”A elite
da medicina ainda resiste a abrir portas para alunos negros no Brasil”, diz
ex-ministro
Dizer
que nunca foi atendido por um médico negro no Brasil não é exagero.
Em
cada cem médicos brasileiros, apenas 3 se declaram pretos, 24 pardos e 70
brancos.
Estes
são os dados de 2023, da Demografia Médica do Brasil – um levantamento
conduzido pela USP, em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB).
O
embate de momento entre Conselho Federal de Medicina (CFM) e governo federal
sobre cotas em edital de residência médica reacendeu a discussão sobre uma
profissão que, em larga maioria, é desempenhada por profissionais brancos.
A
residência dá oportunidade dos profissionais se especializarem em uma área da
Medicina.
A
raridade de encontrar médicos negros começa na faculdade.
De
acordo com o mesmo estudo, com base em dados de 2019, apesar de numericamente a
população negra ocupar mais cadeiras nas universidades do que dez anos atrás,
se o recorte for pelo percentual, os negros seguem em desvantagem.
Em
2010, eram 20,5%; em 2019, chegaram apenas a 24,7%.
Levando
em consideração que a classificação “negro” é a soma de “pretos” e “pardos”, é
importante destacar que caiu pela metade o percentual de quem se autodeclara
preto, que são as pessoas com a pele mais retinta. O número geral de negros só
não caiu porque foram registrados mais pardos.
O
CFM, que é contra as cotas, evitou manifestações públicas neste fim de semana.
À
CNN, integrantes do Conselho disseram que não desistiram da questão, mesmo
depois de evitar seguir com ação na justiça federal.
A
estratégia é trabalhar na aprovação de um projeto de lei que impeça reserva
para negros, indígenas e quilombolas em editais futuros. Para o Conselho, a
adoção de cotas configuraria um tipo de “discriminação reversa”.
À
frente do edital que estipula cotas, o ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro,
presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), conta que
em quase vinte anos dando aula de Medicina teve apenas 4 alunos negros.
Somente
com o tempo, surgiram mais estudantes negros, mas ainda em número reduzido.
Ele
destaca que a dificuldade de acesso às melhores escolas, cursos adicionais e
dinheiro para se manter durante os estudos são algumas barreiras que distanciam
os negros do jaleco de médico.
LEIA
A ENTREVISTA:
• Por que é
difícil encontrar médicos negros?
Chioro:
Quando me perguntam isso ou por que a categoria médica é tão conservadora,
costumo dizer que é uma questão de classe (social).
Sou
professor de medicina há 35 anos. Por quase 20 anos tive apenas 4 alunos
negros.
A
esmagadora maioria era de alunos brancos, normalmente netos, filhos ou
sobrinhos de médicos e raramente eram filhos de operários ou trabalhadores do
Porto, como o meu caso.
Uma
herança marcada por diferentes oportunidades, de acesso às melhores escolas,
cursinhos de inglês, curso preparatório para o vestibular, capacidade de pagar
mensalidades e se sustentar ao longo de um curso de 6 anos, em período
integral.
Com
a criação das políticas de inclusão e promoção de equidade, esse quadro mudou
um pouco. Na Escola Paulista de Medicina (Unifesp), já temos um número bem
maior de jovens negros, oriundos de escolas públicas e sistema de cotas.
Na
outra universidade que leciono, privada, a alteração foi muito menor, mas agora
tenho em média 5 alunos negros por turma, quase sempre graças ao FIES.
Mas
esse quadro ainda é muito insuficiente. No Brasil, onde mais da metade da
população se autodeclara negra ou parda, é inaceitável que a elite da medicina
ainda resista a abrir suas portas a esses grupos.
Negros
e pardos representam 56% da população, mas seguem sub-representados em
profissões de alta remuneração e prestígio, como a medicina.
Daí
a importância de garantir acesso à universidade, mas também à qualificação
profissional e inserção no mercado de trabalho.
Ao
tentar restringir o acesso à especialização médica, por exemplo, as
instituições médicas perpetuam uma segregação de oportunidades que se estende
por gerações.
• Como
garantir a qualidade dos médicos independentemente da raça/etnia?
Chioro:
Muitos jovens vêm de famílias muito pobres e são os primeiros a ter o ensino
médio e alcançar a universidade. São dedicados, excelentes alunos. Participam
de atividades de iniciação científica, da atlética e do centro acadêmico.
Dependem
das políticas de permanência acadêmica que a universidade oferece para
sobreviverem em um curso de dedicação integral e que dura 6 anos.
A
partir do quarto ou quinto ano, enquanto os estudantes de família de classe
média e alta começam a fazer cursos preparatórios para a residência,
caríssimos, eles estão fazendo “bicos” para se sustentar e ajudar as famílias,
enquanto se dedicam aos estudos.
Ao
chegarem à reta final do curso, não tiveram as mesmas condições de igualdade
para se prepararem para prestar as provas de residência.
Muitas
instituições cobram taxas de inscrições caríssimas. Os jovens não conseguem
também bancar viagens de avião, hospedagem e alimentação para prestar várias
provas, em diversos cantos do país.
Resta
para eles entrar direto no mercado de trabalho, como médicos generalistas,
definindo desde já um espaço de menor prestígio e que não ameaça os privilégios
estabelecidos, ainda que melhor remunerado que a média da maioria das
profissões.
A
mensagem subliminar é “que sejam médicos do postinho ou da UPA”, desde que isso
não afete a concorridíssima disputa pelo mercado de especialistas, que se
define por quem acessa a residência médica, padrão-ouro para formação dos
especialistas.
O
mercado para os especialistas é o que está em jogo. Se a elite médica “suportou
goela abaixo” as cotas na graduação, na especialização isso não é tolerado.
É
ali que será decidido quem terá mais prestígio e quem ficará com a maior fatia
do bolo do mercado privado de saúde, ou mesmo os melhores empregos públicos.
• O exame da
Ebserh pratica racismo reverso?
Chioro:
O Exame Nacional de Residências (Enare), promovido pela Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares (Ebserh), estatal vinculada ao MEC, é um exame nacional
destinado a democratizar o acesso à residência.
Esse
ano, 89 mil candidatos disputam 4.854 vagas de residência médica e 3.789 vagas
de residência multiprofissional, em 163 instituições de todo o país.
A
taxa de inscrição é acessível – e quem não tem condições de pagá-la é isento.
Uma única prova, realizada em todo o país.
E
um sistema de cotas que segue rigorosamente o que está previsto na legislação.
Ao
adotar políticas afirmativas, buscamos atuar para reparar desigualdades
históricas e oferecer oportunidades a grupos sistematicamente excluídos de
espaços de prestígio e acesso a recursos.
A
retórica da meritocracia e da “qualidade” é uma narrativa seletiva que sustenta
o status quo, exclui minorias e preserva privilégios. A suposta neutralidade
serve de escudo para práticas excludentes.
A
verdadeira ameaça à qualidade da medicina não está na inclusão, mas no
monopólio das oportunidades por uma minoria privilegiada, resistente à
diversidade.
Para
a elite médica, inclusão e equidade não são direitos básicos. Só com políticas
afirmativas e uma sociedade vigilante poderemos trilhar o caminho da justiça
racial e da equidade.
O
Enare surge como uma tentativa de reverter um ciclo secular de opressão, ao
qual a medicina – um dos setores mais elitizados no país – insiste em
permanecer alheia, portando-se como a “vanguarda do atraso”.
• Hipócrates e
o Conselho Federal de Medicina, Por Roberto da Justa Pires Neto
Hipócrates
foi um médico grego, o mais célebre da Antiguidade. É considerado o pai da
Medicina ocidental.
Revolucionou
a medicina antiga, fundando a Escola de Cós, rejeitando a superstição e a
magia, propondo uma prática científica baseada na observação clínica. A doença
deixou de ser um castigo dos deuses.
Seus
escritos estão reunidos no Corpus Hippocraticum, compêndio de obras e
recomendações médicas.
Sua
ética está resumida no famoso Juramento de Hipócrates, pronunciado até hoje
pelos formandos de Medicina.
É
preciso resgatar o pensamento hipocrático no atual momento crítico por que
passa a medicina brasileira.
A
categoria médica elegerá, nos dias 6 e 7 de agosto, seus representantes
estaduais para o Conselho Federal de Medicina (CFM), um titular e um suplente.
A participação dos médicos na eleição é obrigatória e determinará os rumos da
autarquia federal pelos próximos 5 anos.
O
panorama não é animador. A expectativa é de manutenção do atual perfil
corporativista e obscurantista no órgão que regula o exercício da medicina em
nosso país.
CFM
e Conselhos Regionais constituem uma autarquia federal regida por lei. Têm a
função de regular e fiscalizar o exercício ético da medicina em todo o país.
Não
se trata de um sindicato, associação de classe, sociedade ou entidade de defesa
da categoria médica.
Trata-se
de órgão federal de defesa da sociedade, onde o corporativismo e a militância
político-partidária não podem jamais pautar suas ações.
Ocorre
que, infelizmente, o CFM há muito se afastou de suas prerrogativas legais e
princípios hipocráticos.
Durante
a pandemia, e até hoje, vem adotando postura anti-ciência, isentando de punição
médicos que prescrevem medicamentos sabidamente ineficazes, manifestando-se
oficialmente contrária à vacinação obrigatória de crianças.
Coletivos
de médicos, sociedades de especialidades e entidades científicas vêm
denunciando reiteradamente a crise ética e moral por que passa o sistema
conselhal de medicina brasileiro. O cenário é revelador de grave
disfuncionalidade.
A
sociedade brasileira não viu ainda garantido plenamente o direito a saúde de
qualidade para todos.
A
despeito do imensurável avanço de um sistema de saúde universal garantido na
constituição de 1988, o SUS ainda sofre de graves problemas para sua efetivação
plena.
Muitos
ainda estão privados deste direito, em especial populações mais vulneráveis,
tanto nas cidades como no campo.
Saneamento
básico insuficiente, moradias precárias, desastres ambientais ainda são causas
de adoecimento de parcela significativa da população brasileira.
Vazios
assistenciais ainda estão presentes no campo e nas cidades. Retrocessos em
coberturas vacinais, recrudescimento de doenças anteriormente controladas,
agravamento de outras, violência no trânsito, violência contra mulheres,
trabalho escravo, pessoas em situação de rua.
A
autarquia CFM tem dado as costas para todo este cenário. Em sentido contrário,
abraçou o negacionismo, o corporativismo e a militância político-partidária e
instrumentalizou o princípio da autonomia em detrimento de toda a bioética,
rasgando o código de ética médica.
A
regulação da medicina brasileira precisa resgatar o paradigma hipocrático, com
a defesa da vida na sua essência.
E a
categoria médica precisa fazer uma reflexão profunda acerca de suas escolhas,
prezando pelo perfeito desempenho ético da medicina, mas também por uma outra
regulação do exercício da medicina, alinhada à ciência, ao humanismo e à ética,
comprometido com a sociedade e a vida.
Fonte:
Por Basília Rodrigues, na CNN Brasil/Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário