Em defesa da família tentacular
Uma das queixas que
os psicanalistas mais escutam em seus consultórios é esta: “Eu queria tanto ter
uma família normal!”. Adolescentes filhos de pais separados ressentem-se
da ausência do pai (ou da mãe) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de que não
conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam a si próprias de
não terem sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma
segunda chance de formar uma família. Mães solteiras morrem de culpa porque não
deram aos filhos uma “verdadeira família”. E os jovens solteiros depositam
grandes esperanças na possibilidade de constituir famílias diferentes — isto é,
melhores — daquelas de onde vieram. Acima de toda essa falação, paira um
discurso institucional que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro
de degradação social em que vivemos.
Os enunciadores
desse discurso podem ser juristas, pedagogos, religiosos, psicólogos. A
imprensa é seu veículo privilegiado: a cada ano, muitas vezes por ano,
jornais e revistas entrevistam “profissionais da área” para enfatizar a relação
entre a dissolução da família tal como a conhecíamos até a primeira metade do
século XX e a delinquência juvenil, a violência, as drogadições, a
desorientação dos jovens etc. Como se acreditassem que a família é o núcleo de
transmissão de poder que pode e deve arcar, sozinha, com todo o edifício da
moralidade e da ordem nacionais. Como se a crise social que afeta todo o país
não tivesse nenhuma relação com a degradação dos espaços públicos que vem
ocorrendo sistematicamente no Brasil, atingindo particularmente as camadas mais
pobres há quase quarenta anos. E sobretudo como se ignorassem o que nós,
psicanalistas, não podemos jamais esquecer: a família nuclear “normal”,
monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre o início do século
XIX até meados do XX no Ocidente (tão pouco tempo? pois é…), foi o grande
laboratório das neuroses tal como a psicanálise, justamente naquele período,
veio a conhecer.
A cada novo censo
demográfico realizado no Brasil, renova-se a evidência de que a família não é
mais a mesma. Mas “a mesma” em relação a quê? Onde se situa o marco zero em
relação ao qual medimos o grau de “dissolução” da família contemporânea? A
frase “a família não é mais a mesma” já indica a crença de que em algum momento
a família brasileira teria correspondido a um padrão fora da história. Indica
que avaliamos nossa vida familiar em comparação a um modelo de família
idealizado, modelo que correspondeu às necessidades da sociedade burguesa emergente
em meados do século XIX. De fato, estudos demográficos recentes indicam
tendências de afastamento em relação a esse padrão, que as classes médias
brasileiras adotaram como ideal.
(…)
Nesse cenário de
extrema mobilidade das configurações familiares, novas formas de convívio vêm
sendo improvisadas em torno da necessidade — que não se alterou — de criar os
filhos, frutos de uniões amorosas temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos
homens, consegue mais obrigar a que se eternizem. A sociedade contemporânea,
regida acima de tudo por leis de mercado que disseminam imperativos de
bem-estar, prazer e satisfação imediata de todos os desejos, só reconhece o
amor e a realização sexual como fundamentos legítimos das uniões conjugais. A
liberdade de escolha que essa mudança moral proporciona, a possibilidade (real)
de tentar corrigir um sem-número de vezes o próprio destino, cobra seu preço em
desamparo e mal-estar. O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser
uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e
precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e
dos impulsos sexuais. O mal-estar vem da dívida que cobramos ao comparar a
família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos
pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal
de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não
necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para
encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?
(…)
Não é necessário
retroceder até as revoluções burguesas europeias para procurar o que se perdeu
no Ocidente, e particularmente no Brasil, a partir dos anos 1950. Basta
recordar o que foi a “tradicional família brasileira” para perguntar: o que
estamos lamentando que tenha se perdido ou transformado? Será que a sociedade
seria mais saudável se ainda se mantivesse organizada nos moldes das grandes
famílias rurais, a um só tempo protegidas e oprimidas pelo patriarca da casa grande
que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões? Temos saudade
da família organizada em torno do patriarca fundiário, com sua contrapartida de
filhos ilegítimos abandonados na senzala ou na colônia, a esposa oficial calada
e suspirosa, os filhos obedientes e temerosos do pai, dentre os quais se
destacariam um ou dois futuros aprendizes de tiranete doméstico? O
sentimento retroativo de conforto e segurança que projetamos nostalgicamente
sobre o patriarcado rural brasileiro não seria, como bem apontou Roberto
Schwarz em “As ideias fora do lugar”, tributário da exploração do trabalho
escravo, que o Brasil foi o último país a abolir já quase às portas do século
XX?
Ou será que temos
saudade da família emergente das classes médias urbanas, fechada sobre si
mesma, incestuosa como em um drama de Nelson Rodrigues, temerosa de qualquer
contágio com membros da camada imediatamente inferior, mantidos à distância às
custas de preconceitos e restrições absurdas? Saudades das famílias “de bem”
que viviam atemorizadas em relação aos próprios vizinhos, com medo de cada nova
fase da vida, apavoradas com a sexualidade dos filhos e filhas adolescentes —
maledicentes e invejosas da vida alheia, administrando a vida conjugal como se
administra um pequeno negócio? Saudades dos casamentos induzidos a partir de
namoros quase endogâmicos, rigorosamente restritos a gente do nosso nível e
mantidos à custa da dependência econômica, da inexperiência sexual e da
alienação das mulheres?
(…)
De certa
forma, a família desprivatizou-se a partir da segunda metade do século XX,
não porque o espaço público tenha voltado a ter a importância que teve na vida
social até o século XVIII, mas porque o núcleo central da família contemporânea
foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e
crianças vindas de outras famílias. Na confusa árvore genealógica da família
tentacular, irmãos não consanguíneos convivem com “padrastos” ou “madrastas”
(na falta de termos melhores), às vezes já de uma segunda ou terceira união de
um de seus pais, acumulando vínculos profundos com pessoas que não fazem parte
do núcleo original de suas vidas. Cada uma dessas árvores super ramificadas
guarda o traçado das moções de desejo dos adultos ao longo das várias fases de
suas vidas — desejo errático, tornado ainda mais complexo no quadro de uma
cultura que possibilita e exige dos sujeitos que lutem incansavelmente para
satisfazer suas fantasias.
É importante
observar também o papel da mídia, particularmente da televisão, doméstica e
onipresente, no rompimento do isolamento familiar e, consequentemente, na
dificuldade crescente dos pais de controlar o que vai ser transmitido a seus
filhos. A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais
arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho
irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados,
esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser
portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em
que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão
que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o
mais parecido possível com os ideais da família do passado. Ideal que não
deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de
felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for
superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva
dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com
afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.
Fonte: Por Maria
Rita Kehl, no Blog da Boitempo
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