Flávio Lazzari: As Igrejas e os Impérios
"Sonho e luto por um mundo em que ninguém passe fome e
todos sejam estrangeiros, expatriados, apátridas, exilados, sem nações, estados
e identidades, sem atlantismo e sem rotas da seda, sem os vírus de tradições e direitos
étnicos, religiosos, culturais exclusivos, parmenideos, judaicos ou corânicos,
pan-helênicos ou panrussos... e cristãos em todas as suas vertentes."
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fideidonum que atua na Diocese
de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em
artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ele, "estamos presenciando, neste tempo,
em Israel, à uma reedição do fanatismo zelote e, na Rússia, à
reproposição da aliança constantiniana entre Igreja e Império. Será que a
escolha da comunidade de Jerusalém pode nos dizer algo imprescindível
sobre estas situações?"
<><>Eis o artigo.
Nestes dias, refletindo sobre os sofrimentos e os temores que os
tempos atuais nos reservam, me senti quase obrigado a voltar ao tempo da
primeira guerra judaico-romana para visitar a memória da decisão da comunidade
judaico-cristã de Jerusalém de abandonar Jerusalém e buscar refúgio
na cidade de Pela, Decápolis, atual Transjordânia. Um êxodo tão
crucial que chega a me seduzir como se tivesse um valor profético e normativo
para o nosso discernimento diante das guerras devastadoras que assolam atualmente Ucrânia e Palestina.
Estamos no ano de 66 e o imperador Nero envia as
legiões para acabar com a insurreição judaica. A comunidade judeu-cristã,
dissociada da revolta armada, escolhe fugir para um lugar de cultura grega,
alternativa não meramente geográfica
à Judéia, Idumeia, Peréia e Galileia, que estavam em
estado de insurreição e longe também da Samaria e do litoral onde a
situação era de perigosa incerteza.
Tal decisão, a meu ver, foi além da óbvia obediência à mensagem
não violenta de Jesus, porque se deu num duríssimo confronto
geopolítico em que prosperavam diferentes e antagônicas leituras da
conjuntura.
Posturas diferenciadas e em conflito, que parecem se repetir
também hoje nos mundos hebraico e islâmico, no ocidente católico e protestante
e no oriente ortodoxo, certamente de forma análoga e com uma complexidade de
atores e questões, que complicam ulteriormente a leitura e as decisões.
Uma primeira observação: os seguidores judeus de Jesus não se reconhecem na tradição nacionalista
da Aliança, ligada ao controle da terra sagrada prometida
por IHWH ao povo de Israel e não se identificam com a radicalidade do
partido fariseu e com a guerra santa dos zelotes contra o invasor romano. Mas
tampouco se aliam aos colaboracionistas saduceus.
Parece-me que, já nestes primeiros anos do “Caminho”, os
seguidores de Jesus já optam para a teologia do Monte das Oliveiras e do Gólgota em substituição do Monte Sião,
sede do Templo e dos poderes em Judá.
E parecem que antecipam concretamente o sonho de Paulo, que
escreve aos Gálatas: “Não existe mais nem judeu nem grego... vós sois um
em Cristo Jesus.” (Gal 3:28). Renegam, desta forma, todo nacionalismo,
todo saudosismo teocrático e toda afirmação identitária, que divide, fragmenta
e é estopim de inimizade e guerras.
Lição esta, que as cristandades ainda não aprenderam.
Lição, que é a primeira provocação política que os exilados
de Pela nos oferecem.
Em suma, abandonar o Monte Sião não seria mera
estratégia de sobrevivência, mas uma revolução cristológica. E uma revolução
política.
Ao confrontarmos a escolha dos discípulos judeus de Jesus com a
opção de Flávio Josefo, descobrimos aspectos ainda mais interessantes.
O historiador, de família sacerdotal, ligado aos saduceus,
cidadão romano, se apoia na opção política do profeta Jeremias, que, em
587a.C., diante dos três cercos de Jerusalém, que levaram à destruição da
cidade e do templo de Salomão,
pregava, com realismo político, a submissão ao império babilônico. Confirmado
pelas palavras do profeta, Flávio Josefo, contra o fanatismo religioso que
sacraliza a terra, afirma que Israel foi independente e vencedor só
nos tempos épicos do Êxodo, mas que, sucessivamente, foi obrigado a se submeter
politicamente a todos os impérios que se revezaram na sua terra: Egípcios, Assírios, Babilônicos, Persas, Gregos e
agora os Romanos.
Os nazarenos, que se referiam a si mesmos como "O Caminho”,
apesar da sua observância das tradições hebraicas - circuncisão, leis
dietéticas e a observância do sábado - eram objeto de desconfiança e
perseguição por parte das autoridades religiosas ligadas ao templo e aos
fariseus. Depois de décadas de violências que culminaram no apedrejamento
de Estevão, em 34, na decapitação de Tiago, filho de Zebedeu e
irmão de João, em 44, e no martírio di Tiago o Justo, irmão
de Jesus, em 63, os seguidores judeus de Jesus eram cada vez mais
marginalizados pelo poder do templo, mas, com certeza, tampouco podiam confiar
nos romanos, que, com o imperador Nero, em 64, começaram as perseguições,
que, de forma intermitente, continuarão até 313. E é em 67, em Roma, que Paulo de Tarso é decapitado e Pedro crucificado de cabeça para
baixo.
Os profetas explicavam os desastres, que atormentavam
periodicamente o povo judeu, como a punição de Deus a Israel pela infidelidade
à aliança e por esquecer os mandamentos da Torah. Infelizmente, os
cristãos, chegando ao poder, irão se apropriar desta teologia, se transformando
de perseguidos em perseguidores, para forjar as bases do antissemitismo, que
caracterizará toda história ocidental, de pogrom em pogrom, de perseguição em
perseguição até a tragédia da Shoah. E,
infelizmente. até os nossos dias.
Já no século II d.C., os Evangelhos, quando si ignorou a
distinção entre a responsabilidade das autoridades judaicas e a inocência do
povo judeu, foram postos ao serviço do processo de demonização dos judeus
“deicidas”, agentes de Satanás, cuja eliminação constituía-se quase como um
dever dos cristãos.
Se olharmos a história da primeira guerra judaico-romana contada
por Eusébio de Cesaréia e Epifânio, ambos do IV século, podemos ver este
antissemitismo, sem censuras, em plena ação.
Na modernidade, o antissemitismo continua um fenômeno único, e
de difícil, quase impossível, cancelamento, apesar da “conversão” católica,
que, porém, deu-se somente em 1965, quando o Concílio Ecumênico Vaticano II, com o documento "Nostra Aetate", repudiou
oficialmente a ideia da culpa coletiva dos judeus pela morte de Jesus.
Surge, assim, de Pela, uma segunda sugestão para o nosso
discernimento das guerras e sofrimentos desta estação da história: chega de
antissemitismo antijudaico, mas chega também de antissemitismo anti-islâmico.
Estamos presenciando, neste tempo, em Israel, à uma
reedição do fanatismo zelote e, na Rússia, à reproposição da aliança
constantiniana entre Igreja e Império. Será que a escolha da comunidade
de Jerusalém pode nos dizer algo imprescindível sobre estas
situações?
Também hoje, estas guerras não deveriam ser nossas, mas, de
fato, setores significativos do mundo protestante e católico,
apoiam Israel, porque é Europa, Ocidente, o "nós" contra a
barbárie islâmica. Temos no Ocidente a identificação acomodada e cinicamente realista
com o império norte-americano, acompanhada por uma versão anti-islâmica do
antissemitismo. À escola de Flávio Josefo, os países
da OTAN decidiram que a soberania nacional é pretensão inútil e que é
necessário permanecer amparados pelo poder econômico, político e militar
dos EUA. E é Washington que fornece armamentos
para Israel e para Ucrânia. Existem também cristãos que, por
apoiar as vítimas do genocídio de Gaza, não têm uma leitura crítica de Hamas e Hezbollah, fanáticos fundamentalistas islâmicos da Jihad, decididos
a derrotar não somente Israel, mas todo o Ocidente pervertido e corrupto.
Outros apoiam a resistência ucraniana à invasão russa, quando não poucos, pertencentes ao mesmo espectro político,
por estar em radical oposição a OTAN, defendem as “razões” da cruzada
de Putin e da Terceira Roma contra a Europa.
E não faltam os pacifistas cristãos, que, em algumas
circunstâncias, se revelam irenistas, que não decidem posturas e enfrentamentos
claros à lógica desumana dos impérios. Assim, aparecem também algumas
incertezas políticas do próprio papa, que em algumas ocasiões se recusa de
interpretar o papel de capelão do Ocidente, mas, em outras, revela quanto o
constantinismo ainda afete a diplomacia do Estado do Vaticano.
Terceira sugestão. Em suma, os expatriados de Pela, junto
com Paulo de Tarso,
poderiam nos ensinar, que os discípulos e as discípulas de Jesus são chamados à
oposição radical e explicita a todos os impérios.
Junto com o Templo, o Império é o
anti-reino. Paulo tem esta clareza, quando escolhe de definir Jesus
como κύριος, kurios, Senhor, em clara e polêmica
oposição ao único kurios reconhecido como divindade política,
o imperador romano. E é por esta infidelidade política e adesão na fé ao único
Senhor que os primeiros passos do movimento cristão foram tempos de profetas e
mártires.
Pensar e fazer política como Jesus e com Jesus
comporta uma conversão a este “além” de Jesus, ao seu Reinado que vai “além” da
pequena cabotagem dos arranjos conjunturais, “além” das corporações
ideológicas, que tendem sempre à captura da religião para reduzi-la a
instrumento de defesa do status quo ou ao âmbito de
estratégias eleitorais.
Um “além” que deveria ser também um “contra”, sobretudo quando
o cristianismo é manipulado para servir de suporte aos novos
fascismos. Ao ponto de virar cristofascismo. Um “além” radicalmente crítico também da pauta defasada e
omissa da esquerda, aparentemente condenada a repetir-se, esquecendo o chamado
a atender com urgência às feridas mortais infligidas à Vida e aos pobres pela
“religião” capitalista e seus fiéis.
Como poderíamos esquecer a oposição de Jesus ao Império romano
narrada no Evangelho de Marcos, quando a diabólica legião (a X Legião Fretense?) que mora num
cemitério e atormenta o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20), é
expulsa e entra numa manada de impuríssimos porcos que se lançam num abismo.
Assim sonho e luto por um mundo em que ninguém passe fome e
todos sejam estrangeiros, expatriados, apátridas, exilados, sem nações, estados
e identidades, sem atlantismo e sem rotas da seda, sem os vírus de tradições e
direitos étnicos, religiosos, culturais exclusivos, parmenideos, judaicos ou
corânicos, pan-helênicos ou panrussos... e cristãos em todas as suas vertentes.
Fonte: IHU
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