terça-feira, 26 de novembro de 2024

José Raimundo Trindade: 6X1 - Uma luta secular

A recente pauta de constitucionalização da ilegalidade da jornada extorsiva 6 por 1 constitui mais um momento de uma longa luta social pela garantia de direitos básicos e contrários a exploração abusiva. Em 2018 foi lançado aqui no Brasil o livro que melhor trata desse longo e intranquilo processo de luta pela vida além do trabalho, obra de Pietro Basso.

A lógica que Karl Marx estabelece no fundamental trabalho Salário, preço e lucro (1865), de como a economia burguesa moderna consegue iludir toda sociedade e “vender” o salário e a jornada de trabalho como formas sociais justas e plenamente racionais, algo que se torna um dogma entre os economistas burgueses. Nos utilizamos desses dois autores para discutir e analisar a evolução da jornada de trabalho e a luta secular pelo tempo de viver.

Karl Marx, já estabelecia na referida obra a crítica necessária aos economistas que achavam e, ainda hoje defendem, que “os preços das mercadorias são determinados ou regulados pelos salários”. O salário é uma variável dependente, cuja determinação resulta, de um lado do valor da mercadoria força de trabalho, de outro da punção que o capital exerce no processo de acumulação. A lição de Marx é bem clara: os salários “não podem exceder os valores das mercadorias […] mas podem, sim, ser inferiores em todos os graus imagináveis”, de tal forma que os salários dos trabalhadores “achar-se-ão limitados pelos valores dos produtos, mas os valores de seus produtos não se acharão limitados pelos salários”.

No capítulo 8 de O capital, intitulado bem a propósito de “A jornada de trabalho”, Marx inicia explicando que a “jornada de trabalho não é (…) uma grandeza constante, mas variável. Uma de suas partes é, de fato, determinada pelo tempo de trabalho requerido para a reprodução contínua do trabalhador, mas sua grandeza total varia com a extensão ou duração do mais-trabalho”. Neste breve excerto temos elementos explicativos que seriam suficientes para desmontar o discurso econômico vulgar ou ortodoxo.

Primeiramente cabe esclarecer o significado histórico do chamado assalariamento. O capitalismo é a primeira forma histórica humana baseada na compra e venda de uma mercadoria específica, a mercadoria força de trabalho. Diferentemente de outros momentos da história em que o trabalho era compulsório, como na escravidão e na servidão, agora o trabalho passa a ser uma relação contratual.

O contrato de trabalho coloca frente a frente o capitalista (empresário), controlador da relação e, o trabalhador, que oferece sua capacidade de trabalho em troca de uma magnitude de renda, o salário. Essa relação constitui o centro do mundo jurídico capitalista, pois inicialmente “o intercâmbio entre capital e trabalho apresenta-se à percepção exatamente do mesmo modo como a compra e a venda de todas as outras mercadorias. O comprador dá certa soma de dinheiro, e o vendedor, um artigo diferente de dinheiro. Nesse fato, a consciência jurídica reconhece, quando muito, uma diferença material, expressa em fórmulas juridicamente equivalentes: do ut des, do ut facias, facio ut des, facio ut facias.” (MARX, ([1867], 2013, p. 611).

Uma segunda explicação refere-se aos limites mínimos e máximos da jornada de trabalho. Esse constitui ponto central para o nosso debate atual da jornada 6 por 1. A jornada de trabalho pode ser dividida em dois segmentos: uma parte do tempo de trabalho possibilita a reprodução das condições de vida do trabalhador, como tal esse período de trabalho denomina-se de tempo de trabalho necessário, pois será neste período de tempo que o trabalhador produzirá uma quantidade de valor que compra as mercadorias necessárias a sua existência física, material e moral.

A segunda parte da jornada produz valor excedente que é inteiramente apropriado pelo capitalista como lucro. Justamente pela lógica de que o salário não paga toda jornada e sim somente uma parte dela é que todo discurso jurídico e econômico burguês constitui uma falácia.

Karl Marx observa que a relação jurídica burguesa estabelece uma igualdade de direitos entre trabalhador e capitalista, sendo que o chamado mercado de trabalho contrapõe os empresários enquanto compradores da mercadoria força de trabalho e os trabalhadores que ofertam a referida e especial mercadoria. Porém, aqui se tem uma “antinomia, um direito contra outro direito, ambos apoiados na lei de troca das mercadorias”, e assim, frente “direitos iguais, quem decide é a força”.

Ao longo dos últimos seis séculos poderíamos dizer que a grande disputa social, quase que continua, foi pela regulamentação de uma “jornada de trabalho normal” que fosse minimamente condizente com condições dignas de vida para a classe trabalhadora.

Somente em 1850 é aprovada na Inglaterra as “Factory Act” (Leis Fabris) que estabeleciam “12 horas para cada um dos primeiros 5 dias da semana, das 6 horas da manhã às 6 da tarde (…) [e] aos sábados, 8 horas de trabalho, das 6 da manhã às 2 da tarde”, porém a lógica capitalista era [e é] de roubar tempo de trabalho de tal forma “o furto de um pequeno intervalo de tempo aqui, outro ali, converte os 12 meses do ano em 13”, de fato o capitalismo é o sistema de espoliação do tempo alheio, uma lógica expressa no desenvolvimento do controle do tempo através dos relógios de dois ponteiros e do cronômetro.

Pietro Basso nos expõe de forma cristalina como se processou a luta pela redução da jornada de trabalho e obtenção de uma jornada normal de trabalho mais digna desde o final do século XIX até os dias atuais, dando certa continuidade as análises desenvolvidas por Marx em O capital (Livro I). Basso mostra que diferentemente do que apregoa o discurso econômico burguês não foi o aumento puro e simples da “produtividade” que estabeleceu a redução da jornada e sim a luta organizada dos trabalhadores.

Assim, “após o acirrado movimento de luta do começo dos anos 1880, que culminou no 1° de maio de 1886 (…) o tema da redução da jornada, da conquista das oito horas, ficou na sombra até o início do século XX (…) apenas entre 1908 e 1919, que se produziu uma ruptura” sendo que nos Estados Unidos fruto desta intensa luta social se conquista em 1919 as oito horas, que “se tornaram uma realidade para a grande maioria dos operários da indústria”.

Porém, a disputa entre capital e trabalho não se arrefece, sendo que parcela considerável dos trabalhadores estadunidenses manteve uma jornada de trabalho até mesmo superior a 55 horas semanais, o que denota a “voracidade de lobisomem por mais-trabalho” dos capitalistas, transgredindo “os limites” morais e físicos da exploração do trabalhador, como bem expunha Karl Marx.

Vale observar que o tempo livre e uma jornada menor e que seja regulada socialmente ocorre “apesar do capitalismo, e não graças a ele” como bem nos expõe Pietro Basso lançando mão da análise de economistas críticos (a referência específica é de Schor). Mesmo após a Segunda Guerra Mundial e a despeito dos “anos dourados” do capitalismo ocidental a luta pela redução da jornada e contrárias as jornadas abusivas permaneceram, com diversos vai-e-vem.

Pietro Basso observa com base em estatísticas de longo termo dois pontos essenciais: (i) não é o crescimento da produtividade que gera “efetiva diminuição (…) da duração da jornada laboral e; (ii) a duração efetiva da jornada de trabalho social média foi influenciada de modo determinante pela luta da classe trabalhadora”.

No caso brasileiro a luta social pela regulação de uma jornada de trabalho normal decente alcança sua última grande conquista com a Constituição Federal de 1988 quando no artigo 7º, XIII, estabelece a jornada de trabalho em 08 horas diárias e quarenta e quatro semanais. Esses parâmetros foram obtidos pela ampla luta que se travou no período pela redemocratização do país e ascensão de um amplo movimento social sindical e popular que colocaram muitos novos atores entram em cena, metáfora cunhada por Eder Sader e título de uma de suas obras.

Desde então os trabalhadores brasileiros permanecem em uma condição em que a jornada normal de trabalho somente se aplica ao chamado contingente formal do mercado de trabalho, porém parcela considerável submetida as jornadas abusivas e extorsivas, que necessitam serem revistas e reguladas socialmente com vistas a considerar que a vida é muito mais que o trabalho e bem mais que a avidez de lucros e ganhos de alguns poucos.

 

•                                    Luta contra escala 6x1 é reação a 10 anos de ataques aos direitos trabalhistas. Por Paulo Motoryn

A mobilização em torno do fim da escala 6×1, tema que ganhou força com o grupo Vida Além do Trabalho e deve entrar na pauta do Congresso Nacional por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada pela deputada federal Erika Hilton, do PSOL de São Paulo, é uma reação à flexibilização das leis trabalhistas no Brasil.

A avaliação é de Renan Kalil, doutor em Direito na USP, professor do Insper e procurador do Ministério Público do Trabalho. Para ele, o debate surge de forma orgânica na sociedade, trazendo à tona uma demanda legítima por melhores condições de trabalho.

“Há um excesso de jornadas no Brasil. As pessoas trabalham muito, e o tema só ganhou essa dimensão porque reflete uma necessidade real”, avalia Kalil, em entrevista ao Intercept Brasil.

Segundo ele, a discussão ocorre em um cenário de retrocessos acumulados ao longo de mais de 30 anos, marcados por iniciativas legislativas que, em sua maioria, fragilizaram os direitos dos trabalhadores.

“Nos últimos dez anos, a maioria das propostas aprovadas no parlamento não foi pró-trabalhador. Reformas como a da terceirização e a trabalhista apenas intensificaram a jornada e precarizaram as relações de trabalho”, afirma.

Kalil argumenta que a redução da jornada é mais do que uma questão de saúde e qualidade de vida: é uma resposta direta às desigualdades no mercado de trabalho. Ele aponta ainda que o Brasil permanece atrasado em relação a outros países.

“Nos Estados Unidos, que a extrema direita gosta de usar como referência, o limite semanal é de 40 horas. Aqui, ainda estamos discutindo como sair das 44 horas, o que demonstra o quanto ainda precisamos avançar”, destaca.

<><> Leia a entrevista completa.

•                                    O que motivou o debate sobre a redução da escala 6×1 e qual a importância desse tema?

Renan Kalil – Esse tema surge de forma muito orgânica na sociedade porque há um excesso de jornadas de trabalho no Brasil. As pessoas trabalham muito. O Rick Azevedo conseguiu simbolizar e tocar num ponto que já estava no ar com o vídeo que viralizou no TikTok. Isso trouxe à tona uma demanda social importante, traduzindo em palavras algo que está presente nos mais variados ciclos sociais e tipos de trabalho.

Se olharmos para a PEC da deputada Erika Hilton, que foi apresentada em maio, ela não estava avançando. Foi só a partir do impacto do debate nas redes sociais, promovido pelo Rick Azevedo e pelo movimento Vida Além do Trabalho, que ela ganhou tração e se tornou um tema de debate no Congresso. Isso mostra como uma demanda social pode catalisar mudanças, especialmente quando há esse tipo de mobilização.

•                                    Como o conceito de liberdade está relacionado a essa discussão?

Essa questão está muito ligada à ideia de liberdade. Alguns defendem modelos como o “plataformizado” sob o argumento de que o trabalhador pode escolher quando vai trabalhar. Mas essa “liberdade” é, muitas vezes, voltada para a inserção e dominação do tempo profissional.

Ao mesmo tempo, existe o desejo do trabalhador de poder escolher momentos em que ele não fará nada relacionado ao trabalho, para se dedicar a estudar, praticar esportes, socializar ou participar de atividades religiosas. Essa é uma demanda legítima e significativa, que reflete um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, algo que muitas vezes é negligenciado.

•                                    Qual o papel da legislação trabalhista nessa discussão?

A legislação trabalhista é frequentemente criticada como rígida e inflexível, mas ela existe para proteger o tempo do trabalhador, permitindo que ele tenha uma vida além do trabalho. Por exemplo, a limitação de jornada garante que as pessoas possam se dedicar a outras atividades importantes em suas vidas.

No entanto, vimos uma flexibilização da legislação nos últimos 30 anos, o que intensificou as jornadas de trabalho. Isso resultou em uma situação paradoxal: em 2024, a principal pauta para os trabalhadores ainda é limitar a jornada de trabalho, algo que remonta ao surgimento do direito do trabalho no século 19.

•                                    Como a negociação coletiva pode contribuir para essas mudanças, e quais os desafios nesse contexto?

A negociação coletiva é, de fato, um instrumento moldado para promover mudanças como essa. Porém, nem todas as categorias têm sindicatos fortes e estruturados para negociar em condições favoráveis.

Por exemplo, sindicatos como os metalúrgicos do ABC, os bancários ou os petroquímicos têm uma forte representatividade. Já categorias como a do Rick Azevedo — trabalhadores de farmácia — enfrentam mais dificuldades devido à falta de organização sindical robusta.

Nesse contexto, estabelecer um limite máximo de jornada na Constituição ou na CLT tem um impacto simbólico importante. Isso fortalece o trabalhador na mesa de negociação, permitindo que ele avance na melhoria das condições de trabalho. Negociar com uma carga máxima de 44 horas é muito diferente de negociar com 40 ou 36 horas. Limites menores ampliam as possibilidades de acordos mais justos.

•                                    Como você avalia o histórico recente das iniciativas legislativas relacionadas ao trabalho?

Nos últimos dez anos, com exceção da PEC das Domésticas, a maioria das iniciativas aprovadas no parlamento não foi pró-trabalhador. Vimos medidas como a ampliação da terceirização e a reforma trabalhista, que trouxeram mais desvantagens do que benefícios para os trabalhadores.

A pauta da redução da jornada, por outro lado, surge de forma orgânica e é a primeira iniciativa pró-trabalhador desse período. Isso marca um momento diferente, que contrasta com as tendências recentes.

Isso reforça a importância de pautas como a redução da jornada, que são verdadeiramente significativas e têm o potencial de tentar reequilibrar as relações de trabalho no Brasil.

•                                    Um dos argumentos contrários ao fim da escala 6×1 menciona uma suposta baixa produtividade do trabalhador brasileira. Como você enxerga isso?

Estudos do Dieese mostram que o aumento da produtividade do trabalhador brasileiro não foi acompanhado de ganhos salariais ou redução no tempo de trabalho.

A jornada de trabalho no Brasil demorou muito para ser reduzida, e essa redução foi mínima. Até 1988, o limite era de 48 horas semanais, reduzido para 44 horas com a Constituição. Hoje, vários países têm limites bem menores, como a França, com 35 horas, e os Estados Unidos, com 40 horas semanais.

A ideia de que o trabalhador brasileiro trabalha pouco é insustentável. O tema da redução da jornada só ganha a dimensão que tem porque reflete uma demanda real e urgente.

•                                    A redução da jornada é suficiente para melhorar as condições de trabalho?

A iniciativa da deputada Erika Hilton é importante, mas apenas mudar a Constituição será insuficiente. Isso porque a CLT foi alterada significativamente nos últimos anos, permitindo uma intensificação da jornada.

É necessário rever esses pontos na legislação para garantir que a redução da jornada resulte em menos tempo de trabalho e mais tempo para outras atividades. Além disso, a redução da jornada deve ser acompanhada pela manutenção dos salários. Qualquer redução proporcional de salário penalizará os trabalhadores.

 

Fonte: A Terra é Redonda/The Intercept

 

Nenhum comentário: