no Intercept Brasil, onde ela e especialistas revelam as
engrenagens que movem a fábrica de terroristas da extrema direita brasileira.
A
trajetória dessas pessoas comuns até a radicalização começa nas redes sociais,
com as teorias conspiratórias mirabolantes importadas dos EUA e ganha mais
força com a normalização e legitimação de discursos extremistas pela grande
mídia tradicional e pelas big techs.
LEIA
A MATÉRIA COMPLETA:
Do
QAnon ao anticomunismo: como nasce um terrorista no Brasil
Momentos
antes de lançar bombas contra o Supremo Tribunal Federal e, em seguida, se
explodir, Francisco Wanderley Luiz, o Tio França, fez uma publicação no
Facebook com prints de mensagens que havia enviado a si mesmo pelo WhatsApp.
Ali, vários elementos mostram as influências do terrorista. Também servem de
alerta para o processo de radicalização da extrema direita que está em curso –
e sua normalização.
Para
entender as referências de Tio França, mostramos as mensagens para
especialistas, que explicam que o ataque foi alimentado por teorias
conspiratórias e extremistas. Afinal, o terrorista, um típico “patriota de
quartel”, bebia de fontes ligadas à extrema direita brasileira e a vários
setores do bolsonarismo.
O
historiador Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da
Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema
Direita, observa que, em meio a emojis excessivos e mensagens truncadas, há uma
mentalidade política no discurso de Tio França que é “plenamente associada à
extrema direita brasileira”, em duas dimensões principais.
“Primeiro,
que são os valores históricos consolidados e a atualização deles a partir de
questões do campo da extrema direita global mais recente. A segunda dimensão é
que, além dessa perspectiva entre valores antigos e padrões novos, existe uma
relação entre o local e o global, ou seja, eles vão juntando esse repertório
que vem muito da extrema direita dos Estados Unidos, das redes de desinformação
e conspiracionismo que são globais, a questões locais”, diz Caldeira Neto,
citando como exemplos a menção à fraude nas urnas e ataques ao poder
Judiciário.
Para
Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade
Federal de Santa Catarina, as publicações deixadas por Tio França mostram um
“combo holístico” de vários segmentos do bolsonarismo. “Ele me pareceu num
nível muito avançado de radicalização, em que você chega em um ponto onde não
vê outra solução a não ser desencadear algo mais extremo, como ele fala várias
vezes ali”, pontua.
Uma
das principais marcas, na visão dela, é uma dimensão milenarista que fala em
segunda vinda de Cristo e apocalipse. Na avaliação de Cesarino, essa gramática
cristã das postagens, que não se encaixam plenamente no discurso evangélico
típico, é muito presente no extremo da extrema direita.
• ‘Manda o FBI
aqui pra ilha de Marajó’
Em
uma das mensagens que publicou no Facebook, Tio França pede que Donald Trump
“acelere a operação Storm” e mande o FBI para a ilha de Marajó. O termo ‘storm’
é uma referência à QAnon, uma teoria da conspiração que surgiu em fóruns dos
Estados Unidos por volta de 2017 e propaga que Donald Trump estaria trabalhando
em segredo para desmembrar uma rede de pedófilos satânicos presentes em
Hollywood, no partido Democrata e no chamado “Estado Profundo” do governo
norte-americano.
Na
mensagem, Tio França cita Marajó, arquipélago localizado no Pará. Marajó foi
alvo de uma falsa narrativa em fevereiro deste ano divulgada por líderes
evangélicos, pela ex-ministra e atual senadora Damares Alves e por outros
atores da extrema direita baseada em uma teoria da conspiração de que a ilha
seria o epicentro de um esquema de tráfico sexual de crianças.
Cesarino
explica que a gritaria de Damares sobre Marajó tem uma estrutura semelhante à
narrativa do do QAnon que surgiu nos EUA, que tinha como um dos lemas “salvem
as crianças”. “Marajó é uma espécie de QAnon brasileiro”, diz a antropóloga.
A
ligação a mundos conspiratórios e fantasiosos como estes é mais uma
característica de um grau extremo de radicalização, de acordo com a
pesquisadora. Mas embora tenha se iniciado em comunidades conspiracionistas,
essa narrativa furou a bolha e virou pauta do noticiário político nacional – o
que concedeu a ela certa legitimidade, observa Caldeira Neto.
“É
uma rede que liga, de fato, a dimensão institucional às comunidades
conspiracionistas. E existe uma mobilização dessas comunidades
conspiracionistas, à medida que a dimensão institucional traz essas pautas,
traz esse imaginário para o debate público efetivo e, em certa medida acaba
legitimando essa premissa anti-institucional”, ressalta. Esse caminho
anti-sistema e anti-institucional, por sua vez, leva também aos atos
extremados, avalia o historiador.
• Combo de
teorias conspiracionistas
Além
do discurso ligado às comunidades conspiracionistas que disseminam conteúdo
sobre QAnon, as mensagens de Tio França fazem referência ao cenário político
brasileiro através de pautas-chave do bolsonarismo, como ataques ao Judiciário,
desconfiança sobre as urnas e anticomunismo.
Em
uma das mensagens, Tio França diz que o “Judiciário por si só não se sustenta”
e que a “base da pirâmide judicial está em todas as cidades do Brasil”. Essa
característica do “de baixo para cima” está muito presente nos ecossistemas
derivados do bolsonarismo, explica Cesarino. E não só no Brasil: nos Estados
Unidos, diz ela, a preparação para uma eventual derrota de Trump e para
contestar a eleição passava por essa organização de baixo para cima.
“No
Brasil, é exatamente essa mesma coisa. Eles [apoiadores da extrema direita]
estão entrando nos conselhos tutelares e de baixo para cima em todo tipo de
representação capilarizada que eles podem”, afirma Cesarino. “É algo para
olharmos com muita atenção, porque essa é uma direção de organização deles que
é muito clara, muito concisa e que passa pela questão das eleições municipais,
mas não apenas”.
Para
Caldeira Neto, as referências a elementos e símbolos da extrema direita global
se somam a alusões específicas ao contexto brasileiro. O historiador aponta,
por exemplo, para o argumento anticomunista que aparece nas mensagens de Tio
França. “É claro que o anticomunismo é importante nas narrativas de toda a
extrema direita, mas na extrema direita brasileira ele tem um aspecto muito
central”, destaca.
No
Brasil, esse discurso ganha ainda mais tração por ser colocado desde uma
perspectiva do catolicismo, do cristianismo conservador, do integralismo, do
fascismo e, sobretudo, do campo militar –
para quem o anticomunismo desempenha um papel estrutural.
Um
terceiro símbolo que aparece nas mensagens é a referência à degeneração, que é
um componente comum ao imaginário da extrema direita desde o fascismo e o
nazismo. Em uma mensagem, França diz que o Brasil atravessa “um período
bastante turbulento e degenerativo”. O conceito de degeneração está ligado a
uma ideia de ampla e profunda decadência da sociedade, seus valores, normas e
tradições, explica o historiador.
“Essa perspectiva biologizante aparece num
sentido de ‘nós somos pessoas comuns, os verdadeiros brasileiros, e nós vamos
nos unir contra a ameaça’”, frisa Caldeira Neto.
“Os
fascismos, inclusive o integralismo brasileiro, propunham formas políticas para
lidar com a degeneração, e, por isso, vislumbravam a ideia de regeneração ou de
construção de novas sociedades”, ressalta o historiador.
• Do meme à
normalização do extremo
Nas
horas seguintes ao atentado, as redes sociais foram tomadas por memes em torno
da figura de Tio França, tanto sobre suas intenções com o ataque até a respeito
do seu suicídio. Nas mensagens deixadas por ele, pessoas deixaram comentários
rindo e fazendo piada.
Para
Cesarino, essa reação de olhar para o atentado pela via do humor é sintomática
e alarmante. “As redes sociais sempre evocam algum tipo de afeto. Pode ser de
revolta, indignação, mas também pode ser essa linguagem mais memética, do humor
e das piadas”, diz.
Ela
enxerga dois fatores que podem explicar o porquê da reação generalizada ter
sido de humor. O primeiro é que Tio França se encaixa em um fluxo de piadas que
já vem desde 2022 ligado aos bolsonaristas, com menções a gado e ao “patriota
do quartel”, ou seja, há um histórico de humor em torno desse tipo de
personagem.
Outro
fator é que, diferentemente do 8 de janeiro, Tio França não destruiu nada nem
feriu ninguém a não ser a si mesmo – para Cesarino, isso também abriu espaço
para o humor vir à tona.
Por
outro lado, ela pontua que essa reação das redes de fazer piada acaba, muitas
vezes, normalizando o extremismo. “Normaliza porque o ato não está sendo
reconhecido pelo que ele é, porque é um ato extremo, é um ato de doença social,
de uma trajetória extrema”, salienta Cesarino.
A
pesquisadora afirma que a mídia tradicional também desempenha um claro papel em
normalizar as trajetórias extremas que vão se “hibridizando” com o Centrão e
com a velha política. Ela cita como exemplos a campanha de Pablo Marçal em São
Paulo e a declaração do governador Tarcísio de Freitas no dia do segundo turno
das eleições municipais de que o PCC teria apoiado o candidato Guilherme
Boulos, do PSOL.
“Essa
parte da normalização não está separada e não vai contra a trajetória de
radicalização, mas sim permite a trajetória de radicalização. Foi assim no
fascismo, na década de 30, na Alemanha e na Itália. É exatamente a mesma coisa
que está acontecendo hoje”, alerta Cesarino.
• De R$ 20 a
49 mil; veja os salários dos suspeitos de planejar matar Lula, Alckmin e Moraes
A
Polícia Federal (PF) prendeu cinco pessoas suspeitas de planejar um golpe de
Estado no final de 2022 e a execução de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Geraldo
Alckmin (PSB) e do ministro do STF Alexandre de Moraes. De cargos no Exército até na Polícia Federal,
os salários variam de R$ 20 mil a quase R$ 49 mil.
Entre
os suspeitos, os maiores ganhos ficam para Mário Fernandes. O
ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência durante o governo
Jair Bolsonaro recebia R$ 33.223,40 como general de brigada da reserva. Ele
também era assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), onde recebia
R$ 15,6 mil até ser afastado da função por ordem do STF, totalizando cerca de
R$ 48,9 mil.
Na
sequência, cada um do trio de tenentes-coronéis recebe na casa dos R$ 27 mil.
Rodrigo Bezerra de Azevedo, Rafael Martins de Oliveira e Hélio Ferreira Lima
embolsaram, respectivamente, R$ 27,440,00, R$ 27.417,60 e R$ 27.450,00 no mês
de agosto.
O
Terra não localizou o salário de Wladimir Matos Soares no Portal da
Transparência. No entanto, agentes da classe especial da Polícia Federal (PF)
recebem cerca de R$ 20.9 mil.
• Qual era o
plano, segundo a PF
De
acordo com as investigações da Polícia Federal, o documento central intitulado
"Punhal Verde Amarelo", elaborado pelo general Mario Fernandes,
apresenta detalhes de um "planejamento operacional" que visava a
execução de Alexandre de Moraes, Lula e Geraldo Alckmin (PSB).
Conforme
apurado pela PF, Fernandes imprimiu o documento no Palácio do Planalto em 9 de
novembro de 2022. Na mesma data, os celulares de outros investigados, como
Rafael Martins de Oliveira e Mauro Cid, estavam conectados à rede de internet
do Palácio. Posteriormente, o material foi levado ao Palácio da Alvorada,
residência oficial do então presidente Jair Bolsonaro.
O
documento elaborado pelo general continha tópicos relacionados à munição que
seria utilizada na ação clandestina. A Polícia Federal destacou que as armas
mencionadas, incluindo pistolas, fuzis e armamentos mais pesados, são típicas
de uso militar e policial devido à alta eficácia de seus calibres.
Entre
os armamentos coletivos citados, chamou a atenção dos investigadores a presença
de equipamentos de guerra, como:
Metralhadora
M249: Uma metralhadora leve, usada em combate para suporte de fogo, que combina
alta taxa de disparo com fácil manuseio, sendo amplamente valorizada em
operações táticas.
Lança-granadas
de 40 mm: Uma arma versátil, capaz de disparar granadas de fragmentação ou
munições especiais, permitindo fogo indireto e diferentes usos táticos.
Lança-rojão
AT4: Um lançador antitanque, projetado para destruir veículos blindados e
estruturas fortificadas. É um foguete guiado com ogiva explosiva, comumente
usado por forças militares e de segurança.
A
Polícia Federal ainda detalhou que, no planejamento analisado, o quarto tópico
detalha os riscos e impactos associados à execução de um plano para assassinar
o ministro Alexandre de Moraes. Entre as possibilidades consideradas estavam o
uso de artefatos explosivos ou o envenenamento em um evento oficial público.
O
documento também menciona os riscos da ação, alertando que os danos colaterais
seriam grandes, a probabilidade de captura dos envolvidos seria alta e que o
risco de baixas (mortes, no contexto militar) entre os executores também seria
elevado. Além disso, também é investigada a possível utilização de veículos do
Exército para monitorar o ministro, inclusive em seu apartamento funcional.
"Para
execução do presidente Lula, o documento descreve, considerando sua
vulnerabilidade de saúde e ida frequente a hospitais, a possibilidade de
utilização de envenenamento ou uso de químicos para causar um colapso
orgânico", acrescentou a PF.
O
plano foi discutido na residência do general Braga Netto, ex-ministro e
candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições de 2022, em 12 de novembro
daquele ano, menos de 15 dias após a divulgação oficial do resultado do segundo
turno, segundo apontam os policiais federais.
Fonte:
The Intercept/ Terra
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