A expansão pelo
Brasil dos traficantes que se veem como 'soldados de Jesus'
Quando policiais fluminenses
apreenderem tijolos de cocaína ou trouxinhas
de maconha em operações
contra o tráfico no Rio, podem encontrar
uma nova marca estampando esses produtos ilegais: a Estrela de Davi.
O símbolo religioso
não está ali em alusão à fé judaica, mas sim
refletindo a crença evangélica
de que o retorno de judeus a Israel resultará na segunda aparição de Jesus
Cristo.
A facção conhecida
por traficar drogas com essa nova roupagem é o Terceiro Comando Puro (TCP), um
dos grupos criminosos mais poderosos do Rio — que controla o tráfico no
Complexo de Israel e é notório tanto por desaparecimentos forçados quanto por
sua forte crença evangélica.
A expressão mais
visível da fé desse grupo criminoso é a Estrela de Davi azul neon instalada no
alto de uma caixa d'água em Parada de Lucas, a primeira de cinco comunidades da
Zona Norte da capital fluminense que foram progressivamente controladas pelo
grupo, e que passaram a compor, a partir de 2016, o chamado Complexo de Israel.
O complexo é
formado pelas comunidades Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e
Vigário Geral.
O território foi
tomado depois que um líder do TCP teve o que acreditou ser uma revelação
divina, de acordo com a teóloga e pastora Vivian Costa, autora do livro Traficantes
Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023).
Segundo Costa, os
traficantes no local se veem como "soldados de Jesus" e se
autodenominam Tropa de Aarão, referência ao mais velho irmão de Moisés.
Quem chega de trem
a Parada de Lucas vê a bandeira israelense logo na plataforma da estação, na
placa que saúda: "Seja bem-vindo ao Complexo de Israel."
Esse território
virou sinônimo do avanço da fé evangélica entre criminosos e das restrições que
impõem a fiéis de outras religiões, sobretudo as de matriz africana.
"Tanto as
manifestações no espaço público como no espaço privado foram proibidas de
existir nesses territórios, com muitas casas de umbanda e candomblé
destruídas e queimadas", afirma Costa.
Nesses locais, a
facção deixa sua assinatura e marca de domínio: "Jesus é dono do
lugar".
Entretanto, de
acordo com antropóloga Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF), esse modus operandi tem se espalhado pelo Brasil,
com ataques a terreiros de umbanda e candomblé replicados por traficantes em
favelas de outras metrópoles, como Fortaleza e Salvador — e não apenas em
territórios do TCP.
"Esse não é um
problema apenas do Rio. Virou um problema das grandes cidades", afirma
Miranda, que coordena o Ginga-UFF, grupo de pesquisa dedicado a conflitos de
natureza étnica, racial e religiosa.
"Em Fortaleza,
por exemplo, vimos a mesma estratégia em favelas do Comando Vermelho [CV]. Eles
[traficantes] entram nas áreas, quebram objetos, picham paredes e assinam 'CV
abençoado."
Miranda fala em
"traficrentes" para descrever o fenômeno. Há quem se refira a narcopentecostais ou a
traficantes evangélicos.
São denominações
que despertam controvérsias, não só pela própria natureza dos termos.
Também pela
incompatibilidade que muitos enxergam entre seguir esta fé e levar uma vida no
crime.
O que para alguns
pesquisadores é uma apropriação
estratégica pelos traficantes em busca de legitimação e poder, é,
para outros, um fenômeno natural em um país cada vez mais evangélico.
·
Vida
sob o cerco'
A população evangélica no Brasil tem
aumentado rapidamente, e há projeções que indicam que pode ultrapassar a
de católicos na próxima
década, passando a compor o principal grupo religioso do país.
À medida que a
presença evangélica aumenta na sociedade, a capilaridade e o estilo carismático
sobretudo de denominações neopentecostais tornam sua presença expressiva em
periferias e favelas.
Criminosos que
exercem muitas vezes controle sobre esses locais não estão isentos desta
influência.
De acordo com
Christina Vital, professora de sociologia da UFF, o "cerco" para
moradores de comunidades vem se apertando em múltiplos níveis — político,
territorial, emocional, de consumo.
No caso do Complexo
de Israel, soma-se um cerco à religião, que ocorre de forma "muito
significativa".
"Os moradores
de lá podem professar outras religiões, mas sem dar visibilidade a elas",
afirma Vital, que coordena o Laboratório de Estudos Sócio Antropológicos em
Política, Arte e Religião (Lepar/UFF).
"Não é
folclore, não é exagero falar de intolerância religiosa naquele
território."
De acordo com a
pesquisadora, terreiros de umbanda e candomblé foram fechados não apenas dentro
das comunidades do complexo, como também nos bairros da cercania.
Em julho deste ano,
houve relatos publicados na imprensa de que algumas paróquias católicas na Zona
Norte do Rio haviam sofrido represálias e cancelado missas e atividades, o que
Arquidiocese do Rio de Janeiro negou.
De acordo com
Vivian Costa, o catolicismo no complexo também passou a ser celebrado forma
mais privada, sem ocupar praças ou pendurar faixas nas ruas.
O preconceito
sofrido por religiões de matriz africana é histórico e está longe
de vir apenas de traficantes.
Mas os ataques têm
impacto mais grave e abrangente quando partem desses grupos, diz Rita Salim,
que comanda a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi)
do Rio.
"Esses casos
têm maior gravidade porque partem de uma organização criminosa, por um grupo
com um líder, que impõe medo a todo o território que domina", afirma a
delegada.
"Ele consegue
concretizar aquele crime sem muita resistência, já que aquele espaço é dele.
Dificilmente a vítima vai chamar a polícia ou fazer um registro de ocorrência,
porque fica receosa."
De acordo com ela,
alguns casos são o suficiente para dar o exemplo e ditar a norma de que
"somente uma fé pode ser professada aqui".
Apesar de o temor
inibir denúncias, Salim ressalta um mandado de prisão emitido contra o
traficante que chefia o Complexo de Israel, acusado de ordenar o ataque de
templos de matriz africana em outra comunidade, na Baixada Fluminense.
·
'Neocruzada'
Casos de extremismo
religioso ligados ao tráfico de drogas nas comunidades do Rio começaram a
despertar alarme no início dos anos 2000.
Mas o problema tem
aumentado de forma dramática, de acordo com o babalorixá Márcio de Jagun, à
frente da Coordenadoria de Diversidade Religiosa da Prefeitura do Rio de
Janeiro.
Jagun diz que o
problema tem se espalhando pelo Brasil, com ataques do
gênero vistos em outras cidades.
"Isso é uma
forma de neocruzada", afirma Jagun.
"O preconceito
por trás desses ataques é religioso e étnico, discriminando religiões de matriz
africana que são demonizadas há 500 anos, com foras da lei alegando querer
banir o mal em nome de Deus."
Mas religião e
crime sempre se entrelaçaram no Brasil, enfatiza a teóloga Vivian Costa.
No passado,
traficantes pediam proteção a entidades afrobrasileiras e santos católicos.
"Se olharmos
para o nascimento do Comando Vermelho e depois do Terceiro Comando e do TCP, a
presença do catolicismo e das religiosidades afro estão ali desde a sua
gênese", descreve.
"Nós vamos ver
a presença de São Jorge, a presença de Ogum, os corpos fechados, as tatuagens,
as guias, os crucifixos, os cultos, as velas, as oferendas. Por isso, chamar de
narcopentecostalismo é reduzir essa relação tão presente, tão sólida, tão
histórica e tradicional do crime com a religião."
Costa prefere falar
em uma "narcorreligiosidade", abarcando uma relação entre religião e
tráfico que sempre existiu e agora se reconfigurou para abarcar a crença
evangélica, reflexo do espaço e expressão que esta ganhou na sociedade.
·
Um
fuzil e a Bíblia
O pastor Diego
Nascimento é um exemplo de outra dimensão na relação da religião com o crime: a
de porta de saída.
Ele tem experiência
nas duas frentes, o tráfico e a fé, embora não ao mesmo tempo.
O pastor se tornou
cristão depois de ouvir o evangelho pregado por outro traficante, empunhando um
fuzil.
É difícil imaginar
que o pastor de 42 anos da Igreja Metodista Wesleyana, com jeito jovem, sorriso
fácil e covinhas, foi outrora o DG da Vila Kennedy, chefe do tráfico na
comunidade onde nasceu e cresceu, na Zona Oeste do Rio, onde agia como braço
local do Comando Vermelho.
Nascimento passou
quase quatro anos na prisão por tráfico de drogas, preso portando mais de 200
envelopes de cocaína.
Mas o cárcere não o
dissuadiu da vida no crime. Foi o crack que levou a um beco sem saída: ele foi
consumido pelo vício e perdeu a confiança da organização criminosa.
"Perdi a minha
família, fui para as drogas, morei na rua quase um ano. Cheguei ao ponto de
vender as coisas de dentro de casa para usar o crack", conta.
Quando estava no
fundo do poço, um traficante com autoridade na comunidade mandou chamá-lo.
"Cheguei todo
sujo e ele começou a falar de Jesus para mim. Disse que aquilo não era vida
para mim, e que quando ele se envolveu no tráfico, ele se espelhava em mim e
queria ser como eu", lembra.
"Ele começou a
pregar e a dizer que ainda tinha jeito para mim, que era só eu aceitar Jesus. E
ali eu tomei uma atitude de ir para uma igreja."
O jovem viciado
seguiu o conselho do traficante e procurou uma igreja, começando sua jornada
para o púlpito. O traficante que pregou para ele com um fuzil já morreu, como
outros amigos que pastor Diego viu serem levados pelo crime.
O pastor ainda
passa tempo com criminosos, mas, hoje, é por meio de seu trabalho pregando nos
presídios do Complexo de Bangu, onde ele tenta ajudar outras pessoas a mudar
suas vidas, dando seu próprio testemunho como exemplo de que é possível.
Apesar de ter se
convertido graças a um traficante, o pastor Diego considera, assim como
diversos outros que seguem esta mesma fé, que a ideia de criminosos evangélicos
é uma contradição em termos.
"Não os vejo
como pessoas que se acham evangélicas", afirma o pastor.
"Vejo pelo
lado do temor a Deus de quem sabe que está levando a vida errada e que quem
guarda a vida deles é Deus. Acredito que não existe isso de juntar as duas
coisas", prossegue.
"Se a pessoa
aceita Jesus e segue os mandamentos bíblicos, não pode estar no tráfico."
Fonte: BBC News
Brasil
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