terça-feira, 26 de novembro de 2024

José Luís Fiori: Donald Trump e o sistema mundial

A maioria dos analistas está de acordo que o fracasso importante na vitória de Donald Trump, nas eleições do internacional do governo de Joe Biden teve um papel dia 5 de novembro de 2024. Com destaque para a humilhante retirada americana do Afeganistão; para o fracasso da OTAN na Guerra da Ucrânia; ou finalmente, para a ambiguidade dos EUA frente ao genocídio israelense da Faixa de Gaza, dividido entre seus apelos humanitários, e o fornecimento direto das armas, do dinheiro e das informações utilizadas pelo governo de Israel no bombardeio da população palestina.

Neste momento ainda não se pode saber se a reeleição de Donald Trump será apenas uma rodada a mais da “gangorra” política americana. Desta vez, entretanto, Donald Trump não pode reeleger-se e terá um mandato de apenas quatro anos, mas ao mesmo tempo contará com uma maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, e disporá de uma equipe de auxiliares homogênea. O que lhe permitirá, em princípio, levar à frente, de forma rápida e imediata, a sua “agenda nacional”. Mas na área internacional, entretanto, o horizonte é menos claro.

Neste campo a consigna básica de Donald Trump foi sempre a mesma: “a paz através da força”, e não pela guerra. Mas, além disso, o projeto internacional de Donald Trump abre mão da “excepcionalidade moral” dos EUA, e adota o “interesse nacional americano” como a única referência de todas as suas escolhas, decisões e alianças que poderão variar através do tempo. Seguindo-se daí o ataque de Donald Trump contra todas as instituições multilaterais, e contra todos os acordos e regimes comerciais, ou associados com a “questão climática” e a “transição energética”.

As “políticas internas” de Donald Trump envolvem decisões soberanas e autônomas, e poderão ser tomadas sem maiores consultas a outros países e governos. Mas no caso da agenda internacional do novo governo, o problema é muito mais complexo, porque envolve acordos passados dos EUA, e se enfrenta com a vontade soberana de outros países, e de outras Grandes Potencias, como no caso da China, do Irã, da Rússia, ou mesmo dos seus aliados da OTAN.

Com relação à China, é muito provável que Donald Trump consiga negociar acordos comerciais e tecnológicos pontuais. Mas a competição e o atrito entre os dois países deve se manter e aumentar de intensidade nos próximos anos. Até porque a China já foi definida pelos estrategos americanos, já faz algum tempo, como principal competidor e a principal ameaça aos Estados Unidos, no Século XXI. Nesse campo se pode falar inclusive de um consenso bipartidário, entre democratas e republicanos, com diferenças apenas de gradação e intensidade. De fato, o governo de Joe Biden manteve a mesma política protecionista contra China do primeiro governo de Donald Trump.

Com a diferença que agora a China se encontra melhor preparada e não será surpreendida como aconteceu no primeiro governo Trump. Além disto, nestes anos recentes a China aprofundou sua relação econômica com seus vizinhos asiáticos, e com os países africanos e latino-americanos. E desde o início da Guerra da Ucrânia, em 2021, os chineses estreitaram seus laços econômicos e sua aliança estratégica com a Rússia, fechando a porta para qualquer tentativa de repetir a estratégia de Henry Kissinger, do século passado, só que agora invertendo os papéis da China e da Rússia.

Por tudo isto, o mais provável durante o segundo mandato de Donald Trump, é que as relações entre as duas potências sigam regidas pela “armadilha de Tucídides”, com uma aceleração sem precedentes da sua competição tecnológica e militar, com a universalização de sua “guerra comercial”, incluindo-se a possibilidade anunciada por Donald Trump, de punição dos países que não utilizem o dólar em suas transações internacionais, em particular no caso do grupo do BRICS.

No caso do Oriente Médio, também, são muito pequenas as diferenças entre as posições dos democratas e dos republicanos. Donald Trump deve inclusive aumentar o apoio do governo norte-americano à Israel e às suas guerras em Gaza e no Líbano. E deve aumentar a política de “pressão máxima” contra o Irã. Mas neste seu segundo mandato Donald Trump deve encontrar no Oriente Médio uma realidade militar e política muito diferente da que existia no seu primeiro mandato, sobretudo depois do sucesso dos dois ataques militares diretos do Irã contra a território israelense, da ruptura radical da Turquia com Israel, e da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita, promovida pela China e abençoada pela Rússia.

Por isto qualquer acordo de cessar-fogo imediato que possa ser logrado não significará que Israel e o Irã suspendam a sua disputa de longo prazo, que é do tipo “soma zero”. A hipótese dos “dois estados” parece completamente afastada e a resistência dos palestinos deve prosseguir, assim como a ameaça permanente de uma guerra entre os persas e os judeus com a possibilidade de transformar-se num conflito generalizada dentro do Oriente Médio.

Já na Europa o panorama é completamente diferente, e existe uma oposição radical entre o posicionamento dos democratas e o dos republicanos. Neste caso, a simples vitória eleitoral de Donald Trump, junto com a implosão do governo alemão de Olaf Scholz, provocaram de imediato, um profundo abalo e uma primeira divisão dentro do bloco belicista liderado pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e por sua nova Chefe de Política Externa, Kaja Kallas, e apoiado pelo governo Biden, pela francês Emmanuel Macron, e pelo governo do primeiro-ministro inglês, Keir Stramer.

Ainda não está excluída a hipótese de que esta “coalisão russofóbica” se lance num ataque suicida contra a Rússia, antes da posse de Donald Trump. Mas o mais provável agora é que se iniciem de imediato as negociações de paz, com o reconhecimento implícito por parte dos EUA da vitória militar russa. Mas também aqui não há que ter ilusões. Depois de sua vitória militar e econômica os russos não aceitarão mais o mundo unipolar tutelado pelos EUA. E o mais provável é que os EUA e a Inglaterra, junto com seus aliados europeus sigam se armando contra a Rússia, o grande “inimigo externo” que serviu como uma espécie de “princípio organizador estratégico” das potências ocidentais, e em particular da Inglaterra durante todo o Século XIX e dos EUA, no Século XX.

Se este “inimigo necessário” desaparecesse os EUA e a Inglaterra teriam que sucatear parte importante de sua infraestrutura militar global, construída com o objetivo de conter o “expansionismo russo”, envolvendo um investimento gigantesco em armas e em todo tipo de recursos materiais e humanos, civis, militares e paramilitares. E a OTAN, em particular, perderia sua razão de ser levando de roldão a estrutura de poder atual da União Europeia.

Por isto, se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja também o ponto de partida de uma nova corrida armamentista, cada vez mais intensa, dentro da própria Europa, e obviamente, entre os EUA e a Rússia, com repercussões em cadeia, em todas as direções e latitudes do sistema mundial.

Por fim, os países periféricos da América Latina e da África não têm a menor importância dentro do projeto internacional de Donald Trump, que supõe sua submissão pura e simples ao poderia monetário e econômico dos EUA. E neste caso, é muito provável que se repita o que passou na década de 80 do século passado, quando a periferia capitalista foi submetida e/ou derrotada pela política econômica norte-americana do “dólar forte” e do “keynesianismo militar’ de Ronald Reagan, sendo depois “resgatadas” pelas políticas e reformas neoliberais” impostas pelos “programas de ajuste” do FMI.

Só que agora o enquadramento e submissão dos Estados e das economias endividadas da América Latina e África deverá acontecer como derivação ou consequência indireta do novo “protecionismo econômico” anunciado por Donald Trump. Seu efeito imediato deverá ser o aumento da inflação e dos juros dentro dos EUA, e este aumento dos juros deverá provocar uma desvalorização generalizada das demais moedas nacionais, com aumento da dívida externa dos países endividados em dólares, junto com o aumento das suas taxas de inflação, paralisia fiscal dos seus estados e estagnação de suas economias. E no fim, a volta e a submissão provável ao FMI, como no caso patético da Argentina de. Javier Milei.

Resumindo, portanto, o que se deve esperar no campo internacional para os próximos quatro anos da administração Trump: os Estados Unidos abdicam do projeto de universalização messiânica dos seus valores nacionais, e deixam de ser os “Cavaleiros Templários” de uma “ordem mundial regida por regras”. E se propõem atuar dentro do Sistema Mundial a partir exclusivamente dos seus “interesses nacionais” utilizando-se da sua força bruta, financeira, tecnológica e militar para impor sua vontade onde considere que seja necessário. Com um apelo, só em última instância, ao recurso da guerra.

 

¨      Marco Rubio criará dificuldades para o Itamaraty e desestabilizará governo brasileiro, diz analista

Nomeação de Marco Rubio para a chefia da política externa norte-americana sob Trump acende alarmes na América Latina. Conhecido por uma política intervencionista, Rubio não fará as pazes com governos progressistas e poderá agir para desestabilizar o governo brasileiro, alerta especialista ouvido pela Sputnik Brasil.

O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, revelou traços da política externa de seu segundo mandato ao indicar o senador pelo estado da Flórida, Marco Rubio, para o posto de secretário de Estado. Caso confirmado para o cargo, Rubio será o primeiro norte-americano de ascendência latina a ocupar o posto equivalente a ministro das Relações Exteriores no Brasil.

"Marco é um líder altamente respeitado e uma voz muito poderosa em prol da liberdade", escreveu o presidente eleito dos EUA, Donald Trump. "Ele será um forte defensor de nossa nação, um verdadeiro amigo de nossos aliados e um guerreiro destemido que nunca recuará diante de nossos adversários."

Em resposta, Rubio se disse "honrado" e prometeu "alcançar a paz através da força, e colocar os interesses dos americanos e dos EUA sempre em primeiro lugar".

A indicação de Rubio foi um balde de água fria para quem esperava inovações na política externa trumpista. Como membro das comissões de Relações Exteriores e de Inteligência do Senado, Marco Rubio defendeu temas clássicos da agenda neoconservadora norte-americana, garantindo apoio incondicional a Israel e antagonizando com China, Rússia e Irã.

Filho de refugiados cubanos e representante de um Estado com forte influência hispânica, Rubio poderá reforçar a presença de Washington na América Latina. Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, no entanto, não estão convencidos de que isso será positivo para o Brasil.

"Querendo ou não, a indicação de Marco Rubio é a mais convencional dentre as nomeações feitas por Trump até agora", disse a pesquisadora-colaboradora do IESP-UERJ, Monica Hirst, à Sputnik Brasil. "Rubio tem uma carreira política consolidada e certa legitimidade para assumir o cargo, já que lidava com temas de política externa no Senado norte-americano."

Segundo a especialista em relações Brasil-EUA Hirst, ainda que Rubio tenha posições distintas das de Trump, o seu perfil é de executor, e não formulador de políticas públicas.

"Caso Rubio queira permanecer no cargo, ele terá que se adaptar às posições do chefe do Executivo", notou Hirst. "A primeira administração Trump foi marcada por alta rotatividade, com o tempo médio de dois anos de permanência em cargos de alto nível."

Apesar de serem considerados rivais dentro do Partido Republicano, Trump e Rubio coordenam posições sobre assuntos latino-americanos já há algum tempo. De acordo com a Associated Press, Rubio aprovou indicações de embaixadores para a região durante o primeiro mandato de Trump e representou o presidente em visitas oficiais à região.

"É inevitável que a região ganhe algum peso [durante o mandato de Rubio], dadas as devidas proporções, afinal já faz muito tempo que a América Latina não é prioridade estratégica para os EUA", lembrou Hirst. "E Marco Rubio já nomeou seus alvos preferenciais: Cuba, Nicarágua e Venezuela."

Para a especialista, estar no centro das atenções da administração norte-americana não é necessariamente algo positivo. Hirst lembra a atenção dada ao México, "que está no topo da agenda em função do pânico da deportação massiva de imigrantes". No caso da Venezuela, a expectativa é de reforço da agenda de sanções econômicas e aumento da pressão sobre o governo de Nicolás Maduro.

"Em um contexto de tensão geopolítica, Marco Rubio e Donald Trump tentarão 'Fazer a América Latina Norte-Americana Novamente'", disse Hirst. "Não acredito que o esforço será bem-sucedido, mas a expectativa é essa."

O professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Vinícius Rodrigues Vieira, concorda, e alerta para tempos difíceis para as nações latino-americanas.

"Essa atenção será perigosa e a América Latina fica sujeita à instabilidade política", disse Vieira à Sputnik Brasil. "A América Latina será tratada como um parceiro subordinado não só aos EUA, mas também à extrema direita norte-americana, representada por Donald Trump."

Segundo o professor, o isolacionismo trumpista não significará menos intervenção norte-americana em países terceiros, mas sim ação unilateral, sem o aval de aliados ou formação de coalizões.

"Não há ali um isolacionismo, senão um recrudescimento do unilateralismo e das ações bilaterais, em detrimento do multilateralismo", explicou Vieira. "Será uma administração que encara os EUA como a nação escolhida, branca, cristã, que deve agir sem articulação com parceiros ou organizações internacionais para garantir a sua primazia no mundo."

<><> Jogo de espelhos

Após aproximação com a administração Biden, o governo Lula poderá ter dificuldade para estabelecer contatos produtivos com o novo presidente do Partido Republicano. Para Vieira, a recente declaração da primeira-dama Janja Silva sobre o aliado de Trump Elon Musk tampouco favorece a aproximação entre o Planalto e a Casa Branca.

"Ainda que o Itamaraty tente rever as diretrizes de sua política externa, não vai conseguir conquistar Trump", acredita Vieira. "Acredito que Rubio criará dificuldades para uma aproximação institucional com o Itamaraty e, ainda que mantenha as aparências, no subterrâneo haverá, não tenho dúvidas, tentativas de desestabilização do governo brasileiro, como já houve no passado."

O analista se lembra do apoio norte-americano ao golpe de 1964, que levou à queda do governo progressista de João Goulart e à instauração do regime militar. De acordo com Hirst, as relações entre Brasil e EUA sob Lula e Trump não necessariamente serão conflituosas, mas sim protocolar e distante: "Cada um poderá ficar no seu canto", resumiu a especialista.

"O governo brasileiro se manifestou pela opção democrata antes do tempo, e isso não foi bom. Trump é uma pessoa ressentida, e isso pode trazer alguma consequência negativa em termos de sanções em alguma área da nossa pauta comercial", disse Hirst.

Em seu primeiro mandato, Donald Trump impôs barreiras às exportações de aço brasileiro aos EUA, apesar do alinhamento ideológico que nutria com o então presidente brasileiro Jair Bolsonaro.

"De maneira inédita, as relações entre Brasil e EUA estão sendo determinadas por um espelhamento de suas políticas domésticas. A questão da defesa do Estado de Direito nos dois países está gerando um jogo de espelhos que não tínhamos antes", notou Monica Hirst.

Para ela, "a vitória de Trump e o resultado das eleições municipais brasileiras poderiam apontar para um novo ciclo de fortalecimento da direita no continente". No entanto, novas revelações sobre as intenções de apoiadores do ex-presidente Bolsonaro de consolidar um golpe de Estado no Brasil podem garantir novo impulso às forças progressistas, acredita a professora.

"Nesse contexto, o Brasil poderá ter força para continuar com o bonde da democracia nos trilhos até 2026", acredita Hirst. "Mas, infelizmente, não temos parceiros na América Latina para unirmos forças. Estamos com o regionalismo totalmente naufragado e uma região muito fragilizada. Já não somos nem uma região, mas uma mera vizinhança."

Apesar dos desafios, o Brasil tem autonomia suficiente para manter a condução de sua política externa, independente dos humores na Casa Branca. Para a professora Monica Hirst, o Brasil não deve reformar sua política externa para se adequar à agenda de Trump.

"O Brasil tem muitos temas de política externa para tocar. Tem muita gente no Ocidente e no Sul Global que quer trabalhar com o Brasil", disse Hirst. "Acabamos de ver isso no G20. Os EUA não têm essa centralidade toda."

No entanto, o Brasil sofrerá as consequências de uma política errática advinda da Casa Branca, que enfraquecerá as instituições internacionais e os mecanismos de governança global.

"Claro que o Brasil será afetado pelo enfraquecimento do multilateralismo. Claro que a crise humanitária da fronteira do México será dilaceradora. Mas o Brasil tem atributos de poder brando para atuar internacionalmente. Não somos uma colônia dos Estados Unidos", concluiu Monica Hirst.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Sputnik Brasil

 

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