Escala 6×1: como se blindam os CEOs
No último mês, o Brasil se reacendeu politicamente para
falar do fim da “Jornada 6×1”. E não foi apenas nas “redes sociais”. Muitos
movimentos foram às ruas para levantar a bandeira. Uma rede difusa de
vanguardas, militantes e ativistas esteve nas calçadas panfletando e dialogando
com a população. A receptividade foi das melhores. As classes subalternizadas
percebem e sentem que há algo de brutalmente injusto em uma condição de
ausência de vida
para além do trabalho.
Do ponto de vista da saúde, como declarou a Rede
Unida:
“um regime que permite ao trabalhador apenas 1 dia fora do trabalho é
absolutamente incompatível com a saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores
(…) Escala 6×1 é incompatível com saúde coletiva!”1. Segundo o
levantamento realizado pela Repórter Brasil, das 20 ocupações
com mais notificações de acidentes de trabalho em 2022, 12 estão entre as 20
categorias com o maior número de contratos semanais de 41 horas ou mais. Em entrevista
à reportagem, a juíza Luciana Conforti foi taxativa: “há uma relação direta
entre excesso de jornada e acidentes de trabalho”. A cada 4 horas e meia um
trabalhador/a morre em
função do seu trabalho. Sem esquecermos que o Brasil ocupa a 2°
posição no ranking de
países com mais casos diagnosticados de burnout, segundo dados da
Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANMT).
Trocando em miúdos, o Brasil é um dos campeões em
exaustão, acidentes e mortes no trabalho! Logo, falar de nossa saúde é,
necessariamente, falar e lutar por um novo mundo do trabalho – e, porque não,
pelo fim do trabalho abstrato. Então, não há espaço ético e político para
tergiversar ou vacilar.
Mas não é isso o que pensa, planeja e executa uma
fração de destaque da classe dominante deste país. O último mês também foi de
um “escândalo” que, podemos
dizer, pedagógico – embora com pouca ou quase nenhuma repercussão nas mídias.
Com “fortes indícios”, durante mais de 15 anos, corporações como Alcoa, Avon,
C&A, Cargill, Claro, Coca-Cola, General Motors, Goodyear, IBM Brasil,
Kimberly-Clark, Klabin, Arcos Dourados (Mc Donald’s no Brasil), Monsanto,
Natura, Nestlé, Pepsico, Philips, Pirelli, Sanofi Aventis, Serasa S.A.,
Siemens, BAT Brasil/Souza Cruz, IPLF, Syngenta, Vale, Volkswagen, Votorantim,
Votorantim e White Martins se encontraram periodicamente para trocarem informações
sensíveis do mercado de trabalho – como salários, veículos, transporte,
demissões/férias/licenças/aposentação, plano de saúde, alimentação, educação,
saúde em geral e benefícios diversos; tudo com vistas a “limitarem a livre
concorrência” pela compra de força de trabalho.
Esse apontamento vem do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica – CADE, órgão responsável por prevenir e reprimir as infrações
contra a ordem econômica. Por meio de um relatório publicado para consulta
pública, é registrado que “de forma similar ao modo como as empresas competem
para que os consumidores comprem seus produtos, elas também concorrem para
contratar ou reter seus empregados.” Ou seja, tal como o exercício do monopólio
ou oligopólio sobre as vendas de produtos pode estabelecer “preços de
monopólio” e lucros extras, há evidências de investidas para a manipulação do
mercado de trabalho, que restringem “artificialmente” as condições laborais e
salariais dos “sem vida além do trabalho”. Afinal, nada melhor, para o negócio,
que aumentar as receitas diminuindo os custos com a força de trabalho –
lembrando, é claro, que isso não inclui apenas a dita “remuneração direta”, o
salário, mas também a “indireta” (como a contratação de planos de saúde, o
provimento de alimentação, seguros, entre outros).
Papo reto: trata-se de fogo aberto. Uma fraternidade de
parte dos empresários mais poderosos no país se organiza para constranger
salários, impedir contratações, arrochar benefícios e direitos trabalhistas,
enfraquecendo decisivamente o poder de barganha dos trabalhadores e
trabalhadoras, bem como evitando os riscos de evasão da força de
trabalho. Em suma, se para manter os ganhos do capital for necessário
destruir com a vida dos trabalhadores/as, há sempre algum fórum ou petit comité para que CEOs bem pagos
articulem condições “ótimas” em nome dos “interesses do negócios”.
Tal artilharia, logicamente, não se resume ao Brasil.
Os indícios mundo afora sugerem que se trata de uma prática corriqueira.
Segundo o documento do Cade, em 2017, as
autoridades francesas multaram empresas em mais de 300 milhões de euros devido
a um “acordo de cavalheiros” para proibição de contratações e troca de
informações sobre salários. Em 2021, na Hungria, também houve imposição
de multa a uma associação de recrutamento em razão de regras que
estabeleciam acordos de proibição de contratação. Ainda, nos Países Baixos,
abriu-se investigação sobre um possível acordo de fixação de salários entre
supermercados. Em 2022, foi a vez de autoridades romenas anunciarem
investigação de sete empresas de engenharia automotiva por suposto acordo de
não-contratação e conduta de fixação de salários; o mesmo ocorreu na Suíça,
onde se desatou investigação contra 34 bancos por troca de informações sobre
salários. Além disso, na Catalunha, a Associação de Escolas Privadas
Independentes está sob investigação acerca de acordos recíprocos de
não-contratação. Em face desses casos, qual foi e segue sendo o efeito de 15
anos da fraternidade burguesa no Brasil? Ainda não sabemos com exatidão…
O que sabemos, em primeiro lugar, é que é preciso
observar esse fato para além das normativas “concorrenciais” pautadas no âmbito
do CADE. Destacando que a troca de informações laborais sensíveis não possui
tutela própria nesse contexto, sob os parâmetros gerais da defesa da
concorrência a imposição de multa é um risco calculado a ser discutido por meio
de procedimentos administrativos que, como sabemos, contam com as maiores
bancas jurídicas do país na defesa dessas empresas – enquanto, por exemplo, foi
negado o ingresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT) como parte
interessada na discussão, que segue impermeável à transparência ativa. Então,
pressionar a partir da atuação do Ministério Público, por exemplo, sob a ótica
da proteção a um direito coletivo, pode ser um primeiro passo nos corredores
institucionais.
Mas, sobretudo, sabemos que há séculos – embora muitos
insistam em “zombar” ou “fingir que não veem” – os empresários seguem como
classe organizada defendendo seus interesses, nem que isso custe a vida ou a
saúde dos trabalhadores/as – ainda mais em um país como nosso, marcado por uma
extensa massa marginal. É fato que há divergências quando os especialistas
tratam de colocar na lousa ou na folha de papel a natureza de classe deste
cenário todo, bem como suas características atuais, as armas em jogo etc.
Todavia, tal como nesse caso, as lições de casa seguem. Os laços sociais que
demarcam a existência viva e operante da classe dominante não precisam ser
comprovados nos sindicatos patronais ou em suas federações; se for preciso,
como registra o documento do CADE, eles inventam e se organizam por meio de
outros aparelhos como o “Grupo Executivo de Salários” (GES) ou o “Grupo
Executivo de Administradores de Benefícios” (GEAB). E daí o papo, as alianças e
a agenda seguem normalmente com e-mails e grupos de WhatsApp.
Dito isso, é urgente recolocarmos na mesa das
preocupações centrais com a nossa saúde – e na agenda de todo movimento
sanitarista – que a burguesia não precisa de uma estampa na testa para
existir e ser diretamente responsável pela nossa exaustão, adoecimento e morte.
O central na sua constituição como classe é, justamente, a estrutural
necessidade de um contingente de força de trabalho submetida aos seus
interesses. Os imperativos do capital – taxa de lucro, concorrência, acumulação
etc. – pressionam os empresários particulares a se organizarem coletivamente –
e constantemente – em torno da vigilância, domesticação, controle e disciplina da
força de trabalho, de modo a garantir a extração de mais valor. Esta é a
condição de sua existência enquanto classe!
Em tempos de euforia tecnológica, por sinal, é preciso
relembrar também o fato que a história do modo de produção capitalista é
marcada pela subsunção do trabalhador/a às máquinas, não o inverso. Até mesmo
organizações insuspeitas de falar em nome dos trabalhadores, como a The
Upwork Research Institute, reconhecem o desequilíbrio entre as expectativas por
produtividade e a redução de custos que a utilização de novas tecnologias traz
por parte dos empregadores, em face das alegações de que são uma sobrecarga
adicional e geram mais pressão à rotina de trabalho. Ou seja, a despeito da boa
intenção de alguns, cujos discursos bradam por uma tecnologia digital “centrada
no humano” sem tocar nas raízes da nossa ordem econômica; nunca houve capital
sem a punção do trabalho vivo tanto quanto possível – e, consequentemente, sem
produzir desgaste
físico e mental.
E não há nenhum sinal, por hora, de que essa lei tendencial se altere com a
“Indústria 4.0”. Na verdade, historicamente, a única força até hoje capaz de contrarrestá-la
foi a organização e luta dos trabalhadores/as.
A bandeira puxada pelo VAT é urgente e requer de nós
toda nossa luta. Mas, a despeito da uma vitória a curto prazo ou não, um passo
importantíssimo foi dado: a extrema direita e o neofascismo, que sempre
evidenciaram com quem se comprometem “unha e carne”, aderiram à iniciativa
apenas depois da pressão política oriunda da “opinião pública”. Ao mesmo tempo,
por outro lado, parte dos andares debaixo se abriu para reconhecer que há algo
que nos unifica politicamente, que nos faz um só: somos aqueles/as que não
ficamos com o nosso próprio tempo, com a nossa própria energia, com a nossa
própria libido, com a nossa própria saúde… Condição, aliás, que no passado
Hegel chamou de ralé e Marx de proletariado, pois como disse certa vez Jacques Rancière: “em latim, proletarii significa ‘pessoa
prolífica’ – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome,
sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade”.
Ano que vem ocorrerá a 5ª Conferência Nacional de Saúde
do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª
CNSTT),
colocar a redução da jornada na agenda de prioridades é estratégico tanto para
retomada da luta de classes em nosso país quanto para atualização das bandeiras
históricas do movimento sanitário; ou melhor, para real e efetiva aliança
entre ambos. Afinal, se sabemos que saúde não é ausência de doença, é mais
urgente do que nunca um
trabalho projetado, pensado e gerenciado para promover o bem-estar.
¨ Trabalhadores
denunciam escala 10x1 em hipermercado em Porto Alegre
A demanda pelo fim da escala 6x1 tomou o país há
algumas semanas, colocando a necessidade de uma vida para além do trabalho, com
redução das jornadas para 30 horas semanais, sem redução salarial, o que mostra
as elevadas aspirações da classe trabalhadora em um momento em que a burguesia
e o governo tentavam pautar a “necessidade” de ajustes fiscais, ou seja, mais
ataques à classe trabalhadora.
As recentes denúncias feitas por trabalhadores da
Companhia Zaffari, no Rio Grande do Sul, reforçam a urgência desta pauta.
Operadores de caixa e empacotadores do hipermercado contam que trabalham em
escalas de 8x1, 9x1 e até mesmo 10x1, por um salário que fica em torno de 1200
reais, muitas vezes somando três domingos seguidos de trabalho no mês. Essas
horas extras são feitas sob pressão e assédio das chefias que os obrigam a
trabalhar aos domingos e feriados sob a prerrogativa de que caso não aceitem,
poderão perder o vale alimentação. Além disso, os funcionários relatam que nem
sempre as horas extras são pagas, pois a empresa desconta do banco de horas, de
modo que este tempo a mais de trabalho não é computado no pagamento.
Há, ainda, a denúncia de que trabalham cerca de 10
horas diárias na tentativa de conseguirem o direito ao descanso de um único
dia. Esta é a realidade dos cerca de 12500 trabalhadores da Companhia Zaffari.
Segundo a jurista Valdete Souto Maior, o conjunto dessas condições pode ser
enquadrado como trabalho análogo à escravidão.
Mesmo chegando a este nível de degradação das condições
de trabalho, elas foram negociadas por meio Acordo Coletivo de Trabalho (ACT)
entre a empresa e o Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre
(Sindec-Poa). Com a Reforma Trabalhista de 2017, aprovada durante o governo
golpista de Temer e mantida hoje pelo governo de frente ampla, o que prevalece
sobre a lei é o acordo coletivo, o que, justamente, abre espaço para o
aprofundamento das condições precárias de trabalho e de vida que impele jovens
como a trabalhadora do Zaffari que disse ter que decidir entre seguir sua
formação no Ensino Médio ou trabalhar no supermercado e que terminou por
abandonar os estudos.
É em detrimento das condições de vida de milhares de
jovens que a Companhia Zaffari é a 12º maior no ranking de hipermercados do
país, acumulando lucros de 7,6 bilhões apenas em 2023, enquanto paga cerca de
1200 reais aos seus funcionários que fazem jornadas de 10x1.
As denúncias dos trabalhadores da Companhia Zaffari
escancaram a miséria capitalista que rouba nossa vida no trabalho em nome dos
lucros capitalistas. Apenas reforçam a necessidade de as centrais sindicais,
como CUT e CTB construírem uma forte luta junto do movimento pelo fim da escala
6x1, com redução das jornadas para 30h semanais, sem redução salarial. Também
fica evidente como é preciso lutar pela revogação da reforma trabalhista, mas
não só, também é preciso colocar abaixo a Lei da Terceirização Irrestrita e o
Arcabouço Fiscal que generalizam a precariedade da vida da classe trabalhadora
e do povo pobre.
Foi nesse sentido que nós da Faísca Revolucionária e do
Movimento Nossa Classe estivemos junto ao Movimento pelo Fim da Escala 6x1 de
Porto Alegre realizando um protesto no hipermercado Zaffari, ecoando as
denúncias e colocando a necessidade da redução da jornada, sem redução
salarial.
Fonte: Por Leandro
Modolo e Raquel Rachid, em Outras Palavras/Esquerda Diário
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