A agonia
de um tempo histórico
A
vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA parece simbolizar a agonia de todo
um tempo histórico. Como há tempos não se via, dois presidentes
norte-americanos, ele mesmo incluído, não conseguiram faturar a reeleição,
quase um trâmite em momentos onde os arranjos político-institucionais
democráticos conseguiam operar com maior estabilidade e indicadores de
satisfação popular.
Sua
vitória revela um fiasco brutal do Partido Democrata, supostamente mais
progressista e inclusivo em sua governança. O mal estar da nossa civilização é
realidade incontornável, que não pode ser estancada por governos de direita ou
“menos de direita”, subjugados a lógica financista de um capital que consagrou
a supremacia rentista por sobre a própria esfera da produção.
Essa
chave da atual economia política é imprescindível para se compreender a
ineficiência de governos de um e outro perfil, a ponto de uma direita
reacionária que falsifica descaradamente as razões da crise histórica conseguir
se vender como “antissistema”, quando não passa de uma âncora que entra no jogo
para fixar de vez as bases deste sistema.
Os
“consensos” de mercado fizeram das democracias liberais representativas meros
balcões de negócios dos grandes capitalistas que, em sua fase
rentístico-financeira, operam cada vez mais o Estado por dentro. Isso no Brasil
fica claro com a falsa autonomia do Banco Central e o avanço de um pacote
caricato de privatizações que incluem a gestão de semáforos ou de uma escola
pública de uma grande cidade.
Vale
tudo pra assaltar o cofre público. Como define Élida Graziano, a oligarquia
entrou numa fase de “extrativismo no Estado”, isto é, cava qualquer buraco na
administração pública a fim de tomar para si funções de Estado, que se
autoterceiriza e remunera grupos econômicos quaisquer para operar suas
atribuições.
Em
São Paulo, não há limites para tal embocadura pseudo-administrativa. Agora, as
escolas públicas podem ser gerenciadas por uma gestora de capital agrário do
Mato Grosso e são um ativo negociado em bolsa. Em troca, os negociantes da
esfera pública recebem generosos financiamentos de campanhas eleitorais.
Velhíssimo toma lá dá cá jamais estancado pela reforma eleitoral que proibiu o
financiamento empresarial de campanha.
Amplia-se
a uma escala exponencial a gestão neoliberal da vida. E como escancarou um
vídeo de um clássico “yuppie” da Faria Lima, com tom assustadoramente raivoso
direcionado a trabalhadores comuns de equipamentos públicos há décadas
subfinanciados, não há o menor pudor em disfarçar uma boa intenção.
Antes,
alegavam que havia interesse em melhorar um determinado serviço e torná-lo mais
eficiente. Agora, não há sequer essa máscara e o deboche é abertamente encenado
em marteladas do governador cercado de negociantes, enquanto uma polícia
politizada por um oficial fascista que faz a limpa em sua hierarquia interna
solta os cachorros para cima dos corpos que terão sua rotina de trabalho
diretamente afetada pelas PPPs.
Ainda
no Brasil, as eleições municipais também registram um avanço dessa
oligarquização das democracias. O modelo de parlamentarismo não assumido
instalado pelo experimento plutocrático de Eduardo Cunha e Michel Temer segue a
frutificar. Afinal, para emendas parlamentares não tem essa de austeridade.
E o
dinheiro que deveria ampliar e perenizar políticas de bem estar social se torna
manancial de neoclientelismo e neocoronelismo, a jorrar de mãos fisiológicas
que amarram a cena política das cidades brasileiras, com benefício endereçado a
grupos econômicos dominantes e seus melhores despachantes locais. Como se vê, o
freio ao financiamento privado de campanhas já foi burlado.
O
governo Lula é ponto fora da curva no meio deste processo linear de afastamento
dos governos (e seus orçamentos) das demandas reais da população e dos próprios
pactos constitucionais. Não à toa, mal acabou a eleição municipal e, diante dos
resultados favoráveis aos velhos donos do Brasil, inicia-se um cerco à metade
final de seu mandato. Que nesta segunda-feira o jornal Folha de S. Paulo tenha
permitido a Jair Bolsonaro escrever um artigo intitulado “Aceitem a
democracia”, com toda a desfaçatez que deus concedeu ao maior criminoso
político da história do país, é confissão definitiva de que a oligarquia
brasileira rompeu com qualquer noção trivial de democracia.
Dessa
forma, é interessante notar que o impacto da eleição de Donald Trump na mídia
brasileira e seu falso cosmopolitismo pareceu bem menor do que em 2016. O
chamado liberalismo se adapta tranquilamente à fascistização do mundo, como
deixa claro o massacre de Israel em Gaza, abordado com toda a má fé possível
pelos grupos conservadores. Vale tudo para manter a estrutura dos privilégios
socioeconômicos de elites que herdaram o mundo fundado no colonialismo e na
escravidão.
• Nossa elite
é o Partido Republicano
Sempre
foi paradoxal o alinhamento da mídia fanática pela doutrina neoliberal ao
Partido Democrata, responsável histórico pelas políticas de bem estar social
que criaram as condições para a chamada Era de Ouro do pós-guerra. Por aqui,
seu programa sempre foi semelhante ao do Partido Republicano. A guerra pelo
orçamento de 2025 e sua agenda que visa destruir de vez qualquer Estado social
são exatamente o que Donald Trump faria se fosse presidente do Brasil.
De
modo que o artigo de Jair Bolsonaro na Folha de S. Paulo, e o grito surdo de
anistia que toda a mídia comercial já concedeu aos numerosos crimes de seu
governo – a começar pelo genocídio da pandemia, que completa três anos sem
indiciamentos de uma covarde e sabotadora Advocacia Geral da União –,
corroboram a tese de que a elite brasileira está em franco processo de
elaboração de uma ordem neoliberal autoritária com fachada democrática.
Um
governo Temer permanente é o grande sonho. Uma ordem profundamente antissocial
e antiambiental, simbolizada na confluência de um modelo agrário-exportador
ecocida com o rentismo, cujos lucros são ampliados de forma artificial pelas
gestoras de capital, a partir de uma política de juros que faz do serviço da
dívida pública e das aplicações financeiras sem contrapartida social e
produtiva um fim em si mesmo. É o que explica a defesa destes setores de taxas
de juros indecentes, que deprimem qualquer desenvolvimento econômico na base da
pirâmide, às quais o empresariado dos ramos produtivos acaba por se submeter,
tanto por tibieza ideológica como também por ter sua poupança ali depositada.
“Não
tem dinheiro pra empresinha”, como diria Paulo Guedes, e só resta à economia
real andar de lado, sem perspectivas reais de redenção, submissa à lógica
monopolista de setores cuja manutenção de taxas de lucro rapidamente consome
qualquer aumento do salário mínimo, investimento público em áreas sociais e
índices de crescimento que não têm como superar os 2 ou 3%, exceto por meio de
uma intensificação da superexploração dos recursos humanos e naturais.
Assim,
resta ao brasileiro médio jornadas extenuantes de trabalho, complementadas pela
busca de renda complementar em atividades aleatórias, desde as ilícitas –
afinal, a economia do crime é potencializada pela financeirização – até as
insanidades simbolizadas em bets e jogos de azar que se tornaram vício
coletivo. O assassinato de empresário que deveria estar escoltado pela PM de
Tarcísio e Derrite no Aeroporto de Guarulhos simboliza o avanço do crime
organizado muito além dos velhos varejos de drogas em quebradas insalubres da
cidade grande.
Falando
nisso, curioso notar como o secretário de segurança que deflagrou a Operação
Verão sob alegação de “sufocar as fontes financeiras do crime organizado” passa
ao largo de qualquer crítica da mídia que agora topa publicar “colunas” do
maior delinquente político da história do país. Enquanto Ryans são assassinados
nos bairros periféricos, as fontes financeiras do crime organizado se mostram
mais robustas do que nunca. E o governador que inventou uma orientação de voto
do PCC em Guilherme Boulos tampouco é incomodado.
Com
Donald Trump no poder da potência central, parece fechar-se um cerco. Liberais
já não conseguem simular oposição ao político de perfil neofascista. Pelo
simples fato de que no final das contas defendem o mesmo modelo de gestão da
riqueza (que, nunca é demais lembrar, é socialmente produzida). Para seguir em
sua espoliação insaciável, o negacionismo científico será aliado, pois não é
mais possível respeitar normas ambientais, pactos de preservação, redução de
emissões e objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU.
• O
liberalismo se entrega à barbárie
“Make
America Great Again é um movimento de iconoclastia contra o tipo de
internacionalistas benignos que ocuparam a Casa Branca por 70 anos. Esta
semana, a maioria dos eleitores o abraçou de olhos abertos. Nossa esperança é
que o Sr. Trump evite essas armadilhas, e reconhecemos que em seu primeiro
mandato ele fez isso”, analisou o primeiro editorial do jornal The Economist
após sua vitória sobre Kamala Harris.
O
editorial é revelador da incapacidade de lidar com seu fenômeno entre os
círculos da elite econômica. Chama-se de benigna uma hegemonia imperialista que
entupiu o mundo de guerras e ditaduras e nos leva ao colapso civilizatório e
sobretudo ambiental. Além disso, coloca-se num pacote de “70 anos” um processo
histórico que claramente se divide em duas partes: a era da expansão das
democracias liberais a partir da agenda de investimentos públicos que firmaram
estados de bem estar social no pós-guerra e a “revolução neoliberal” dos anos
70-80, que passou a agir na direção inversa e solapou as bases deste mesmo bem
estar.
E
no final das contas o editorial do The Economist dá um voto de confiança ao
chamado “Deep state”, isto é, às razões de Estado, fortes o bastante para
conter particularidades de um governante de turno e capazes de manter a lógica
do projeto capitalista em seu significado mais profundo. A exata fórmula que
enlouquece as bases sociais eleitoras do “fascismo antissistema”.
Uns
e outros jogam no mesmo time e o cerco se fecha. O avanço oligárquico por sobre
os sistemas políticos e seus mecanismos de distribuição de renda e criação de
políticas efetivadoras da democracia no chão social veio para ficar. Os
governos progressistas dispõem de migalhas cada vez mais inexpressivas para
mitigar as brutais desigualdades, relações de submissão e exploração social,
trabalhista e ecológica.
Donald
Trump levará as sociedades ao ápice de suas polarizações. Todas as classes
dominantes da zona de influência dos EUA serão arrastadas pela correnteza de
seu movimento político neoliberal autoritário. Afinal, sua agenda visa cortar
impostos para os ultrarricos, avançar nas privatizações, a exemplo do já
mercantil modelo de saúde norte-americano, e desregulações de setores
econômicos oligopolizados.
Suas
promessas de protecionismo e reindustrialização local são irrealizáveis do
ponto de vista produtivo, de modo que qualquer política de contentamento do
público interno deverá se lastrear no aumento da dívida pública do país e
provavelmente em quebras do teto orçamentário, esta longa tradição da “maior
democracia do mundo” que seus admiradores brasileiros esquecem de informar ao
nosso público e só pode se manter minimamente estável mediante manutenção da
globalização dolarizada, por sua vez inibidora da prometida retomada da
indústria nacional.
Com
a ascensão da China e sua influência econômica avassaladora, com novos fluxos
de negócios e relações de troca, tal globalização dolarizada está sob ameaça e
sua manutenção exigiria mecanismos de coerção desestabilizadores e belicistas.
No
restante do mundo ocidental onde este modelo político representativo foi
aplicado, o quadro depressivo é o mesmo. Austeridades infinitas para o povo,
que se afundará em jornadas de trabalho do século XIX, concessões
multimilionárias às oligarquias locais e suas representações financistas,
privatização do que resta de Estado e experimentos autoritários na gestão da
insatisfação social.
Que
se perceba que tais polarizações são mais velhas do que parecem. Trata-se da
versão contemporânea da disputa entre capital e trabalho. A boa e velha luta de
classes. Que no momento só está sendo jogada por um dos lados. Quem viver,
verá.
Fonte:
Por Gabriel Brito, em A Terra é Redonda
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