Nuno Vasconcellos: Um
país condenado ao déficit
Não importa se o
nome do ministro da Fazenda é Fernando Haddad. Ele poderia se chamar Paulo
Guedes. Poderia se chamar Pedro Malan, Dilson Funaro, Antônio Delfim Netto,
Octavio Gouvea de Bulhões, Eugenio Gudin ou ter qualquer outro nome. A verdade
é que, mantidas as regras atuais que — faça chuva ou faça sol — elevam as
despesas obrigatórias do governo acima da inflação, nenhum ministro, de nenhum
partido político, sob qualquer presidente da República, conseguiria manter as
contas federais em equilíbrio.
Se os critérios
para a elaboração do orçamento não forem alterados, o Brasil continuará sendo
um país condenado a conviver com um rombo fiscal que só aumentará. E mais: por
mais trabalhosas que sejam, reformas superficiais como a que está sendo feita atualmente
estão condenadas a ter vida curta.
Atualmente, o
ministro da Fazenda Fernando Haddad vem enfrentando uma batalha desgastante
para conseguir aprovar medidas que, tirando alguns bilhões daqui e outros
bilhões de lá, consigam dar a impressão de que o governo está conseguindo
vencer a guerra contra o déficit. A ideia é economizar R$ 30 bilhões em 2025 e
R$ 40 bilhões em 2026.
O problema é que,
por maior que seja o desgaste enfrentado neste momento, o esforço será
insuficiente para solucionar o problema e logo será necessário outro pacote
para impedir que o déficit fuja do controle. E a culpa, por incrível que
pareça, não é só da mania que o atual governo tem de criar despesas e mais
despesas sem saber de onde tirará dinheiro para cobri-las. O problema é
estrutural.
Isso mesmo! Ainda
que Luiz Inácio Lula da Silva, que tem fama de gastador, fosse substituído por
alguém de espírito asceta, nenhum presidente da República conseguiria levar o
país ao equilíbrio fiscal num cenário desenhado para que o governo não tenha o
poder de impedir o crescimento dos próprios custos. Isso mesmo! Na situação
atual, mais de 91% das despesas federais, além de obrigatórias, têm mecanismos
automáticos de reajustes e muitas delas sempre crescem acima da inflação.
Apenas pouco mais de 8% do dinheiro federal, portanto, estão sujeitos às
decisões do Executivo.
E para acrescentar
um ingrediente a mais na receita intragável que cerca a saúde das contas
federais, uma parte do percentual diminuto que pode ser alterado, de uns tempos
para cá, ainda está sujeito à gulodice dos senhores deputados federais e
senadores. Isso mesmo! Desde o governo de Dilma Rousseff, os parlamentares
brasileiros decidiram rasgar a fantasia e delegaram a si mesmos a tarefa de
determinar onde e como gastar parte do dinheiro que o Fisco tira do sofrido
contribuinte brasileiro. Para 2025, essa brincadeira vai custar, pelo menos, R$
40 bilhões. É o Poder Legislativo brincando de ser Poder Executivo sem arcar
com as consequências das irresponsabilidades que vier a cometer!
O MÁXIMO E O MÍNIMO
Este é o ponto que
interessa: consumido pelos salários sempre crescentes dos servidores, pelas
aposentadorias mais do que generosas das categorias mais privilegiadas do
funcionalismo, pelos juros exorbitantes da dívida pública e pela mania
incontrolável que o governo tem de distribuir benefícios sem saber se o
contribuinte terá meios de pagá-los, o orçamento federal é um cobertor generoso
para uns e curtíssimo para outros. E, para que o dinheiro continue sobrando
para os que são sempre beneficiados, ele terá sempre que continuar faltando
para as rubricas que vivem à míngua de recursos.
E, como se não
bastasse o rombo na União, os orçamentos dos estados e dos municípios seguem
pelo mesmo caminho e sempre preveem despesas que crescem sem que o Erário tenha
condições de cobri-las sem aumentar o déficit. Na semana passada, o ministro
Fernando Haddad tomou a decisão de incluir no pacote de corte de gastos um
dispositivo que apenas reafirma o que diz o inciso IX do artigo 37 da Constituição.
Ali está escrito que nenhum funcionário público do Brasil pode ter vencimentos
superiores aos de um ministro do Supremo Tribunal Federal — que é de R$
41.650,92. Mesmo assim, um grupo de juízes e promotores resolveu se manifestar.
A despeito do que
diz a Carta Magna, os magistrados do país sempre deram um jeito de burlar a lei
e transformar em mínimo o salário máximo a que teriam direito. É difícil
encontrar no Poder Judiciário nacional algum juiz com mais de cinco anos de
carreira que ganhe “apenas” os R$ 41.650,92 previstos em lei. Todos os
contracheques acabam inflacionados por férias, licenças, salários
extraordinários e outros estipêndios que os multiplica com muita generosidade e
faz com que vencimentos superiores a R$ 100 mil sejam considerados modestos.
Diante do pacote
elaborado por Haddad, que apenas reafirma o que está na Constituição, um grupo
de associações que representam juízes, procuradores e outros grupos
beneficiados por uma possibilidade que não se estende ao contribuinte
brasileiro comum se uniu para alertar para os riscos da aplicação da lei.
Disseram que a aprovação da medida abriria uma leva de aposentadorias e que
isso, ao invés de conter as despesas com os salários desses servidores,
acabaria gerando despesas ainda maiores.
OBRA DE FICÇÃO
O debate em torno
desse ponto ainda vai longe e tudo o que ele revela, por enquanto, é a
dificuldade que o governo — qualquer governo, e não apenas o do presidente Lula
— tem para desarmar as arapucas fiscais que pressionam as despesas para o alto.
Quem está no poder sempre considera o orçamento uma fera indomável — que nem o
domador mais habilidoso é capaz de controlar. Quem está na oposição se refere a
ele como se fosse um gatinho dócil, que obedece ao menor sinal de comando. Na
verdade, porém, ele não é uma coisa nem outra.
O orçamento da
União, uma montanha de dinheiro que chegará a quase R$ 6 trilhões no ano que
vem, no fundo não passa de uma obra de ficção. Ele é montado sobre a premissa
de que o Estado deve se meter em tudo, se responsabilizar por tudo, dar conta
de tudo. E, em função dessa postura, destina milhões e milhões para despesas
secundárias e deixa de investir naquilo que é essencial.
Entre as despesas
desnecessárias estão aquelas geradas por uma estrutura ministerial
administrativa balofa e pesadona, que atualmente conta com nada menos que 37
ministérios e secretarias com status de ministérios. Entre as despesas
obrigatórias, para as quais sempre falta dinheiro, estão a saúde e a segurança
públicas. Diante disso, a pergunta a ser feita é: se a situação das contas
públicas é tão difícil e a margem de manobra é tão pequena, por que ninguém
reclama disso antes de assumir o poder?
A questão é
justamente essa. Por menor que seja a margem de manobra, o dinheiro que sobra
para as despesas discricionárias — ou seja, aquelas que o governo decide se
fará ou não — ainda representa muito dinheiro. De mais ou menos R$ 500 bilhões.
Por maior que essa bolada pareça, para os políticos o dinheiro público sempre
parece pouco. E, por esse motivo, estão sempre brigando para aumentar a parte
que lhes cabe no latifúndio dos recursos federais.
TEMA ÁRIDO
Veja por exemplo o
caso do diligente Juscelino Filho — médico e criador de cavalos da raça Quarto
de Milha que, desde janeiro de 2023, responde pela política brasileira de
telecomunicações. Ele é, também, deputado pelo partido União Brasil — partido
que, embora não tenha apoiado nem Lula nem Jair Bolsonaro nas eleições de 2022,
deu um jeito de se aproximar do candidato vitorioso assim que os resultados foram
proclamados. E jurou ao presidente a fidelidade eterna de sua bancada de 59
deputados — em troca, claro, de duas ou três vagas na equipe de governo.
Juscelino deve ser
imprescindível para as telecomunicações. Tanto assim que nem mesmo a
comprovação de que ele usou parte do dinheiro das emendas a que tinha direito
como deputado para pavimentar uma estrada que corta a propriedade de sua
família, no interior do Maranhão, foi capaz de tirá-lo da Esplanada. Sacudido
pela denúncia que apenas mostrava o critério que utiliza para aplicar o
dinheiro do povo, o ginete não apenas conseguiu se equilibrar sobre a sela como
acabou se tornando ainda mais firme no cargo. Na semana passada, Juscelino
acabou premiado por Lula com um quinhão de dinheiro que não estava previsto no
orçamento.
Em campanha aberta
contra as Agências Reguladoras — órgãos públicos independentes, criados para
equilibrar o relacionamento entre as concessionárias de serviços públicos e a
sociedade —, o governo resolveu punir a Agência Nacional de Telecomunicações
(ANATEL) e premiar Juscelino com um fundo de R$ 3,1 bilhões a mais para gastar.
O fundo é formado por uma parte do dinheiro obtido pelo governo com a outorga
dos leilões da rede 5G realizado em 2021.
Com um decreto,
Lula retirou da ANATEL a autoridade sobre os recursos destinados a administrar
a instalação de Internet nas escolas públicas e os entregou ao diligente
Juscelino. Horas depois, o ministro assinou uma portaria chamando para si a
responsabilidade sobre o dinheiro.
Ninguém deve
estranhar se, amanhã ou depois, alguém descobrir que as escolas de Santa Inês e
de outros municípios da região maranhense do Vale do Pindaré, onde fica a base
eleitoral de Juscelino, foram agraciadas com projetos generosos para instalação
de internet. Calma! Ninguém aqui está dizendo que os estudantes dessas
localidades não merecem desfrutar das maravilhas da conectividade nem que a
população do interior maranhense deve ser privada de internet só porque o
ministro colherá dividendos eleitorais pelo uso dessa verba. Nada disso!
O que está sendo
dito é que, num jogo em que a distribuição de verbas é o critério que orienta a
fidelidade dos políticos, o uso do dinheiro do povo não é feito com base no
interesse público. O que interessa são os benefícios que os recursos do
orçamento podem gerar a quem se apossa da chave do cofre. Num governo em que o
acesso à verba pública parece ditar a fidelidade política dos ministros,
qualquer voz que ouse defender a austeridade e o controle de gastos — como
parece ser o caso do ministro Fernando Haddad — chega a soar fora do tom.
O tema é árido e os
exemplos citados aqui têm caráter meramente ilustrativo. Enquanto o Brasil não
entender que a saúde financeira do Estado é fundamental e tem como
contrapartida o aumento de oportunidades para a sociedade; e enquanto os
políticos não tiverem sua voracidade por recursos contida por mecanismos
controlados pelos cidadãos, o governo viverá uma luta eterna de conseguir
dinheiro aqui para gastar mais adiante. E o déficit público não será uma exceção
— será a regra que cobrará seu preço na forma de juros altos, infraestrutura
precária, carência habitacional e uma série de mazelas que, infelizmente, estão
aí para quem quiser ver.
¨ Banco Central do Brasil – periférico e decorativo. Por
Bruno Machado
Levando em conta o
que é exaustivamente repetido nos noticiários, o medo da inflação parece ter se
tornado a maior arma contra o povo brasileiro. Baseado no passado de
hiperinflação dos anos 1980 que atingiu o Brasil, o medo da alta da inflação
tem sido usado como freio para todo governo vigente.
Entretanto, como a
hiperinflação só é casuada pela forte desvalorização da moeda frente ao dólar,
que ocorre quando há grande escassez de dólares disponíveis na economia
doméstica, esse medo não é racional no Brasil de hoje, com uma moeda estável e
mais de 300 bilhões de dólares em reservas em dólar.
Além disso, a
hiperinflação dos anos 1980 não foi uma jabuticaba brasileira, tendo ocorrido
em toda América Latina e foi causada pela opção pelo desenvolvimento via dívida
externa, associado à subida abrupta dos juros do Banco Central dos EUA. O mesmo
ocorreu em relação ao Plano Real, que apesar de particularidades heterodoxas
como a URV que assustaram até o FMI nos anos 1990, foi só mais um entre os
múltiplos planos econômicos que resolveram o problema da hiperinflação
latino-americana.
Desfeitos os mitos,
há ainda um debate que precisa ser feito a respeito de qual taxa de inflação é
esperada no Brasil. Desde a criação do real, a inflação anual média brasileira
foi próxima de 5%, tendo muitos altos e baixos, o que no mínimo coloca em
dúvida se uma meta de inflação em torno de 3% (que nunca é cumprida) faz
sentido.
A exigência de uma
inflação baixa, que só costuma ser cumprida no Brasil com recessão, suspeita
ser muito mais uma exigência de estabilidade para o mercado financeiro do que
uma busca por preservar o poder de compra do trabalhador, que depende de uma
economia em crescimento para ter renda crescente.
Dessa maneira, a
desvalorização do dólar pela via financeira se torna uma arma do mercado
financeiro que busca segurança em seus lucros, servindo de desestabilizador da
economia nacional sempre que seus interesses não forem amplamente colocados
como prioridade. A existência de reservas em dólar serve de defesa contra esses
ataques especulativos no curto prazo, mas não é ampla o suficiente para blindar
nenhum governo do mercado financeiro internacional, principalmente o Brasil que
tem o sistema bancário privado e pouco regulado, além de não deter um sistema
de controle de fluxos de capitais.
Mas o problema é
ainda maior. Como a taxa básica de juros da economia tem um impacto direto e
imediato na taxa de câmbio, a tarefa do Banco Central na definição da SELIC se
torna um papel mais de intermediador entre governo e mercado do que um papel de
tomador de decisão. Na periferia do capitalismo, os países que não são centrais
têm moedas fracas e, por isso, se tornam totais reféns do dólar, colocando seus
bancos centrais em posições quase decorativas.
A saída para
reduzir a instabilidade no preço do dólar doméstico é sofisticar o setor
produtivo da economia. Enquanto no Brasil e em outros países periféricos o
preço do dólar facilmente pode triplicar em quinze, em países centrais essa
variação costuma ser muito menor, e isso tem a ver com o perfil de bens
exportados pelo país em questão.
Enquanto o Brasil
exporta majoritariamente commodities (que tem forte variação de
preços ao longo dos anos), países centrais que exportam bens manufaturados (que
tem menor variação de preços ao longo dos anos) têm moedas mais estáveis que o
real. Dessa forma, quanto mais fraca e instável uma moeda nacional maior terá
que ser os juros pagos como prêmio de risco aos detentores da dívida estatal
emitida nessa moeda.
Isso não justifica,
entretanto, uma SELIC que signifique 8% de juros real anual. Andre Lara Resende
passou a defender nos últimos anos que a SELIC deveria ser composta pela
previsão de inflação anual somada a um prêmio de risco associado ao real como
moeda fraca. Entretanto, tal estratégia de finanças funcionais dependeria da
política fiscal para controle sobre a demanda agregada, e os governos
brasileiros perderam o poder de decisão sobre a política fiscal devido às
desonerações e incentivos fiscais que na prática estão vinculadas ao controle
do Congresso sobre o orçamento.
Só um plano de
desenvolvimento econômico baseado no catching-up (alçamento)
tecnológico, talvez até associado a uma paulatina estatização do sistema
bancário poderia tornar um cenário de soberania monetária possível, mas encontraria
enormes desafios econômicos e principalmente políticos. Qualquer tentativa de
desenvolvimento via industrialização no Brasil assumiria riscos econômicos que
a elite nacional não está disposta a assumir, além de significar também uma
mudança na estrutura do poder econômico do país, hoje majoritário no
agronegócio.
Do ponto de vista
internacional, o desafio político seria ainda maior, já que o Brasil não foi
convidado a se desenvolver economicamente pelos países centrais como foram, em
diferentes proporções, os EUA, o Japão e a Coreia do Sul, por exemplo. Um plano
nacional de desenvolvimento, como o elaborado por Ciro Gomes, não poderia ser
posto em prática, portanto, sem algum grau de ruptura na estrutura social
brasileira.
Dessa maneira,
refém do dólar, o Banco Central do Brasil não tem todo esse poder de definir
uma taxa de juros baseada em uma estratégia de equilíbrio entre inflação e
emprego. Além disso, o governo federal sequer pode fazer uma política fiscal
racional, que permita a retirada do teto de gastos de investimentos que trarão
aumento da produtividade no futuro e que portanto não prejudicariam a
famigerada relação dívida/PIB no longo prazo.
Como o mercado
financeiro, com seus arsenais de dólares, não está interessado no
desenvolvimento econômico, mas exclusivamente em reduzir riscos e garantir
lucros, qualquer movimento desse tipo feito pelo governo federal levaria a uma
forte saída de dólares do país e faria o Banco Central ser convocado a subir
ainda mais a SELIC. Dessa maneira, qualquer governo no Brasil fica em uma
situação de falta de soberania monetária (com uma atuação do Banco Central do
Brasil que não poderia ser mais do que decorativa) e não pode também buscar o
desenvolvimento das suas forças produtivas, já que nem controle sobre o próprio
orçamento público tem.
Na periferia do
sistema, tudo é muito mais complicado.
Fonte: O Dia/A
Terra é Redonda
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