Por que estamos
vivendo na 'era de ouro dos sósias'
Em março deste ano,
uma pessoa com os mesmos olhos felinos, cabelos loiros e altas maçãs do rosto
de Kate Moss desfilou na
Semana de Moda de Paris, na
França. Mas não era a supermodelo.
O desfile gerou
confusão na internet. "Aquela não é apenas Kate Moss?", dizia um
comentário. Outra frase comum, de incredulidade, era "aquela é Kate
Moss".
Mas, para alguns
poucos olhares atentos, o andar da personagem revelou que realmente não se
tratava da famosa supermodelo britânica, mas sim de Denise Ohnona – sósia de Moss, de
Lancashire, no noroeste da Inglaterra.
A alta costura
parece ter criado uma tendência. Ao longo do ano, as comportas se abriram para
uma verdadeira onda de concursos de sósias de celebridades.
Primeiro, os homens
que se achavam a cópia fiel do ator Timothée Chalamet se reuniram no Washington
Square Park, em Nova York, nos Estados Unidos. Depois, moradores de Dublin, na
Irlanda, decidiram mostrar que são parecidos com o ator irlandês Paul Mescal.
Em seguida, veio o
concurso de sósias do ator e cantor Harry Styles. Depois, foi a vez dos atores
Dev Patel e Jeremy Allen White (da série O Urso), do cantor Zayn Malik, da
cantora e atriz Zendaya e assim por diante – e outros concursos estão
programados para o mês de dezembro.
Esta moda recente
parece ser muito atual. Seu alcance foi global, com cada evento viralizando nas
redes sociais de forma alucinante. Mas os concursos de sósias não são uma
invenção moderna.
Nos anos
1920, Charles Chaplin (1889-1977)
foi o terceiro colocado em um concurso para encontrar sósias dele mesmo,
segundo conta um de seus filhos, Charles Chaplin Jr. (1925-1968), no seu livro
My Father, Charlie Chaplin (sem edição em português):
"Papai sempre
achou que esta é uma das brincadeiras mais engraçadas que se pode
imaginar", conta o filho. Mas o pai teria negado a veracidade da história.
Um caso mais fácil
de comprovar é o da cantora Dolly Parton. Ela conta em suas memórias que
participou de um concurso de sósias dela mesma. No livro, ela relembra que foi
"a menos aplaudida, mas eu simplesmente morria de rir por dentro".
O ator Andy Harmer
não se lembra de um ano mais concorrido para os sósias do que 2024. Ele é sósia
do jogador de futebol David Beckham e dirige uma agência de sósias.
Os registros de
Harmer incluem mais de 3 mil pessoas que compartilham parte da essência de
alguém famoso, desde o arquiteto britânico Isambard Kingdom Brunel (1806-1859)
até personagens mais atuais, como as cantoras Rihanna e Ariana Grande.
Ohnona, a sósia de
Kate Moss, é um dos principais nomes da agência.
Os concursos de
sósias são os exemplos mais presentes e comentados do ano, mas não foram os
únicos a abordar este tema. Filmes, livros e programas de TV trouxeram os
sósias para perto do público em 2024.
O professor de
estudos americanos Adam Golub está escrevendo um livro sobre os sósias na
cultura americana. Para ele, "não há dúvidas de que estamos vivendo uma
nova era de ouro dos sósias".
Os sósias costumam
ir e vir de tempos em tempos na cultura popular. Mas, agora, "eles
definitivamente voltaram se vingando", declarou Golub à BBC.
Em junho, a
escritora e ativista canadense Naomi Klein foi a primeira ganhar o Prêmio de
Não Ficção para Mulheres pelo livro Doppelganger: A Trip into the Mirror World
("Sósias: uma viagem para o mundo dos espelhos", em tradução livre). Nele,
Klein mergulha no mundo conspiratório de uma pessoa com quem ela foi
seguidamente confundida online – a controversa escritora Naomi Wolf.
O livro de Klein
foi publicado após um romance pós-pandemia da escritora Deborah Levy, cuja
personagem central viaja pelo mundo encontrando uma sósia.
"Ela era eu e
eu era ela. Talvez ela fosse um pouco mais de mim do que eu", escreve ela
em August Blue ("Tristeza de agosto", em tradução livre).
Mas o que é, na
verdade, um sósia?
"Uma forma
fácil de pensar em um sósia é como um segundo 'eu' não biológico", explica
Golub. "É um dublê de identidade que não tem relação com você."
A professora de
estudos culturais Alia Soliman é a autora do livro Doppelganger in Our Time:
Visions of Alterity in Literature, Visual Culture and New Media ("Sósias
no nosso tempo: visões da alteridade na literatura, cultura visual e novos
meios de comunicação", em tradução livre). Ela conta à BBC que o termo em
alemão para sósia (Doppelgänger – literalmente, "andarilho duplo")
foi cunhado pelo escritor alemão Jean Paul Richter (1763-1825).
A cultura antiga e
moderna explorou temas de identidade, morte e a natureza simbiótica do bem e do
mal, usando a ideia do sósia.
Os sósias foram
objetos de arte, como as pinturas surrealistas de René Magritte (1898-1967) e
dos pré-rafaelitas, como Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). Seu quadro Como
Eles se Conheceram (1860-1864) mostra um par de amantes encontrando seus sósias
em um bosque.
Soliman explica
que, na sua forma literária original, o sósia "assume a forma de um 'eu'
fantasmagórico ou um reflexo sombrio que atormenta o primeiro 'eu'".
Ela se refere a
obras como A História Maravilhosa de Peter Schlemihl (Ed. Estação Liberdade,
2003), de Adelbert von Chamisso (1781-1838); o conto William Wilson, de Edgar
Allan Poe (1809-1849); O Duplo (Ed. 34, 2013), de Fiódor Dostoiévski
(1821-1881); e O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (Ed. Hedra, 2011), de
Robert Louis Stevenson (1850-1894).
Soliman conta que
quase toda a literatura mais antiga "observa a destruição do original e do
segundo 'eu'".
O mesmo pode ser
dito das "ilustrações folclóricas da aparição, como o fetch irlandês e o
fylgia nórdico, [em que] a aparição do sósia prenuncia o fim da vida ou a
aproximação do mal".
O fylgia é
considerado mais um alter ego, tipicamente em forma de animal. Ele é observado
com mais frequência durante o sono. Já o fetch é considerado um duplo espírito.
No poema The Fetch,
o poeta norte-irlandês Ciaran Carson (1948-2019) escreveu:
"Ver seu
próprio sósia é um presságio da morte... Shelley o viu nadando em direção a ele
antes de afundar. Lincoln encontrou seu fetch na entrada do palco antes de
receber o tiro."
O autor se refere a
supostos encontros com sósias ocorridos pouco antes da morte do poeta inglês P.
B. Shelley (1792-1822) e do presidente americano Abraham Lincoln (1809-1865).
O ensaio O
Infamiliar (Ed. Autêntica, 2019), de Sigmund Freud (1856-1939), é uma obra de
referência sobre o tema dos sósias. Nele, o sósia é misterioso. Freud o
descreve como "pertencente a tudo o que é terrível – a tudo o que causa
medo e horror arrepiante".
O sósia era,
portanto, algo que devia ser temido. "Ele quer assumir a sua
identidade", segundo Golub.
Este tema é
explorado no filme de estreia do diretor J. C. Doler The Fetch (2024), indicado
na categoria de filmes de terror no recente Festival de Cinema de Austin, no
Texas (Estados Unidos).
O sósia também está
presente no filme A Substância (2024), da diretora Coralie Fargeat. Nele, uma
atriz de Hollywood de meia idade, interpretada por Demi Moore, observa sua
clone mais jovem (Margaret Qualley) viver a vida que ela teve no passado.
E o tema pode ser
observado com mais clareza na metáfora da troca de corpos, tão popular na
ficção científica.
"Você pode ser
substituído por um alienígena, um robô ou algum tipo de ser sobrenatural, um
gêmeo malvado de outra dimensão", segundo Golub. "De forma geral, nas
nossas histórias sobre sósias, o nosso outro 'eu' não é bem-vindo."
Mas Soliman destaca
que tudo mudou na segunda metade do século 20, quando os retratos dos sósias
"mudaram significativamente de forma, teor e mensagem".
Atualmente, o sósia
é visto de forma diferente. Basta pensar em Chalamet surgindo para tirar fotos
com os participantes do concurso de sósias dele mesmo.
O que Soliman chama
de "o novo sósia" é menos perverso e difamado. Nas representações dos
novos sósias, "o encontro entre o 'eu' e o sósia muda de estrutura e
significado, trazendo uma mensagem redentora".
A jovem clone de A
Substância, por exemplo, é irritante, mas não uma adversária temida. E os
concursos de sósias são eventos engraçados, saudáveis e pitorescos, à moda
antiga.
Afinal, existe um
pouco de humor absurdo ao observar pessoas parecidas entre si.
Neste novo
contexto, não surpreende que as pessoas estejam procurando ativamente pelos
seus sósias em uma série de aplicativos específicos. Ou que um dos mais
importantes projetos relativos aos sósias dos últimos tempos tenha sido o
ensaio fotográfico do artista canadense François Brunelle.
Inspirado pela sua
própria semelhança com o personagem do cinema e da TV Mr. Bean, de Rowan
Atkinson, Brunelle encontrou centenas de sósias, criando uma obra que oferece
uma mensagem de esperança e unidade.
"Estamos
reformulando nossa relação com os sósias", afirma Golub. "Estamos
escrevendo um final feliz para esta história, meio que encontrando nosso
estranho irmão gêmeo e formando laços com ele – ou vencendo um concurso de
sósias de celebridades."
Os especialistas
oferecem diversas razões para esta mudança de paradigma.
Soliman relembra o surgimento
da World Wide Web, em 1993. Para ela, a Web "gerou uma nova série de
fixações induzidas pela tecnologia e uma delas é a busca do nosso sósia
digital". E a internet fez com que esta busca ficasse muito mais fácil.
"As
oportunidades e complexidades resultantes das inovações visuais e virtuais nas
redes sociais influenciaram a cultura do duplo 'eu'", explica Soliman.
"As pessoas têm acesso muito mais fácil aos seus sósias."
"Por que não
ficamos assustados com essas coisas que, de alguma forma, representam algo que
deveríamos reprimir?", pergunta Golub, referindo-se à visão original dos
sósias.
Ele acha que, na
era digital, todos nós nos acostumamos a ter duas ou, às vezes, mais
identidades: "eus" físicos e "eus" online, com diferentes
vozes nas diversas redes sociais.
Para ele, estamos
"nos voltando para este tipo de brincadeira, esta diversão, esta legião de
fãs dos sósias" para lidar com isso.
"Talvez seja
uma forma de nos sentirmos inteiros outra vez... encontrar uma versão de si
próprio que não pretende roubar sua identidade, nem tirar nada de você, mas que
pode simplesmente tirar uma foto com você e melhorar a sua vida."
A questão dos
sósias passou a ser sobre a conexão a uma comunidade fora da internet.
"As redes
sociais meio que atraem a nós todos para suas bolhas estranhas e a ideia de que
existe alguém igual a nós por aí, vivendo a vida de outra forma, é uma ideia
muito reconfortante", explica a psicanalista Anouchka Grose. Ela passou
pela experiência de ser confundida repetidamente com uma atriz da novela
Hollyoaks, da TV britânica.
Os jovens,
especialmente – talvez os mais pulverizados em diversas identidades online –,
podem buscar conexão com os concursos de sósias fora da internet. E, viralidade
digital à parte, estes encontros parecem ocorrer no ambiente saudável das
feiras rurais, com cartazes simples convidando as pessoas a comparecer e
pequenos prêmios em dinheiro para os vencedores.
Mas a diversão
talvez não dure muito tempo. No lado oposto ao fenômeno dos sósias, surge no
horizonte digital o espectro dos deep fakes – sósias falsos que podem nos levar
a pensar que são os originais.
"A
inteligência artificial irá perturbar muitas coisas nas nossas vidas",
prevê Golub.
Para ele, a fase
atual, de brincadeiras agradáveis em torno dos sósias, pode acabar tendo vida
curta, "quando começarmos a ver alguns dos perigos reais que [os deep
fakes] podem trazer. Acho melhor aproveitar a diversão enquanto pudermos."
Fonte: BBC Culture
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