terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A.G. Fidalgo: Quando o “diabo” se veste de dualismo e endossa o maniqueísmo

Aceitamos, como alguns gostam de fazer, que o grande inimigo da fé e da humanidade é o diabo. Pois bem, na nossa opinião, esse inimigo, nada invisível, muito presente em todos os níveis da existência humana, está sempre mascarado e vestido com roupas diversas.

Gostaríamos agora de nos concentrar em uma em particular, talvez a mais comum, a que mais lhe convém, aquela com a qual subverte todos os possíveis hábitos humanos, a ponto de usá-la para sustentar suas maiores imposturas.

Desmascarar o diabo significa procurar a presença de qualquer tipo de dualismo maniqueísta que subverte as realidades humanas. Existem escolhas humanas que, agravadas por essa escolha diabólica, continuam dividindo, opondo e dilacerando a nossa existência humana.

Uma tentação sedutora dessa forma de percorrer a história é a de fazer com que a maioria das pessoas se desinteresse de várias maneiras pelos acontecimentos políticos, e não apenas pela política formal e ativa. O desinteresse pelas escolhas e pelas modalidades com as quais a nossa vida pessoal e social se organiza é sua maior vitória.

Visto de uma perspectiva teológica, pode ser dramático que a política e os políticos se ocupem com questões de fé e de teologia, e que a teologia continue acreditando que as questões de fé e de teologia não têm nada a ver com toda a realidade política, mas apenas de forma derivada. De fato, seu objeto principal seria Deus como tal e seus derivados doutrinais claros e distintos, e todo o restante seria, em princípio, apenas consequências derivadas de princípios teológicos altissonantes, elaborados em caráter universal e absoluto, válidos para todos e em todo tempo e lugar.

Sim, essa é uma grande vitória demoníaca, que sempre tentou e subverteu o sentido da religião e, em particular, o sentido da fé cristã encarnada na história.

Não nos referimos apenas à chamada teologia política ou teologia do político, que foi, sem dúvida, uma contribuição significativa na época. Pelo contrário, queremos dizer que a realidade política tinha de ser não apenas o ponto de partida, mas também o horizonte de compreensão dentro do qual a realidade humana deveria ser assumida e examinada, e, portanto, a teologia não poderia se realizar fora desse horizonte, tendo de considerar, principal e transversalmente, os eventos e as vicissitudes políticas, gerais e particulares, dentro das quais se desenrola a história humana, para o bem e para o mal.

Assim como no caso de algumas obras científicas, a própria teologia não poderia cair na armadilha de realizar sua tarefa apenas descrevendo e analisando a história como um simples devir, no qual ocorrem certas descobertas e ações que enriquecem ou empobrecem o conhecimento, sem compreender, também e em primeiro lugar, as transformações reais da compreensão humana e suas repercussões concretas, mediante ações políticas concretas (incluímos aqui a política, em sentido lato, e suas extensões socioculturais e econômicas).

Nesse sentido, uma constante (pre)ocupação deveria ser a de desmascarar todas as relações de poder político que controlam, oprimem e reprimem o corpo social. E, a partir daí, interessar-se em como colaborar de forma inter e transdisciplinar para levar a uma transformação complexa e coletiva das práticas e das regras de compreensão e de concretização das opções e das adoções sociopolíticas dos seres humanos em seus respectivos contextos locais e globais.

No nosso contexto acadêmico, seria esperado que esse serviço fosse exercido de forma peculiar na e pela moral social, mas não só. Todas as disciplinas deveriam assumir essa marca, para não se deixarem seduzir pelo demônio dualista que continua separando, direta ou muito sutilmente, fé e vida, fé e compromisso na história. Em cada momento da nossa história, devemos aprender e assumir a árdua e fascinante tarefa de caminhar com fidelidade criativa, buscando novos horizontes de compreensão e novas alternativas de realização humana. A fé cristã, a partir de sua inspiração encarnatória e libertadora, assume esse desafio como central.

É por isso que nenhum ambiente acadêmico que se orgulhe de assim ser e que queira estar a serviço de uma constante humanização pode abandonar e/ou renunciar a seguir o caminho da pesquisa criativa, desenvolvendo-se mediante o trabalho criativo pessoal e coletivo, mediante a investigação criativa, permitindo que uma criação livre emerja sem as limitações arbitrárias de qualquer tipo de institucionalização coercitiva.

Só assim, de fato, é que uma instituição educativa pode criar um espaço digno a partir do qual possa maximiza as possibilidades de realização dessa característica humana fundamental. Isso significa, além disso e sobretudo, enfrentar a constante superação de todo tipo de elemento destrutivo, opressivo, repressivo e coercitivo que, de mil maneiras, como resíduo histórico de uma humanidade que não consegue abrir plenamente suas asas de real dignidade e liberdade, continua agindo como parte da diabólica ação maniqueísta.

Nessa linha, talvez a primeira coisa a se assumir é que hoje, em nenhum lugar do nosso mundo, existe uma democracia real como tal, nem mesmo naqueles países que pretendem se apresentar como os melhores países democráticos, porque, mesmo atingindo mais ou menos níveis de concretude democrática, com uma certa plausibilidade, ao mesmo tempo a humanidade, de uma forma ou de outra, permanece aprisionada, dualisticamente tensa, difamada por excesso ou por defeito, entre excessos de pobreza e excessos de riqueza, e muitas outras contradições.

A justiça permanece aprisionada na mentira das várias injustiças, de modo que a verdade da nossa humanidade permanece aprisionada em esquemas, estruturas e sistemas diabólicos.

Sem querer entrar em uma análise detalhada para exemplificar melhor o que foi dito, apontamos apenas para um fenômeno que deveria nos fazer refletir.

Quando as pessoas (incluindo os fiéis) se limitam a seguir certos líderes políticos ou religiosos, isso já é preocupante. Porque a necessidade de liderança, não do tipo que, na nossa linguagem, chamaríamos de pastoral, mas, sim, de comando em ação, como impulso a dar a vida pelas proclamações dos líderes e de suas ideologizações, é duplamente preocupante.

Como breve premissa, digamos que, segundo a lógica de Jesus e de seu reino, nenhuma opção partidária jamais será a realização imediata dessa lógica, mesmo que possa se aproximar muito dela. Isso não relativiza o compromisso político, mas o situa e não o torna absoluto, o que já é muito.

Deveríamos saber como e até que ponto sujar as mãos, porque permanecer com as mãos limpas seria não só inautêntico, mas também anticristão e muito mais cúmplice do que qualquer outra posição.

Sendo assim, se considerarmos o fenômeno que está ocorrendo em algumas “democracias” ocidentais, onde algumas ideias ou grupos políticos de (extrema) direita estão vencendo nas urnas, não deveríamos nos preocupar tanto com o fato em si, que poderia pertencer ao necessário jogo político das trocas de opções, mas, sim, com as atitudes de imposição aos seres humanos e às suas livres escolhas e opções de vida.

É verdade que esses elementos nem sempre foram suficientemente garantidos pela chamada esquerda e/ou similares. Muitas vezes, houve mais discursos do que realidade, e é isso, em grande parte, que sempre desencadeia contraposições dualistas.

Nesse sentido, o problema de uma vitória como a de Trump é significativo e representativo de muitas opções semelhantes que estão por vir, que agora serão sentidas de uma forma ainda mais forte. Para além da validade política e de muitos outros possíveis elementos positivos, é urgente evidenciar as questões que não só não são recebidas de forma mais completa e serena, mas também são repetidamente manipuladas, contraditas, ideologizadas e postas em risco de subversão.

Para citar apenas algumas: os direitos humanos fundamentais, nos quais as pessoas e sua dignidade devem ter a prioridade sobre todos os sistemas políticos e econômicos; a realidade dos migrantes; as questões da identidade sexual e de gênero; o exercício do poder sobre os “recursos” (bens) naturais e a “resistência” a políticas ambientais globais e a mudanças socioculturais integrais nos estilos de vida; a contínua exploração dos países mais pobres em benefício do chamado primeiro mundo ou dos países industrializados; e assim por diante.

Dessa forma, a necessária superação de todo tipo de colonialismo, patriarcalismo e supremacia do poder econômico, informático e armado parece ser abandonada – senão até mesmo negada.

Além disso, continuamos dando origem a figuras que, embora defendam valores clássicos de uma certa imposição cristão-ocidental, são, no entanto, personagens ambíguos, senão contraditórios, desde suas escolhas de vida pessoal até suas próprias formas de pretender “defender” o lado sério da vida, presumivelmente ameaçado, senão até arruinado, pelos seus adversários ou dissidentes.

O diabo continua vencendo porque, ao radicalizar os extremos, de forma maniqueísta, divide e impera. Quem vence tem o poder e a razão, todo o resto não importa, é simplesmente um erro a ser superado e deixado para trás, sem mais delongas. Não aprendemos com a história e não buscamos integrações mais harmoniosas, no respeito às diferenças e às divergências.

O diabo venceu, mais uma vez, ao conquistar as consciências com seus luxos e suas promessas de paradigmas de progresso e de meritocracia individual, conjugados sob a figura do machismo e do patriarcalismo (infelizmente, assumidos tanto por homens quanto por mulheres, e muitos deles são jovens; isso deveria nos fazer interrogar).

Não se quer a pluralidade e a diversidade, mas apenas a oligarquia de um certo poder, conjugado como autossegurança e autoproteção. O diabo venceu quando continuam se propagando políticas neoliberais que propõem o sacrifício da lógica da solidariedade coletiva em nome da concorrência entre pessoas e o livre mercado, marcado por uma competitividade altamente desigual e desequilibrada.

Em uma visão inspirada na práxis de Jesus, é necessário lembrar que, embora o diabo e todos seus males tenham sido vencidos e, portanto, nunca terão a última palavra, nesta história a batalha para dar espaço primordial à sabedoria da convivência fraterna/sororal/solidária é, e sempre será, um desafio apaixonante.

O diabo derrotado não se resigna ao último lugar no andamento da história e por isso sempre encontra adoradores dispostos a servi-lo, tentando impor seus paradigmas doentios.

“Tudo passa e tudo fica, mas isto aqui é um passar”, diz um poeta; passa um ano civil, um ano litúrgico, coisas acontecem, dores e alegrias, fracassos e sucessos, descobertas magníficas e escolhas desastrosas, e assim abrimos caminho pouco a pouco, querendo aprender, querendo refazer os nossos passos e direcionar melhor a nossa esperança, para encontrar e/ou fazer crescer algo que faça valer a pena continuar sendo humanos nesta história.

Quando aquilo que acontece e aquilo que permanece são horizontes escuros, escolhas obstinadas que nos fazem tão mal, encontrar as razões para continuar tendo esperança, não só em outro mundo possível, mas simplesmente que valha a pena continuar caminhando todas as manhãs, torna-se mais difícil.

Mas, a partir da fé humano-cristã, aqui estamos e continuamos caminhando. Porque Jesus nos ensinou a ter outro olhar, aquele que, nos pequenos e quase insignificantes detalhes, encontra mensagens de alta revelação e inspiração. Porque, mesmo que tudo aconteça, e aconteça de tudo, a vida como dom está aí, iniciada para sempre, sua força, de uma forma ou de outra, exige o nosso empenho, o nosso cuidado e a nossa abertura para recebê-la de novo.

Jesus se fez oferta permanente de vida nova, para que, com Ele e a partir d’Ele, saibamos gerar vida nova, levantando-nos do pó, acendendo luzes das trevas decadentes, fazendo brilhar as sabedorias da nossa história, fazendo emergir ações de justiça humanizadora. Que suas palavras e seus gestos sejam sempre aquele tesouro que não se perde, que não sai de moda, que nunca deixamos de lado para outras inspirações, mesmo que boas e necessárias; e que igualmente devemos saber integrá-las para não perder sabedoria, para não nos perdermos e nos autodestruirmos pessoal e globalmente.

Não se trata apenas nem principalmente de uma questão de cálculos, por mais necessários que sejam; trata-se, mais uma vez, de uma questão de abertura e de generosidade, de aventura e de tenacidade, de gerar aquilo que falta em vez de se lamentar por aquilo que se perde antes de perder tudo.

 

Fonte: IHU

 

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