José
Raimundo Trindade: 6X1 - Uma luta secular
A
recente pauta de constitucionalização da ilegalidade da jornada extorsiva 6 por
1 constitui mais um momento de uma longa luta social pela garantia de direitos
básicos e contrários a exploração abusiva. Em 2018 foi lançado aqui no Brasil o
livro que melhor trata desse longo e intranquilo processo de luta pela vida
além do trabalho, obra de Pietro Basso.
A
lógica que Karl Marx estabelece no fundamental trabalho Salário, preço e lucro
(1865), de como a economia burguesa moderna consegue iludir toda sociedade e
“vender” o salário e a jornada de trabalho como formas sociais justas e
plenamente racionais, algo que se torna um dogma entre os economistas
burgueses. Nos utilizamos desses dois autores para discutir e analisar a
evolução da jornada de trabalho e a luta secular pelo tempo de viver.
Karl
Marx, já estabelecia na referida obra a crítica necessária aos economistas que
achavam e, ainda hoje defendem, que “os preços das mercadorias são determinados
ou regulados pelos salários”. O salário é uma variável dependente, cuja
determinação resulta, de um lado do valor da mercadoria força de trabalho, de
outro da punção que o capital exerce no processo de acumulação. A lição de Marx
é bem clara: os salários “não podem exceder os valores das mercadorias […] mas
podem, sim, ser inferiores em todos os graus imagináveis”, de tal forma que os
salários dos trabalhadores “achar-se-ão limitados pelos valores dos produtos,
mas os valores de seus produtos não se acharão limitados pelos salários”.
No
capítulo 8 de O capital, intitulado bem a propósito de “A jornada de trabalho”,
Marx inicia explicando que a “jornada de trabalho não é (…) uma grandeza
constante, mas variável. Uma de suas partes é, de fato, determinada pelo tempo
de trabalho requerido para a reprodução contínua do trabalhador, mas sua
grandeza total varia com a extensão ou duração do mais-trabalho”. Neste breve
excerto temos elementos explicativos que seriam suficientes para desmontar o
discurso econômico vulgar ou ortodoxo.
Primeiramente
cabe esclarecer o significado histórico do chamado assalariamento. O
capitalismo é a primeira forma histórica humana baseada na compra e venda de
uma mercadoria específica, a mercadoria força de trabalho. Diferentemente de
outros momentos da história em que o trabalho era compulsório, como na
escravidão e na servidão, agora o trabalho passa a ser uma relação contratual.
O
contrato de trabalho coloca frente a frente o capitalista (empresário),
controlador da relação e, o trabalhador, que oferece sua capacidade de trabalho
em troca de uma magnitude de renda, o salário. Essa relação constitui o centro
do mundo jurídico capitalista, pois inicialmente “o intercâmbio entre capital e
trabalho apresenta-se à percepção exatamente do mesmo modo como a compra e a
venda de todas as outras mercadorias. O comprador dá certa soma de dinheiro, e
o vendedor, um artigo diferente de dinheiro. Nesse fato, a consciência jurídica
reconhece, quando muito, uma diferença material, expressa em fórmulas
juridicamente equivalentes: do ut des, do ut facias, facio ut des, facio ut
facias.” (MARX, ([1867], 2013, p. 611).
Uma
segunda explicação refere-se aos limites mínimos e máximos da jornada de
trabalho. Esse constitui ponto central para o nosso debate atual da jornada 6
por 1. A jornada de trabalho pode ser dividida em dois segmentos: uma parte do
tempo de trabalho possibilita a reprodução das condições de vida do
trabalhador, como tal esse período de trabalho denomina-se de tempo de trabalho
necessário, pois será neste período de tempo que o trabalhador produzirá uma
quantidade de valor que compra as mercadorias necessárias a sua existência
física, material e moral.
A
segunda parte da jornada produz valor excedente que é inteiramente apropriado
pelo capitalista como lucro. Justamente pela lógica de que o salário não paga
toda jornada e sim somente uma parte dela é que todo discurso jurídico e
econômico burguês constitui uma falácia.
Karl
Marx observa que a relação jurídica burguesa estabelece uma igualdade de
direitos entre trabalhador e capitalista, sendo que o chamado mercado de
trabalho contrapõe os empresários enquanto compradores da mercadoria força de
trabalho e os trabalhadores que ofertam a referida e especial mercadoria.
Porém, aqui se tem uma “antinomia, um direito contra outro direito, ambos
apoiados na lei de troca das mercadorias”, e assim, frente “direitos iguais,
quem decide é a força”.
Ao
longo dos últimos seis séculos poderíamos dizer que a grande disputa social,
quase que continua, foi pela regulamentação de uma “jornada de trabalho normal”
que fosse minimamente condizente com condições dignas de vida para a classe
trabalhadora.
Somente
em 1850 é aprovada na Inglaterra as “Factory Act” (Leis Fabris) que
estabeleciam “12 horas para cada um dos primeiros 5 dias da semana, das 6 horas
da manhã às 6 da tarde (…) [e] aos sábados, 8 horas de trabalho, das 6 da manhã
às 2 da tarde”, porém a lógica capitalista era [e é] de roubar tempo de
trabalho de tal forma “o furto de um pequeno intervalo de tempo aqui, outro
ali, converte os 12 meses do ano em 13”, de fato o capitalismo é o sistema de
espoliação do tempo alheio, uma lógica expressa no desenvolvimento do controle
do tempo através dos relógios de dois ponteiros e do cronômetro.
Pietro
Basso nos expõe de forma cristalina como se processou a luta pela redução da
jornada de trabalho e obtenção de uma jornada normal de trabalho mais digna
desde o final do século XIX até os dias atuais, dando certa continuidade as
análises desenvolvidas por Marx em O capital (Livro I). Basso mostra que
diferentemente do que apregoa o discurso econômico burguês não foi o aumento
puro e simples da “produtividade” que estabeleceu a redução da jornada e sim a
luta organizada dos trabalhadores.
Assim,
“após o acirrado movimento de luta do começo dos anos 1880, que culminou no 1°
de maio de 1886 (…) o tema da redução da jornada, da conquista das oito horas,
ficou na sombra até o início do século XX (…) apenas entre 1908 e 1919, que se
produziu uma ruptura” sendo que nos Estados Unidos fruto desta intensa luta
social se conquista em 1919 as oito horas, que “se tornaram uma realidade para
a grande maioria dos operários da indústria”.
Porém,
a disputa entre capital e trabalho não se arrefece, sendo que parcela
considerável dos trabalhadores estadunidenses manteve uma jornada de trabalho
até mesmo superior a 55 horas semanais, o que denota a “voracidade de lobisomem
por mais-trabalho” dos capitalistas, transgredindo “os limites” morais e
físicos da exploração do trabalhador, como bem expunha Karl Marx.
Vale
observar que o tempo livre e uma jornada menor e que seja regulada socialmente
ocorre “apesar do capitalismo, e não graças a ele” como bem nos expõe Pietro
Basso lançando mão da análise de economistas críticos (a referência específica
é de Schor). Mesmo após a Segunda Guerra Mundial e a despeito dos “anos
dourados” do capitalismo ocidental a luta pela redução da jornada e contrárias
as jornadas abusivas permaneceram, com diversos vai-e-vem.
Pietro
Basso observa com base em estatísticas de longo termo dois pontos essenciais:
(i) não é o crescimento da produtividade que gera “efetiva diminuição (…) da
duração da jornada laboral e; (ii) a duração efetiva da jornada de trabalho
social média foi influenciada de modo determinante pela luta da classe
trabalhadora”.
No
caso brasileiro a luta social pela regulação de uma jornada de trabalho normal
decente alcança sua última grande conquista com a Constituição Federal de 1988
quando no artigo 7º, XIII, estabelece a jornada de trabalho em 08 horas diárias
e quarenta e quatro semanais. Esses parâmetros foram obtidos pela ampla luta
que se travou no período pela redemocratização do país e ascensão de um amplo
movimento social sindical e popular que colocaram muitos novos atores entram em
cena, metáfora cunhada por Eder Sader e título de uma de suas obras.
Desde
então os trabalhadores brasileiros permanecem em uma condição em que a jornada
normal de trabalho somente se aplica ao chamado contingente formal do mercado
de trabalho, porém parcela considerável submetida as jornadas abusivas e
extorsivas, que necessitam serem revistas e reguladas socialmente com vistas a
considerar que a vida é muito mais que o trabalho e bem mais que a avidez de
lucros e ganhos de alguns poucos.
• Luta contra
escala 6x1 é reação a 10 anos de ataques aos direitos trabalhistas. Por Paulo
Motoryn
A
mobilização em torno do fim da escala 6×1, tema que ganhou força com o grupo
Vida Além do Trabalho e deve entrar na pauta do Congresso Nacional por meio de
uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada pela deputada federal Erika
Hilton, do PSOL de São Paulo, é uma reação à flexibilização das leis
trabalhistas no Brasil.
A
avaliação é de Renan Kalil, doutor em Direito na USP, professor do Insper e
procurador do Ministério Público do Trabalho. Para ele, o debate surge de forma
orgânica na sociedade, trazendo à tona uma demanda legítima por melhores
condições de trabalho.
“Há
um excesso de jornadas no Brasil. As pessoas trabalham muito, e o tema só
ganhou essa dimensão porque reflete uma necessidade real”, avalia Kalil, em
entrevista ao Intercept Brasil.
Segundo
ele, a discussão ocorre em um cenário de retrocessos acumulados ao longo de
mais de 30 anos, marcados por iniciativas legislativas que, em sua maioria,
fragilizaram os direitos dos trabalhadores.
“Nos
últimos dez anos, a maioria das propostas aprovadas no parlamento não foi
pró-trabalhador. Reformas como a da terceirização e a trabalhista apenas
intensificaram a jornada e precarizaram as relações de trabalho”, afirma.
Kalil
argumenta que a redução da jornada é mais do que uma questão de saúde e
qualidade de vida: é uma resposta direta às desigualdades no mercado de
trabalho. Ele aponta ainda que o Brasil permanece atrasado em relação a outros
países.
“Nos
Estados Unidos, que a extrema direita gosta de usar como referência, o limite
semanal é de 40 horas. Aqui, ainda estamos discutindo como sair das 44 horas, o
que demonstra o quanto ainda precisamos avançar”, destaca.
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Leia a entrevista completa.
• O que
motivou o debate sobre a redução da escala 6×1 e qual a importância desse tema?
Renan
Kalil – Esse tema surge de forma muito orgânica na sociedade porque há um
excesso de jornadas de trabalho no Brasil. As pessoas trabalham muito. O Rick
Azevedo conseguiu simbolizar e tocar num ponto que já estava no ar com o vídeo
que viralizou no TikTok. Isso trouxe à tona uma demanda social importante,
traduzindo em palavras algo que está presente nos mais variados ciclos sociais
e tipos de trabalho.
Se
olharmos para a PEC da deputada Erika Hilton, que foi apresentada em maio, ela
não estava avançando. Foi só a partir do impacto do debate nas redes sociais,
promovido pelo Rick Azevedo e pelo movimento Vida Além do Trabalho, que ela
ganhou tração e se tornou um tema de debate no Congresso. Isso mostra como uma
demanda social pode catalisar mudanças, especialmente quando há esse tipo de
mobilização.
• Como o
conceito de liberdade está relacionado a essa discussão?
Essa
questão está muito ligada à ideia de liberdade. Alguns defendem modelos como o
“plataformizado” sob o argumento de que o trabalhador pode escolher quando vai
trabalhar. Mas essa “liberdade” é, muitas vezes, voltada para a inserção e
dominação do tempo profissional.
Ao
mesmo tempo, existe o desejo do trabalhador de poder escolher momentos em que
ele não fará nada relacionado ao trabalho, para se dedicar a estudar, praticar
esportes, socializar ou participar de atividades religiosas. Essa é uma demanda
legítima e significativa, que reflete um equilíbrio entre trabalho e vida
pessoal, algo que muitas vezes é negligenciado.
• Qual o papel
da legislação trabalhista nessa discussão?
A
legislação trabalhista é frequentemente criticada como rígida e inflexível, mas
ela existe para proteger o tempo do trabalhador, permitindo que ele tenha uma
vida além do trabalho. Por exemplo, a limitação de jornada garante que as
pessoas possam se dedicar a outras atividades importantes em suas vidas.
No
entanto, vimos uma flexibilização da legislação nos últimos 30 anos, o que
intensificou as jornadas de trabalho. Isso resultou em uma situação paradoxal:
em 2024, a principal pauta para os trabalhadores ainda é limitar a jornada de
trabalho, algo que remonta ao surgimento do direito do trabalho no século 19.
• Como a
negociação coletiva pode contribuir para essas mudanças, e quais os desafios
nesse contexto?
A
negociação coletiva é, de fato, um instrumento moldado para promover mudanças
como essa. Porém, nem todas as categorias têm sindicatos fortes e estruturados
para negociar em condições favoráveis.
Por
exemplo, sindicatos como os metalúrgicos do ABC, os bancários ou os
petroquímicos têm uma forte representatividade. Já categorias como a do Rick
Azevedo — trabalhadores de farmácia — enfrentam mais dificuldades devido à
falta de organização sindical robusta.
Nesse
contexto, estabelecer um limite máximo de jornada na Constituição ou na CLT tem
um impacto simbólico importante. Isso fortalece o trabalhador na mesa de
negociação, permitindo que ele avance na melhoria das condições de trabalho.
Negociar com uma carga máxima de 44 horas é muito diferente de negociar com 40
ou 36 horas. Limites menores ampliam as possibilidades de acordos mais justos.
• Como você
avalia o histórico recente das iniciativas legislativas relacionadas ao
trabalho?
Nos
últimos dez anos, com exceção da PEC das Domésticas, a maioria das iniciativas
aprovadas no parlamento não foi pró-trabalhador. Vimos medidas como a ampliação
da terceirização e a reforma trabalhista, que trouxeram mais desvantagens do
que benefícios para os trabalhadores.
A
pauta da redução da jornada, por outro lado, surge de forma orgânica e é a
primeira iniciativa pró-trabalhador desse período. Isso marca um momento
diferente, que contrasta com as tendências recentes.
Isso
reforça a importância de pautas como a redução da jornada, que são
verdadeiramente significativas e têm o potencial de tentar reequilibrar as
relações de trabalho no Brasil.
• Um dos
argumentos contrários ao fim da escala 6×1 menciona uma suposta baixa
produtividade do trabalhador brasileira. Como você enxerga isso?
Estudos
do Dieese mostram que o aumento da produtividade do trabalhador brasileiro não
foi acompanhado de ganhos salariais ou redução no tempo de trabalho.
A
jornada de trabalho no Brasil demorou muito para ser reduzida, e essa redução
foi mínima. Até 1988, o limite era de 48 horas semanais, reduzido para 44 horas
com a Constituição. Hoje, vários países têm limites bem menores, como a França,
com 35 horas, e os Estados Unidos, com 40 horas semanais.
A
ideia de que o trabalhador brasileiro trabalha pouco é insustentável. O tema da
redução da jornada só ganha a dimensão que tem porque reflete uma demanda real
e urgente.
• A redução da
jornada é suficiente para melhorar as condições de trabalho?
A
iniciativa da deputada Erika Hilton é importante, mas apenas mudar a
Constituição será insuficiente. Isso porque a CLT foi alterada
significativamente nos últimos anos, permitindo uma intensificação da jornada.
É
necessário rever esses pontos na legislação para garantir que a redução da
jornada resulte em menos tempo de trabalho e mais tempo para outras atividades.
Além disso, a redução da jornada deve ser acompanhada pela manutenção dos
salários. Qualquer redução proporcional de salário penalizará os trabalhadores.
Fonte:
A Terra é Redonda/The Intercept
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