Eventual
prisão de Bolsonaro não depende de indiciamento, mas das evidências, diz
professor de Direito
A
Polícia Federal (PF) indiciou Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas por
suspeita de uma tentativa de golpe de Estado para manter o ex-presidente no
poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
Embora
com grande repercussão, o indiciamento é um ato simbólico e o processo deve
andar com cautela, diz o advogado João Pedro Pádua, professor de direito da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Bolsonaro
pode ser preso, mas não por ser indiciado. Sua prisão dependeria das evidências
coletadas ao longo de dois anos de investigações, não do ato de indiciamento em
si", afirma.
Entre
os indiciados também estão o general Walter Braga Netto, que foi candidato a
vice-presidente na chapa derrotada com Bolsonaro em 2022, e o general Augusto
Heleno, que chefiou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante o
governo de Bolsonaro.
Pádua
também comenta as críticas ao inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) e o ministro Alexandre de Moraes, que supervisiona o inquérito, apesar de
ser uma potencial vítima.
Para
eles, um magistrado diretamente afetado por possíveis crimes também atue como
supervisor do inquérito não é o ideal.
"Não
há elementos para afirmar que o ministro fez alguma coisa para encaminhar
investigações. Mas o argumento da parcialidade é ponderável", argumenta.
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Leia abaixo a entrevista.
·
Qual a diferença entre
abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de
Estado, crimes pelos quais Bolsonaro foi indiciado?
João Pedro Pádua - A primeira
impressão que tenho e que outras pessoas da área têm é que esses crimes são
excludentes entre si — ou é um, ou outro.
Os
dois são, na verdade, criminalizações de tentativas. O que é, de certa forma,
óbvio. Isso até foi uma brincadeira do ministro Alexandre de Moraes em
plenário, que se o crime tentado fosse consumado, não estaríamos punindo.
No
primeiro, a ideia é tentar acabar com as instituições do estado democrático de
direito. Não precisa ser necessariamente tomar o poder. Por exemplo, o fato de
tentar destituir um tribunal, como o Tribunal Superior Eleitoral, não seria
necessariamente uma tentativa de golpe de Estado. Não está tomando o poder para
si, mas impede o funcionamento de uma instituição essencial para o Estado
Democrático de Direito.
Já
o golpe de Estado é direcionado ao governo. O artigo 359 M do Código Penal, um
crime novo, fala em tentar depor o governo legitimamente constituído.
Algumas
instituições, notadamente o Poder Judiciário, não compõem o governo. Quando
criada, a lei considerava golpes de estado que infelizmente foram relativamente
comuns na história do Brasil — tentar especificamente derrubar o Poder
Executivo, a chefia do Poder Executivo ou, de alguma maneira, desestabilizar o
governo.
Então
o golpe de Estado tem mais a ver com destituir governo, como a lei fala;
enquanto a tentativa de abolição violenta o estado democrático pode ser
qualquer instituição que seja essencial ao regime democrático.
·
Qual diferença dessa
tipificação nesta situação específica?
Pádua - Quando
alguém tem uma conduta que pode ser enquadrada em mais de um tipo penal, existe
um conjunto de critérios pelos quais decidimos qual dos crimes é o aplicável.
Um
exemplo é se pratico um crime patrimonial com violência contra uma pessoa e
subtraio patrimônio de alguém mediante ao uso de arma, estaria praticando furto
e roubo. Mas respondo por um só. Qual é o critério que entra em jogo? Chamamos
de critério da especialidade. O roubo tem todos os elementos que têm no furto e
mais a violência.
Nesta
investigação, o critério provavelmente utilizado é o da consunção, que seria
qual é o objetivo final dos agentes. Eles querem de fato dar um golpe de Estado
ou querem abolir o estado democrático de direito? O que determina qual que eles
querem no final é o que prevalece.
Eu
diria que, diante das evidências que foram aparecendo, principalmente pela
mídia, e assumindo que tudo que a Polícia Federal está dizendo é verdadeiro, o
caso seria enquadrado como crime de golpe de Estado, inclusive porque a pena é
maior.
·
Qual será o impacto
deste indiciamento sobre Bolsonaro?
Pádua - O
indiciamento no direito brasileiro é algo muito menos relevante do que
costumamos pensar. Provavelmente damos tanta importância porque, nos Estados
Unidos, quando alguém é acusado formalmente de um crime, se usa o ato jurídico
do indictment.
Mas
o indiciamento do direito brasileiro é simplesmente um ato pelo qual a polícia
ou quem está investigando o fato diz que, na visão da deles, esse conjunto de
pessoas são os autores do provável crime.
Na
prática, ele tem um efeito muito pequeno. As pessoas podem ser acusadas
criminalmente sem ser indiciadas, podem ser indiciadas e não serem acusadas
criminalmente. O indiciamento não determina praticamente nada. É um ato muito
mais simbólico.
·
O ex-presidente Jair
Bolsonaro pode ser preso após o indiciamento?
Pádua - Pode, mas
não porque ele foi indiciado. Ele poderia há muito tempo. Se ele for preso, não
será por conta do indiciamento em si, mas pelas evidências que acompanham esse
indiciamento que foram coletadas ao longo de dois anos de investigação.
O
indiciamento é o de menos. É pouco estratégico que a PF solte um relatório com
a lista de indiciados de hoje e o ex-presidente Jair Bolsonaro seja preso
amanhã. Já houve prisões antes da divulgação desse relatório. O normal é
realizar o ato coercitivo, a prisão, a busca, o interrogatório, e depois
divulgar ao público o porquê.
A
prisão do ex-presidente Lula é um exemplo do porquê. Como não foi uma prisão
preventiva, mas decorrente de uma condenação, houve um mar de gente nas ruas.
São coisas que não se anuncia.
Provavelmente
apoiadores do presidente Jair Bolsonaro estão pensando em que atos eles vão
fazer para protegê-lo. Por isso, as operações primeiro fazem e depois
justificam para evitar essa comoção popular.
·
Há críticas ao tamanho
e duração deste inquérito, que abarca muitas questões, desde o 8 de janeiro ao
atentado a bomba da última semana. Na sua visão, elas fazem sentido?
Pádua - A grande
questão a ser enfrentada é a conexão entre, de um lado, os atos que parecem bem
documentados de preparação de um possível conjunto de atos que constituiria um
golpe de Estado por parte desse grupo em volta do ex-presidente Jair Bolsonaro;
e, de outro lado, a ação violenta no dia 8 de janeiro 2023.
Essa
conexão é mais difícil de estabelecer naturalmente. A falta desse elo me parece
insuficiente para estabelecer uma conexão. Como nossa ordem constitucional
presume inocência, é tarefa da acusação demonstrar que não houve acaso — e não
tarefa da defesa tentar explicar que um acaso parece pouco provável.
·
A defesa do Bolsonaro
pontua a questão de Alexandre de Moraes ser vítima e juiz nesta investigação.
Você enxerga isso como um problema?
Pádua - A crítica
de que o ministro Alexandre Moraes é o presidente desse inquérito, do ponto de
vista institucional, me parece pertinente. Mesmo que ele tenha feito atos
perfeitamente legítimos do ponto de vista de uma autoridade judicial
supervisionando esse inquérito.
O
fato de o ministro Alexandre de Moraes não apenas ser um membro de um tribunal
que seria alvo dos potenciais golpistas, mas, como pessoa física, seria um alvo
direto, coloca em dificuldade a posição dele para supervisionar esse inquérito
de forma imparcial.
Do
ponto de institucional, não é bom para o sistema judiciário que uma pessoa que
é diretamente vítima das ações que estão sendo investigadas também
supervisionar as investigações.
O
Supremo Tribunal Federal já indicou que não concorda com a minha avaliação. Mas
a Corte provavelmente vai se debruçar novamente sobre essa questão quando a
denúncia for oferecida pelo Ministério Público, aí sim uma acusação formal,
equivalente ao indictment americano. Ela deve ocorrer no
próximo ano.
Não
há elementos para afirmar que o ministro fez alguma coisa para encaminhar
investigações. Mas o argumento da parcialidade é ponderável.
·
Quais os riscos para o
Supremo?
Pádua - Para a
investigação em si e para o próprio Supremo, não há risco nenhum.
O
STF é o tribunal mais alto da federação e o que aconteceu com a Lava Jato
dificilmente se repetirá com a Corte. O que havia de peculiar na Lava Jato era
que as decisões tomadas em primeira instância eram raramente revistas, mesmo
com três possibilidades de revisão — segunda instância, STJ e STF.
No
caso do Supremo, não há possibilidade de revisão. Seus atos são finais. Do
ponto de vista do processo judicial, as oportunidades de a defesa explorar
eventuais falhas na condução da investigação ou do processo são muito pequenas.
Exceto
se o próprio Supremo passar por uma mudança — seja de composição, de correlação
de forças ou de percepção — e comece a mudar de posição. Por enquanto, o
tribunal parece bastante adepto à investigação, validando sistematicamente os
atos relacionados a ela, com pouquíssimas dissidências.
Minha
preocupação é que, ao abdicar um pouco de seu papel institucional em prol de
defender posições moralmente boas, como a defesa da democracia ou o Estado de
Direito, o Supremo possa, com o tempo, contribuir para um enfraquecimento das
instituições.
No
Brasil, essas já são instituições historicamente frágeis, com ministros do STF
cassados em um passado não tão distante. Por isso, a condução institucional é
algo a ser observado com atenção.
·
As revelações desta
semana colocaram o ex-ministro da Casa Civil Braga Netto como personagem
central na articulação de um plano de golpe de Estado. Por que as investigações
não levaram à prisão dele, como a de outras seis pessoas?
Pádua - Prisão
preventiva no direito brasileiro é um problema. A regulação legal da prisão
preventiva supõe um modelo que raramente se observa empiricamente.
É
difícil explicar quais são os critérios que de fato norteiam prisões
preventivas específicas porque quase todas, se a lei fosse levada à risca, não
se justificariam.
A
prisão preventiva no direito brasileiro, devido à presunção de inocência e
pelas limitações legais para sua aplicação, só poderia acontecer quando alguém
interferisse na descoberta de provas e no funcionamento do processo; ou se
alguém desse indicação de fuga.
A
ideia é que essa prisão não inicie uma punição, porque o investigado ainda tem
presunção de inocência. Neste caso, o processo ainda nem começou na fase
judicial, ainda estamos investigação preliminar.
No
entanto, grande parte das prisões preventivas, especialmente em investigações
importantes, são antecipações de pena.
O
judiciário acredita que está claro que um determinado grupo de pessoas praticou
um crime grave. E os critérios para decretar a prisão preventiva acabam sendo
difíceis de explicar.
Além
disso, em organizações criminosas, paradoxalmente, quem é mais importante fica
longe da execução do fato. Normalmente, é mais difícil conseguir prova contra
essas pessoas.
Já
vimos isso na Operação Lava Jato, Mensalão e em outras grandes investigações.
Essa situação pode justificar a discrepância entre a importância dos
personagens no enredo acusatório e o fato delas terem ou não sido presas.
·
Outro ponto é a
delação do Mauro Cid, que pôde ser anulada. Quais são os problemas com essa
colaboração?
Pádua - Quando um
acusado faz um acordo de colaboração premiada, ele assume — em troca dos
benefícios pena reduzida, melhores formas de cumprir pena ou às vezes revogação
das prisões preventivas e outras medidas cautelares — o dever de comparecer
sempre que for chamado, falar sempre a verdade e apresentar elementos que
auxiliem a investigação.
Não
é só algo passivo, ele tem que participar. É diferente de uma testemunha, que
tem obrigação de dizer verdade e responder a todas as perguntas, mas não tem
obrigação de colaborar. O delator é um parceiro da acusação.
Sob
esse ponto de vista, faz sentido que o colaborador não possa assumir uma
postura belicosa e de conflito com quem ele está colaborando. No entanto, o
colaborador não tem obrigação de dizer o que quem está tomando o depoimento
quer ouvir.
Acende
uma luz amarela quando alguém diz que o colaborador está ameaçado por omissão.
Omissão significa que ele não fez o que ele tinha que fazer.
Se
o que ele não fez era pedir um extrato de uma conta no exterior e ele não
pediu, tudo bem. Mas dizer que ele não falou algo que os investigadores sabiam
que era verdade é complicado. O colaborador não é obrigado a dizer o que a
acusação quer ouvir.
Este,
inclusive, foi um dos grandes problemas apontados nas colaborações da Lava Jato
e que tem mobilizado, entre outros motivos, a anulação de várias das provas e
das colaborações feitas naquela época.
Não
sei se é esse o caso do Mauro Cid. Mas a colaboração dele já teve problemas o
suficiente para levantar uma luz amarela. O motivo pelo qual ele teve a sua
colaboração ameaçada, primeiramente, e chegou a ser preso foi porque ele mandou
um áudio em que dizia que a Polícia Federal estava forçando-o a dizer alguma
coisa.
A
colaboração é sempre uma coisa muito delicada. Estamos num terreno ético ruim e
em um terreno jurídico muito perigoso.
·
Os fatos dessa semana
— o plano de matar o Lula e o indiciamento do Bolsonaro — ocorrem num momento
em que se tenta aprovar uma anistia no Congresso. Qual é o impacto desses
acontecimentos nessa tentativa?
Pádua - Do ponto
de vista jurídico, uma coisa não depende da outra. A anistia é um ato do
Congresso Nacional, uma lei. É importante esclarecer que a anistia não é um
perdão individual, como o indulto, que é competência do presidente da
República.
O
que a anistia faz é descriminalizar um conjunto de fatos. A lei de anistia mais
famosa no Brasil, por exemplo, é a dos eventos da ditadura militar de 1964, que
promoveu anistia ampla, geral e irrestrita para atos cometidos tanto contra
quanto pelo regime.
Agora,
o clima político obviamente fica muito ruim para aprovar qualquer anistia.
Ainda há outra questão: como será redigida a lei? Como ela trata de um conjunto
de ações, é essencial definir quais eventos específicos serão incluídos ou
excluídos. Por exemplo, poderia haver uma anistia que cubra apenas os eventos
de 8 de janeiro, mas não o planejamento ou atos anteriores e posteriores.
Pelo
que tenho ouvido, essas movimentações recentes, como o plano contra Lula e o
indiciamento de Bolsonaro, podem ter dificultado ainda mais as articulações em torno
da anistia.
·
Quais são os próximos
passos do inquérito?
Pádua - O
inquérito, pelo que entendi, já está praticamente encerrado. Agora, os próximos
passos ficam a cargo do Ministério Público Federal, que receberá os atos do
inquérito para elaborar a denúncia formal — o documento pelo qual o Estado,
representado pelo MPF, acusa um conjunto de pessoas por determinados crimes.
A
previsão, segundo li na imprensa especializada, é que a denúncia seja
apresentada antes do Carnaval do próximo ano, dada a complexidade dos fatos.
Durante
a elaboração da denúncia, é comum surgir a necessidade de verificar ou
complementar algo — um depoimento esquecido, uma nova análise de transcrições.
Por isso, a apresentação pode levar um tempo maior.
Além
disso, ninguém quer arriscar apresentar uma denúncia mal formulada, o que
abriria brechas para a defesa explorar falhas ou inconsistências.
Minha
aposta é que, após esta semana intensa, teremos um período de relativa calmaria
enquanto o MPF trabalha na denúncia. Quando ela for apresentada, virá
provavelmente acompanhada de pedidos de prisão, o que gerará uma nova onda de
repercussão.
Fonte:
BBC News Brasil
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