quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Nuno Vasconcellos: Um país condenado ao déficit

Não importa se o nome do ministro da Fazenda é Fernando Haddad. Ele poderia se chamar Paulo Guedes. Poderia se chamar Pedro Malan, Dilson Funaro, Antônio Delfim Netto, Octavio Gouvea de Bulhões, Eugenio Gudin ou ter qualquer outro nome. A verdade é que, mantidas as regras atuais que — faça chuva ou faça sol — elevam as despesas obrigatórias do governo acima da inflação, nenhum ministro, de nenhum partido político, sob qualquer presidente da República, conseguiria manter as contas federais em equilíbrio.

Se os critérios para a elaboração do orçamento não forem alterados, o Brasil continuará sendo um país condenado a conviver com um rombo fiscal que só aumentará. E mais: por mais trabalhosas que sejam, reformas superficiais como a que está sendo feita atualmente estão condenadas a ter vida curta.

Atualmente, o ministro da Fazenda Fernando Haddad vem enfrentando uma batalha desgastante para conseguir aprovar medidas que, tirando alguns bilhões daqui e outros bilhões de lá, consigam dar a impressão de que o governo está conseguindo vencer a guerra contra o déficit. A ideia é economizar R$ 30 bilhões em 2025 e R$ 40 bilhões em 2026.

O problema é que, por maior que seja o desgaste enfrentado neste momento, o esforço será insuficiente para solucionar o problema e logo será necessário outro pacote para impedir que o déficit fuja do controle. E a culpa, por incrível que pareça, não é só da mania que o atual governo tem de criar despesas e mais despesas sem saber de onde tirará dinheiro para cobri-las. O problema é estrutural.

Isso mesmo! Ainda que Luiz Inácio Lula da Silva, que tem fama de gastador, fosse substituído por alguém de espírito asceta, nenhum presidente da República conseguiria levar o país ao equilíbrio fiscal num cenário desenhado para que o governo não tenha o poder de impedir o crescimento dos próprios custos. Isso mesmo! Na situação atual, mais de 91% das despesas federais, além de obrigatórias, têm mecanismos automáticos de reajustes e muitas delas sempre crescem acima da inflação. Apenas pouco mais de 8% do dinheiro federal, portanto, estão sujeitos às decisões do Executivo.

E para acrescentar um ingrediente a mais na receita intragável que cerca a saúde das contas federais, uma parte do percentual diminuto que pode ser alterado, de uns tempos para cá, ainda está sujeito à gulodice dos senhores deputados federais e senadores. Isso mesmo! Desde o governo de Dilma Rousseff, os parlamentares brasileiros decidiram rasgar a fantasia e delegaram a si mesmos a tarefa de determinar onde e como gastar parte do dinheiro que o Fisco tira do sofrido contribuinte brasileiro. Para 2025, essa brincadeira vai custar, pelo menos, R$ 40 bilhões. É o Poder Legislativo brincando de ser Poder Executivo sem arcar com as consequências das irresponsabilidades que vier a cometer!

O MÁXIMO E O MÍNIMO

Este é o ponto que interessa: consumido pelos salários sempre crescentes dos servidores, pelas aposentadorias mais do que generosas das categorias mais privilegiadas do funcionalismo, pelos juros exorbitantes da dívida pública e pela mania incontrolável que o governo tem de distribuir benefícios sem saber se o contribuinte terá meios de pagá-los, o orçamento federal é um cobertor generoso para uns e curtíssimo para outros. E, para que o dinheiro continue sobrando para os que são sempre beneficiados, ele terá sempre que continuar faltando para as rubricas que vivem à míngua de recursos.

E, como se não bastasse o rombo na União, os orçamentos dos estados e dos municípios seguem pelo mesmo caminho e sempre preveem despesas que crescem sem que o Erário tenha condições de cobri-las sem aumentar o déficit. Na semana passada, o ministro Fernando Haddad tomou a decisão de incluir no pacote de corte de gastos um dispositivo que apenas reafirma o que diz o inciso IX do artigo 37 da Constituição. Ali está escrito que nenhum funcionário público do Brasil pode ter vencimentos superiores aos de um ministro do Supremo Tribunal Federal — que é de R$ 41.650,92. Mesmo assim, um grupo de juízes e promotores resolveu se manifestar.

A despeito do que diz a Carta Magna, os magistrados do país sempre deram um jeito de burlar a lei e transformar em mínimo o salário máximo a que teriam direito. É difícil encontrar no Poder Judiciário nacional algum juiz com mais de cinco anos de carreira que ganhe “apenas” os R$ 41.650,92 previstos em lei. Todos os contracheques acabam inflacionados por férias, licenças, salários extraordinários e outros estipêndios que os multiplica com muita generosidade e faz com que vencimentos superiores a R$ 100 mil sejam considerados modestos.

Diante do pacote elaborado por Haddad, que apenas reafirma o que está na Constituição, um grupo de associações que representam juízes, procuradores e outros grupos beneficiados por uma possibilidade que não se estende ao contribuinte brasileiro comum se uniu para alertar para os riscos da aplicação da lei. Disseram que a aprovação da medida abriria uma leva de aposentadorias e que isso, ao invés de conter as despesas com os salários desses servidores, acabaria gerando despesas ainda maiores.

OBRA DE FICÇÃO

O debate em torno desse ponto ainda vai longe e tudo o que ele revela, por enquanto, é a dificuldade que o governo — qualquer governo, e não apenas o do presidente Lula — tem para desarmar as arapucas fiscais que pressionam as despesas para o alto. Quem está no poder sempre considera o orçamento uma fera indomável — que nem o domador mais habilidoso é capaz de controlar. Quem está na oposição se refere a ele como se fosse um gatinho dócil, que obedece ao menor sinal de comando. Na verdade, porém, ele não é uma coisa nem outra.

O orçamento da União, uma montanha de dinheiro que chegará a quase R$ 6 trilhões no ano que vem, no fundo não passa de uma obra de ficção. Ele é montado sobre a premissa de que o Estado deve se meter em tudo, se responsabilizar por tudo, dar conta de tudo. E, em função dessa postura, destina milhões e milhões para despesas secundárias e deixa de investir naquilo que é essencial.

Entre as despesas desnecessárias estão aquelas geradas por uma estrutura ministerial administrativa balofa e pesadona, que atualmente conta com nada menos que 37 ministérios e secretarias com status de ministérios. Entre as despesas obrigatórias, para as quais sempre falta dinheiro, estão a saúde e a segurança públicas. Diante disso, a pergunta a ser feita é: se a situação das contas públicas é tão difícil e a margem de manobra é tão pequena, por que ninguém reclama disso antes de assumir o poder?

A questão é justamente essa. Por menor que seja a margem de manobra, o dinheiro que sobra para as despesas discricionárias — ou seja, aquelas que o governo decide se fará ou não — ainda representa muito dinheiro. De mais ou menos R$ 500 bilhões. Por maior que essa bolada pareça, para os políticos o dinheiro público sempre parece pouco. E, por esse motivo, estão sempre brigando para aumentar a parte que lhes cabe no latifúndio dos recursos federais.

TEMA ÁRIDO

Veja por exemplo o caso do diligente Juscelino Filho — médico e criador de cavalos da raça Quarto de Milha que, desde janeiro de 2023, responde pela política brasileira de telecomunicações. Ele é, também, deputado pelo partido União Brasil — partido que, embora não tenha apoiado nem Lula nem Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, deu um jeito de se aproximar do candidato vitorioso assim que os resultados foram proclamados. E jurou ao presidente a fidelidade eterna de sua bancada de 59 deputados — em troca, claro, de duas ou três vagas na equipe de governo.

Juscelino deve ser imprescindível para as telecomunicações. Tanto assim que nem mesmo a comprovação de que ele usou parte do dinheiro das emendas a que tinha direito como deputado para pavimentar uma estrada que corta a propriedade de sua família, no interior do Maranhão, foi capaz de tirá-lo da Esplanada. Sacudido pela denúncia que apenas mostrava o critério que utiliza para aplicar o dinheiro do povo, o ginete não apenas conseguiu se equilibrar sobre a sela como acabou se tornando ainda mais firme no cargo. Na semana passada, Juscelino acabou premiado por Lula com um quinhão de dinheiro que não estava previsto no orçamento.

Em campanha aberta contra as Agências Reguladoras — órgãos públicos independentes, criados para equilibrar o relacionamento entre as concessionárias de serviços públicos e a sociedade —, o governo resolveu punir a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e premiar Juscelino com um fundo de R$ 3,1 bilhões a mais para gastar. O fundo é formado por uma parte do dinheiro obtido pelo governo com a outorga dos leilões da rede 5G realizado em 2021.

Com um decreto, Lula retirou da ANATEL a autoridade sobre os recursos destinados a administrar a instalação de Internet nas escolas públicas e os entregou ao diligente Juscelino. Horas depois, o ministro assinou uma portaria chamando para si a responsabilidade sobre o dinheiro.

Ninguém deve estranhar se, amanhã ou depois, alguém descobrir que as escolas de Santa Inês e de outros municípios da região maranhense do Vale do Pindaré, onde fica a base eleitoral de Juscelino, foram agraciadas com projetos generosos para instalação de internet. Calma! Ninguém aqui está dizendo que os estudantes dessas localidades não merecem desfrutar das maravilhas da conectividade nem que a população do interior maranhense deve ser privada de internet só porque o ministro colherá dividendos eleitorais pelo uso dessa verba. Nada disso!

O que está sendo dito é que, num jogo em que a distribuição de verbas é o critério que orienta a fidelidade dos políticos, o uso do dinheiro do povo não é feito com base no interesse público. O que interessa são os benefícios que os recursos do orçamento podem gerar a quem se apossa da chave do cofre. Num governo em que o acesso à verba pública parece ditar a fidelidade política dos ministros, qualquer voz que ouse defender a austeridade e o controle de gastos — como parece ser o caso do ministro Fernando Haddad — chega a soar fora do tom.

O tema é árido e os exemplos citados aqui têm caráter meramente ilustrativo. Enquanto o Brasil não entender que a saúde financeira do Estado é fundamental e tem como contrapartida o aumento de oportunidades para a sociedade; e enquanto os políticos não tiverem sua voracidade por recursos contida por mecanismos controlados pelos cidadãos, o governo viverá uma luta eterna de conseguir dinheiro aqui para gastar mais adiante. E o déficit público não será uma exceção — será a regra que cobrará seu preço na forma de juros altos, infraestrutura precária, carência habitacional e uma série de mazelas que, infelizmente, estão aí para quem quiser ver.

 

¨      Banco Central do Brasil – periférico e decorativo. Por Bruno Machado

Levando em conta o que é exaustivamente repetido nos noticiários, o medo da inflação parece ter se tornado a maior arma contra o povo brasileiro. Baseado no passado de hiperinflação dos anos 1980 que atingiu o Brasil, o medo da alta da inflação tem sido usado como freio para todo governo vigente.

Entretanto, como a hiperinflação só é casuada pela forte desvalorização da moeda frente ao dólar, que ocorre quando há grande escassez de dólares disponíveis na economia doméstica, esse medo não é racional no Brasil de hoje, com uma moeda estável e mais de 300 bilhões de dólares em reservas em dólar.

Além disso, a hiperinflação dos anos 1980 não foi uma jabuticaba brasileira, tendo ocorrido em toda América Latina e foi causada pela opção pelo desenvolvimento via dívida externa, associado à subida abrupta dos juros do Banco Central dos EUA. O mesmo ocorreu em relação ao Plano Real, que apesar de particularidades heterodoxas como a URV que assustaram até o FMI nos anos 1990, foi só mais um entre os múltiplos planos econômicos que resolveram o problema da hiperinflação latino-americana.

Desfeitos os mitos, há ainda um debate que precisa ser feito a respeito de qual taxa de inflação é esperada no Brasil. Desde a criação do real, a inflação anual média brasileira foi próxima de 5%, tendo muitos altos e baixos, o que no mínimo coloca em dúvida se uma meta de inflação em torno de 3% (que nunca é cumprida) faz sentido.

A exigência de uma inflação baixa, que só costuma ser cumprida no Brasil com recessão, suspeita ser muito mais uma exigência de estabilidade para o mercado financeiro do que uma busca por preservar o poder de compra do trabalhador, que depende de uma economia em crescimento para ter renda crescente.

Dessa maneira, a desvalorização do dólar pela via financeira se torna uma arma do mercado financeiro que busca segurança em seus lucros, servindo de desestabilizador da economia nacional sempre que seus interesses não forem amplamente colocados como prioridade. A existência de reservas em dólar serve de defesa contra esses ataques especulativos no curto prazo, mas não é ampla o suficiente para blindar nenhum governo do mercado financeiro internacional, principalmente o Brasil que tem o sistema bancário privado e pouco regulado, além de não deter um sistema de controle de fluxos de capitais.

Mas o problema é ainda maior. Como a taxa básica de juros da economia tem um impacto direto e imediato na taxa de câmbio, a tarefa do Banco Central na definição da SELIC se torna um papel mais de intermediador entre governo e mercado do que um papel de tomador de decisão. Na periferia do capitalismo, os países que não são centrais têm moedas fracas e, por isso, se tornam totais reféns do dólar, colocando seus bancos centrais em posições quase decorativas.

A saída para reduzir a instabilidade no preço do dólar doméstico é sofisticar o setor produtivo da economia. Enquanto no Brasil e em outros países periféricos o preço do dólar facilmente pode triplicar em quinze, em países centrais essa variação costuma ser muito menor, e isso tem a ver com o perfil de bens exportados pelo país em questão.

Enquanto o Brasil exporta majoritariamente commodities (que tem forte variação de preços ao longo dos anos), países centrais que exportam bens manufaturados (que tem menor variação de preços ao longo dos anos) têm moedas mais estáveis que o real. Dessa forma, quanto mais fraca e instável uma moeda nacional maior terá que ser os juros pagos como prêmio de risco aos detentores da dívida estatal emitida nessa moeda.

Isso não justifica, entretanto, uma SELIC que signifique 8% de juros real anual. Andre Lara Resende passou a defender nos últimos anos que a SELIC deveria ser composta pela previsão de inflação anual somada a um prêmio de risco associado ao real como moeda fraca. Entretanto, tal estratégia de finanças funcionais dependeria da política fiscal para controle sobre a demanda agregada, e os governos brasileiros perderam o poder de decisão sobre a política fiscal devido às desonerações e incentivos fiscais que na prática estão vinculadas ao controle do Congresso sobre o orçamento.

Só um plano de desenvolvimento econômico baseado no catching-up (alçamento) tecnológico, talvez até associado a uma paulatina estatização do sistema bancário poderia tornar um cenário de soberania monetária possível, mas encontraria enormes desafios econômicos e principalmente políticos. Qualquer tentativa de desenvolvimento via industrialização no Brasil assumiria riscos econômicos que a elite nacional não está disposta a assumir, além de significar também uma mudança na estrutura do poder econômico do país, hoje majoritário no agronegócio.

Do ponto de vista internacional, o desafio político seria ainda maior, já que o Brasil não foi convidado a se desenvolver economicamente pelos países centrais como foram, em diferentes proporções, os EUA, o Japão e a Coreia do Sul, por exemplo. Um plano nacional de desenvolvimento, como o elaborado por Ciro Gomes, não poderia ser posto em prática, portanto, sem algum grau de ruptura na estrutura social brasileira.

Dessa maneira, refém do dólar, o Banco Central do Brasil não tem todo esse poder de definir uma taxa de juros baseada em uma estratégia de equilíbrio entre inflação e emprego. Além disso, o governo federal sequer pode fazer uma política fiscal racional, que permita a retirada do teto de gastos de investimentos que trarão aumento da produtividade no futuro e que portanto não prejudicariam a famigerada relação dívida/PIB no longo prazo.

Como o mercado financeiro, com seus arsenais de dólares, não está interessado no desenvolvimento econômico, mas exclusivamente em reduzir riscos e garantir lucros, qualquer movimento desse tipo feito pelo governo federal levaria a uma forte saída de dólares do país e faria o Banco Central ser convocado a subir ainda mais a SELIC. Dessa maneira, qualquer governo no Brasil fica em uma situação de falta de soberania monetária (com uma atuação do Banco Central do Brasil que não poderia ser mais do que decorativa) e não pode também buscar o desenvolvimento das suas forças produtivas, já que nem controle sobre o próprio orçamento público tem.

Na periferia do sistema, tudo é muito mais complicado.

 

Fonte: O Dia/A Terra é Redonda

 

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