terça-feira, 26 de novembro de 2024

Câncer, malformação, “viroses”: a crise de saúde puxada por agrotóxicos na terra da soja

No “Nortão” de Mato Grosso, o uso de agrotóxicos é comum em cidades dominadas pelo agronegócio como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso. Moradores relatam que pelo menos duas vezes por ano passam pelo mesmo problema de saúde: náuseas, vômitos e diarreia. Para trabalhadores rurais e quem vive nos limites dessas cidades, ao lado das lavouras de algodão, milho e soja, o mal-estar se repete mais vezes a cada ano, geralmente na mesma época do plantio das novas safras. Mas há outros casos, ainda mais graves e recorrentes, neste trecho da rodovia BR-163.

Multiplicam-se episódios de malformação de bebês, com mortes de recém-nascidos e internações, sem sucesso, em unidades de tratamento intensivo (UTI). Ocorrem ainda repetidos casos de aborto espontâneo no início da gestação, entre a 9a e 12a semanas.

Mas no protocolo de perguntas às pacientes que perdem seus bebês, por exemplo, não há orientação para que se questione sobre a exposição da paciente a substâncias químicas, como os agrotóxicos despejados sistematicamente nas lavouras que invadem as cidades.

Para pesquisadores e profissionais de saúde ouvidos pela Agência Pública na região, tanto os casos graves quanto a recorrência de episódios de mal-estar provariam uma intoxicação em massa pelo abuso de agrotóxicos. Mas para o agronegócio e grande parte da elite local a resposta é outra: são apenas “viroses” e fatalidades que naturalmente acometem a população.

“Na época do plantio das novas safras, é normal as pessoas passarem mal sem procurar atendimento médico. Por aqui, tudo não passa de ‘virose’ que se trata em casa mesmo, com uma dipirona ou paracetamol, e não uma intoxicação em massa”, disse à Pública um dos profissionais de saúde ouvidos na condição de anonimato, por temor de retaliações.

“Infelizmente, aqui é comum que pessoas sejam diagnosticadas com câncer do sistema nervoso central, câncer linfático e leucemia, por vezes fulminantes, com pacientes levados a óbito em poucas semanas após o diagnóstico. Os sinais de algumas destas doenças graves são ignorados – como por exemplo fortes dores de cabeça, que são vistas como coisas corriqueiras, ao invés de servirem de alerta para a realização, com urgência, de exames de alta complexidade para um diagnóstico rápido e preciso”, afirmou à Pública outro profissional de saúde que atua na região.

•                                    Epidemia de câncer em crianças e adolescentes

Estudos recentes agravam o cenário quanto à saúde da população em diversas das cidades na rota da BR-163 em Mato Grosso. Enfermeira, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mariana Soares estuda casos de câncer infantojuvenil no estado, especialmente em regiões marcadas pelo uso ostensivo de agrotóxicos como Lucas do Rio Verde, Sinop e Sorriso.

Segundo Soares, o foco em crianças e jovens se explica pela ausência de hábitos associados a outros tipos de câncer, como consumo de substâncias alcoólicas ou dependência de nicotina, por exemplo – o que dificultaria uma análise precisa das causas da doença nos pacientes infantojuvenis.

“A partir de dados oficiais do Ministério da Saúde e do IBGE, já identificamos que, quanto maior o uso de agrotóxicos em uma região, proporcionalmente aumenta a incidência de câncer infantojuvenil no mesmo local”, disse à Pública a pesquisadora.

Os estudos dela evoluíram para uma pesquisa com pacientes já diagnosticados e em tratamento contra o câncer, para identificar a exposição de adultos a substâncias tóxicas por causa de suas profissões.

“Quem foi exposto a agrotóxicos e intoxicado tinha associação com determinados tipos de cânceres, o que foi importante para provar que pessoas expostas ocupacionalmente tiveram maior incidência de câncer”, afirmou Soares.

Segundo ela, prontuários oficiais e dados territoriais de incidência da doença revelam que 68% dos pacientes infantojuvenis do Hospital do Câncer em Cuiabá (MT) vêm do interior – especialmente de regiões tomadas pelo agronegócio, como Lucas do Rio Verde e outras cidades no eixo da BR-163.

“Nossas pesquisas atuais já sugerem que, quando os pais dos pacientes infanto-juvenis têm ocupações expostas a agrotóxicos, aumentam as chances de cânceres como leucemias e linfomas”, disse Soares.

“Mais grave ainda é notar que crianças de 0 a 4 anos representam 26%, mais de um quarto do público atingido, o que reforça a possibilidade de eventuais mutações genéticas nos progenitores antes mesmo da gestação dos bebês”, afirmou a pesquisadora da UFMT.

•                                    Perseguição contra pesquisadores de saúde

Há 12 anos, o médico e professor da UFMT Wanderlei Pignati revelou a contaminação por agrotóxicos do leite materno de mulheres em Lucas do Rio Verde, uma das cidades mais importantes para o agro no Nortão.

Ao fim, a pesquisa resultou na proibição da presença dele e de pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast), da UFMT, na cidade dali em diante – com riscos à integridade física dos pesquisadores como um todo.

“Não se trata do agronegócio em Mato Grosso desacreditar a ciência: ele trabalha incansavelmente para desregulamentar todas as leis de proteção à população, aos animais, às águas e ao meio ambiente”, disse o professor da UFMT.

“Anos atrás, quando percorri a região com uma colega da Fiocruz, fomos ameaçados, sim. Houve cidade que saímos às pressas, quando pessoas de lá souberam do objetivo de nossa pesquisa, e depois soubemos que profissionais que apoiaram nossos estudos tinham sido demitidas”, disse Pignati à Pública.

Entre as pesquisas realizadas por ele e sua equipe, destaque também para a identificação de resíduos de glifosato – agrotóxico associado a casos de depressão, infertilidade, Alzheimer, Parkinson e câncer, usado em lavouras de soja – nos bebedouros de escolas em locais com produção agrícola de alimentos em grande escala.

“Já divulgamos inúmeros dados alarmantes quanto à incidência, acima da média nacional, de casos de intoxicação aguda, câncer infantil, malformação de recém-nascidos, mas a consequência foi uma repressão ainda maior por parte do agronegócio – diretamente ligada aos poderes Executivo e Legislativo na região – para que servidores ‘subnotificassem’ casos nos anos seguintes”, afirmou o pesquisador da UFMT.

•                                    Bolsonarista quer afrouxar legislação de agrotóxicos

Enquanto eleitores de Mato Grosso voltavam suas atenções para a corrida eleitoral de 2024, deputados estaduais deram sinal verde para um projeto de lei sobre agrotóxicos que traz riscos à saúde de todos.

Proposto pelo homem de confiança do clã Bolsonaro no Nortão, o deputado Gilberto Cattani (PL), o projeto quer reduzir as distâncias mínimas para a aplicação terrestre de agrotóxicos em áreas próximas a cidades e mananciais de água, dos atuais 300 metros para meros 25 metros.

Além disso, o projeto quer substituir o termo “agrotóxicos” por “defensivos agrícolas”, uma mudança que “alinha-se às tendências atuais do setor e reflete os avanços tecnológicos na produção de produtos menos tóxicos”, segundo o relator da proposta, o deputado Carlos Avalone (PSDB) – que emitiu um parecer favorável ao projeto no último dia 13 de agosto.

“Na prática, estamos pensando apenas em melhorar as condições dos pequenos produtores, que estão com dificuldades em manter suas produções”, disse à Pública o responsável pela proposta, Gilberto Cattani.

Indagado sobre o impacto de seu projeto, caso aprovado, na saúde coletiva da população de Mato Grosso, considerando-se o avanço de casos graves e a suspeita de silenciamento e subnotificação de intoxicações, Cattani minimizou quaisquer danos.

Sem apresentar evidências, o deputado disse que alertas quanto aos malefícios do uso ostensivo de agrotóxicos no Nortão são “mentiras”.

“Não é uma questão ideológica, é uma questão de lógica: se isso [doenças ligadas ao abuso de agrotóxicos] não acontece com nenhum dos meus parentes e meus amigos, que trabalham com agricultura, só pode ser algo ‘montado’ para culpar o agronegócio”, afirmou o deputado.

A tentativa de afrouxar a legislação estadual quanto à proibição de uso de agrotóxicos em áreas urbanas e mais povoadas em Mato Grosso segue a linha do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

À época da gestão da hoje senadora pelo Mato Grosso do Sul Teresa Cristina (PP), o Ministério da Agricultura reduziu a distância mínima em relação a vilas, povoados e cidades para aplicação de produtos do tipo – de 500 metros para 250 metros. A decisão saiu no Diário Oficial da União logo no início da pandemia de covid-19.

Para o pesquisador da UFMT Wanderlei Pignati, a proposta do deputado bolsonarista revela a voracidade do agronegócio em Mato Grosso, ao mesmo tempo que pode gerar consequências não previstas pelo setor.

“Nós pesquisamos as condições de saúde em três municípios marcados pelo agronegócio no Nortão e, neles, quem mora a até 300 metros de onde há aplicação de agrotóxicos tem o dobro de chances de desenvolver diabetes, aumentam as chances de malformação de bebês e casos de câncer infantil… Isso na legislação atual. Se o limite baixar para 25 metros, eles vão aplicar nos quintais, ao lado dos mananciais, nas escolas. O problema só vai aumentar”, afirmou Pignati.

“Se essa lei passar, haverá um retrocesso muito grande não só aqui no estado, como para o agronegócio nacional, de modo mais amplo. Vai repercutir negativamente nas exportações de commodities, nos índices de saúde do trabalhador e da própria população… Temos um agronegócio insaciável e inconsequente”, disse ainda.

 

•                                    Mulher descobre câncer agressivo quando estava prestes a dar à luz

Laura Hudson estava grávida de 36 semanas da primeira filha quando descobriu que tinha uma forma agressiva de câncer de mama.

Em questão de dias, ela estava se preparando não apenas para uma cesariana para dar à luz, mas também para se submeter a um tratamento de quimioterapia e a uma mastectomia.

Laura, que mora em Astley, na Inglaterra, mal consegue acreditar no que aconteceu com ela ao relembrar os acontecimentos dos últimos 12 meses.

Ela e o marido, Sam, estão comemorando juntos o primeiro aniversário de Aurora, e o casal está incrivelmente aliviado por Laura ter sido declarada livre do câncer.

<><> 'Muito chocados'

Laura, agora com 34 anos, disse que percebeu que algo estava errado quando sentiu um caroço no seio direito.

Ela não ficou muito preocupada, mas comentou com seu clínico geral, que achou que "provavelmente tinha a ver com a gestação" — e pediu que ela retornasse após duas semanas.

"Na consulta seguinte, achei que (o nódulo) havia aumentado, e o médico concordou. Ele enviou então um pedido para mais exames", lembra Laura.

Ela contou à Radio Manchester, da BBC, que teve sorte de encontrar o nódulo e de "seguir seus instintos", indo ao médico.

Os especialistas logo perceberam que ela tinha câncer.

Como o nódulo havia crescido muito rápido, os médicos quiseram iniciar o tratamento o mais rápido possível no centro oncológico The Christie NHS Foundation Trust, em Wigan.

Laura disse que ela e Sam ficaram "muito chocados, porque isso não é algo que se espera, especialmente durante a gravidez".

"Meu primeiro pensamento foi em relação à minha bebê", acrescentou.

Aurora nasceu saudável com 37 semanas de gestação.

Embora a família recém-ampliada tenha conseguido passar alguns dias reunida, Laura precisou rapidamente iniciar a quimioterapia, antes de fazer a mastectomia e a reconstrução da mama.

O tratamento, realizado no Royal Albert Edward Infirmary, em Wigan, foi bem-sucedido, o que significa que Laura e Sam puderam concentrar todas as suas energias na filha.

Claire Kelly, oncologista que tratou dela no The Christie, descreveu Laura como uma "mulher inspiradora" que, ao compartilhar sua história, também aumentou a conscientização sobre a doença.

"Um nódulo não é o único sintoma de câncer de mama, por isso é importante que as pessoas se autoexaminem regularmente, e saibam o que é normal para elas", acrescenta Kelly.

De acordo com o site do NHS, sistema público de saúde britânico, os principais sintomas de câncer de mama são:

- Nódulo ou inchaço no seio, no peito ou na axila;

- Alterações na pele da mama, como covinhas (pode ter aparência de casca de laranja) ou vermelhidão (pode ser mais difícil de ver na pele negra ou morena);

- Mudança no tamanho ou no formato de um ou ambos os seios;

- Secreção no mamilo (se você não estiver grávida ou amamentando), que pode conter sangue;

- Mudança na forma ou aparência do mamilo, como virar para dentro (mamilo invertido) ou erupção cutânea (pode parecer eczema);

Dor na mama ou na axila que não passa — a dor na mama que vai e vem geralmente não é um sintoma de câncer de mama.

Laura disse que estava "muito contente" por ter sido examinada depois de encontrar o caroço no seio.

"Não sei onde estaria se não tivesse", completou.

"A grande mensagem para as mulheres é que não deixem de verificar."

Laura afirmou que a vida com a filha tem sido "incrível".

"Ela fez o último ano valer a pena."

"Ela é minha Aurora no sentido mais verdadeiro da palavra, uma linda luz na escuridão."

 

•                                    Câncer de pâncreas: a personalização do cuidado

Há não muito tempo, o tratamento do câncer de pâncreas era definido a partir de dois critérios básicos: apenas quimioterapia para os casos com metástase (o câncer já atingiu outros órgãos) e quimioterapia prévia seguida de cirurgia nos quadros sem metástase ou cirurgia direto. Esse modelo de cuidado “tamanho único” funcionava bem para alguns indivíduos e não para outros. Por quê? Assim como outros cânceres, os de pâncreas são diferentes entre si.

Hoje, diversas mutações associadas aos tumores nesse órgão podem ser identificadas a partir do sequenciamento genético de uma amostra do tecido extraída por biópsia ou por meio da biópsia líquida, exame feito a partir da coleta de sangue para analisar o DNA tumoral circulante na corrente sanguínea. Com o diagnóstico molecular e genético do câncer, é possível fazer um tratamento direcionado, com medicamentos específicos, inclusive imunoterapia, que estimula o próprio sistema imunológico a atacar as células tumorais.

Mas a personalização do cuidado não se limita à escolha da medicação que será mais eficaz. Por exemplo, será que a conduta padrão adotada para pacientes com câncer de pâncreas não metastático é a melhor alternativa para todos? A resposta é negativa. Um estudo feito pelo Einstein com base na compilação de dados internos do histórico de 20 anos de atendimentos mostrou que cerca de 10% dos pacientes submetidos à quimioterapia prévia perdiam a chance de serem operados. Ou seja, para esse grupo, a abordagem padrão baseada em evidências e adotada globalmente não funcionava como o esperado. Segundo o Dr. Fernando Moura, coordenador da medicina de precisão do Einstein, isso acontece porque a doença progride durante a quimioterapia ou esta debilita o paciente já fragilizado pelo câncer, tornando-o inelegível ao procedimento cirúrgico.

No Einstein, todos os pacientes com câncer de pâncreas não metastático passaram a ser avaliados por um conjunto de especialistas. A partir de informações como quadro clínico, perfil genético do paciente, diagnóstico molecular do tumor, esse grupo discute as alternativas e define qual abordagem é a mais indicada em cada caso – e que pode não ser, obrigatoriamente, a conduta padrão com quimioterapia pré-operatória. As discussões geram decisões mais assertivas para oferecer o melhor tratamento possível, com maior segurança para o paciente.

Um trabalho posterior, desta vez uma revisão sistemática da literatura, abrangendo perto de 3.500 casos, apontou resultado semelhante ao do estudo inicial. O novo passo para aprofundar esses conhecimentos virá do estudo que o Einstein desenvolverá usando uma base de dados muito mais abrangente, possivelmente com 40/50 mil casos: o da Mayo Clinic Platform Connect, uma plataforma de dados anonimizados compartilhados entre as instituições que a compõem. Além da norte-americana Mayo Clinic e do Einstein, também integram o Sheba (Israel), a Universidade Health Network (Toronto) e o Mercy (EUA). 

Uma plataforma desse tipo potencializa a capacidade de gerar conhecimento a partir de dados. Seja na oncologia ou em qualquer outra especialidade, cada vez mais seremos capazes de conjugar o que há de melhor na tradicional medicina baseada em evidências com os recursos da genética e da medicina de precisão para oferecer cuidados personalizados, desenhados sob medida para cada paciente. Com isso, aumenta-se a efetividade dos tratamentos e as chances de cura. E, mesmo quando a cura não é possível, a medicina personalizada ajuda a evitar terapias e procedimentos que não trarão resultados e identificar caminhos para assegurar a melhor qualidade de vida possível. 

 

Fonte: Por Caio de Freitas, da Agencia Pública/BBC News/Futuro da Saúde

 

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