quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Diogo Fagundes: Europa e Síria – desorientação e caos

Vivemos tempos de desorientação e caos. A ordem mundial construída após o fim da Segunda Guerra Mundial desmoronou e nada ocupou seu lugar. Os EUA, dominados pela húbris imperial, após o fim da URSS, não soube ou não quis criar um ambiente global estável e capaz de abarcar interesses de outras potências. O exclusivismo unipolar inviabilizou qualquer arranjo arquitetônico viável. Neste ínterim, entre o velho que agoniza e o novo que custa a nascer, como falava Antonio Gramsci, monstros são produzidos. Eis uma mirada panorâmica de dois locais nevrálgicos para uma possível conflagração mundial: Oriente Médio e Europa.

·       Síria

A derrota rápida e impressionante do regime de Hafez al-Assad indica mais uma espécie de implosão interna do que derrota militar. Os rebeldes sírios atropelaram tudo num furacão, tomando Aleppo, Hama e Homs em um curtíssimo período de tempo. É bom lembrar que essas cidades foram palco de empedernida e tenaz luta durante a guerra de 2011 a 2014, com combates bairro a bairro, palmo a palmo. A comparação entre ambos os eventos impressiona. Indica a total falência do baathismo sírio. Estados que se sustentam apenas com ajuda externa, sem apoio interno, não têm chance alguma de se viabilizarem no longo prazo.

Tudo isso tem que ser compreendido à luz do estado bastante singular do país após sua (improvável, é bom lembrar) sobreviência, com auxílio decisivo de Rússia, Hezbollah e Irã. Na prática, era um Estado não totalmente soberano, com EUA ocupando o leste do país – onde há muito petróleo –, refém do jogo geopolítico, alvo de pesadas sanções econômicas, lidando com constantes ataques aéreos israelenses e guerra “proxy“. Um modelo do imperialismo do século XXI: uma zona anárquica onde coexistem grupos jihadistas, anomia e vastos interesses econômicos e geopolíticos.

É bastante compreensível que muita gente oprimida enxergue a situação como libertação. Hafez al-Bashar não era tão carniceiro quanto seu pai, mas ainda assim deixou muita gente justamente revoltada. No plano econômico, o estilo mais “socialista” foi abandonado a partir dos anos 1990. Acontece que é muito improvável que uma situação de estabilidade e paz se consolide. Em primeiro lugar, porque quem lidera a insurgência é o HTS, um “rebranding” da Al-Nusra (a filial local da Al-Qaeda), que tanta destruição e barbaridade cometeu na região.

Por mais que a retórica atual indique menos sectarismo, é difícil confiar em Abu Mohammad al-Jolani, um líder formado ideológica e politicamente em torno do mais radical sectarismo contra cristãos e xiitas. Torço para que o esforço de relações públicas – contando com a mídia ocidental –, indicando uma mudança de postura para o “pragmatismo”, seja verdadeiro, mas é mais prudente desconfiar. Querendo ou não, Hafez al-Assad mantinha um Estado laico tolerante com a diversidade étnica e religiosa do país. Este aspecto pode piorar brutalmente, como já vimos no passado, quando os “rebeldes sírios” chocaram o mundo com seus massacres fanáticos.

Quem ganha? Turquia, certamente. A geopolítica neootomana de Recep Erdogan foi o grande ator regional a impulsionar o jihadismo local, com direito à arregimentação de povos turcos para as fileiras dos rebeldes, como os uigures. Isso indica bem que Recep Erdogan é independente da Rússia, alguém bem pouco confiável, apesar das suas manobras e compromissos: seu projeto próprio envolve desde o Cáucaso (vide apoio ao Azerbaijão) até a Ásia Central, passando pelo Oriente Médio.

Israel, também. Benjamin Netanyahu, como sempre pouco discreto, já apareceu nas Colinas de Golã comemorando a queda de Hafez al-Assad, atribuindo a si o papel principal na vitória, por ter inviabilizado o apoio de Hezbollah e Irã com suas guerras regionais. O país sionista aproveitou a brecha para rasgar o compromisso estabelecido em 1974 e expandir seu território na Síria.

No atual momento, bombardeia Damasco, desmilitarizando o seu inimigo. Pode parecer contraintuitivo, mas a presença de jihadistas extremistas não necessariamente é ruim para o país, afinal seu objetivo maior é desestabilizar Estados rivais, e para tal finalidade esses grupos são muito úteis (na guerra anterior, noticiou-se que hospitais isralenses tratavam até mesmo membros feridos do ISIS).

É bem provável que o país passe por uma “balcanização” caótica ao estilo Líbia, sem qualquer autoridade central. Isto é ótimo para os inimigos do Irã e da Rússia, que são os grandes derrotados do dia. Tanto esforço russo em manter Assad para, no fim, obter tal resultado? Dificilmente o sofrido povo sírio terá alguma redenção no desenrolar destes fatos, ainda mais se as promessas tolerantes da HTS forem apenas da boca para fora. É instrutivo ver a reação do Ocidente: tratam Hezbollah e Hamas como terroristas, mas são compreensivos com gente da Al-Qaeda, infinitamente mais sectária, violenta e “fascista”. Quando o Talibã conseguiu expulsar os EUA do Afeganistão, achavam absurdo qualquer comemoração, afinal de contas tratava-se de um grupo extremista, mas agora pode?

De qualquer forma, o horizonte é sombrio. Os triunfalistas da multipolaridade, que acreditam que a Rússia lidera de modo imbatível uma nova ordem mundial, viram suas narrativas desabarem com a fragilidade da queda. A verdade é que, se o bloco atlantista liderado pelos EUA, de fato, é decadente e sofre atualmente uma grande derrota na Ucrânia, a coalizão russo-chinesa está longe de ter a solidez que pintam, principalmente porque depende de regimes pouco amados pelos seus respectivos povos.

O mais provável é que a guerra entre os dois blocos, na forma de agentes “proxies“, termine apenas em destruição infernal e sofrimento. Atualmente, nada regula este confronto: estamos numa situação bem pior que a da Guerra Fria, com um nível de consciência sobre os perigos por parte da humanidade muito menor. O direito internacional já era. Já faz parte do discurso público considerar o uso tático de armas nucleares. Esta situação dificilmente acabará bem.

·       Para onde vai a Europa?

Emmanuel Macron, após ignorar o resultado das urnas e formar um governo excluindo a coalizão vencedora, presenteia a França com o primeiro-ministro de passagem mais rápida da história. O motivo da queda? O rechaço do Legislativo aos excessos da ambição austericida e autoritária, o único dogma religioso ainda vigente nas sociedades ocidentais. Enquanto isso, na frente externa, diz que se recusará a prender Benjamin Netanyahu se este pisar em território francês, mesmo após a condenação da Tribunal Penal Internacional, cuja jurisdição o Estado francês supostamente reconhece. Desmoralização completa do direito internacional, este pilar da “ordem internacional baseada em regras”! Como alguém ainda levará isto a sério?

Na Alemanha, em meio a uma crise econômica decorrente de políticas estúpidas contra a Rússia motivadas por reboquismo ao EUA, uma política de perseguição feroz a qualquer um que ouse discordar das ações do Estado de Israel põe a nu a profunda intolerância à discordância real em meio ao engodo do palavrório liberal de tolerância e respeito à diversidade.

Frente à vitória eleitoral, na Romênia, durante o primeiro turno, de um candidato (com posições reacionárias, é verdade) não alinhado às posições do establishment europeu, cancela-se o resultado via golpe judiciário a partir de uma campanha de TikTok (?!). Ninguém acha anormal, segue o jogo. Afinal de contas, as eleições são feitas para consagrar os candidatos certos, aceitáveis. Importa-se para o território europeu uma concepção que já vigia na relação das potências capitalistas com o Terceiro Mundo: golpe militar no Egito ou Argélia, contra o resultado das urnas, foram aceitos já que os vitoriosos estavam do lado errado.

A descredibilização da democracia avança a passos largos. Após a “vontade popular” supostamente consagrada pelo sufrágio ter sido esmagada por razões econômico-financeiras (caso da relação da Troika europeia frente à vitória eleitoral do Syriza na Grécia, em meados da década passada), indicando bem quem mandava de fato nas tais democracias, agora há uma etapa mais aprofundada da recusa de qualquer heterogeneidade política, em uma verdadeira ditadura do pensamento único.

 

¨      Diplomata: Ocidente usa transição na Síria como 'cortina de fumaça' para estabelecer presença

O chamado período de transição na Síria é um pretexto para os países ocidentais, pois precisam desse tempo a fim de estabelecer relações com as novas autoridades do país, disse à Sputnik o ex-embaixador do Reino Unido na Síria e especialista em Oriente Médio, Peter Ford.

"Toda a conversa sobre a 'transição' é uma cortina de fumaça para criar uma janela de um ou dois anos em que as potências ocidentais podem desenvolver uma relação de mestre-cliente com as pessoas que ontem eram a Al-Qaeda e Daesh [ambos os grupos banidos na Rússia como terroristas]. Para as potências ocidentais, a ótica de fazer negócios com gangues e senhores da guerra designados como grupos terroristas representa um problema. No entanto, isso pode ser contornado fingindo que há uma 'transição'", disse Ford.

Os militantes do Hayat Tahrir al-Sham estão tentando estabelecer em Damasco uma autoridade semelhante ao "governo de salvação" que a organização criou em Idlib para cobrir seu governo, acrescentou.

"Isto é semelhante à administração do Hamas em Gaza, embora o Hamas, é claro, tenha sido eleito", disse o ex-diplomata.

O verdadeiro processo de transição exigirá a participação de muitos grupos, continuou Ford.

O fato de a oposição armada acabar de tomar o poder na Síria terá consequências significativas para o Oriente Médio, com o Líbano e a Palestina enfrentando os maiores riscos, disse Peter Ford.

"As consequências regionais são graves. Primeiro e mais urgente, o Líbano está agora sendo ameaçado por um movimento de pressão dos jihadistas sírios e de seus aliados israelenses, ambos esperando aproveitar o momento de fraqueza [do Hezbollah], anteriormente posto de joelhos por Israel e agora prejudicado por perder seu caminho vital em direção ao Irã através da Síria", disse o especialista britânico.

Israel e as novas autoridades sírias são capazes de chegar a um acordo de paz, acrescentou.

A oposição síria também pode tentar estabilizar as relações com Washington, mas isso "pode não correr tão bem" como eles pensam, notou Ford.

"Os EUA provavelmente perceberão muito em breve que já não precisam mais dos jihadistas, agora que o seu trabalho de derrubar Assad está feito. Os jihadistas serão forçados a implorar para que as sanções sejam levantadas", concluiu.

¨      Especialista: incursão de Israel na Síria não é um movimento de proteção, mas uma ofensiva completa

Depois de tomar as Colinas de Golã, as Forças de Defesa de Israel (FDI) atualmente ocupam a província de Quneitra, 16 quilômetros de profundidade em território sírio. Órgãos de vigilância internacionais dizem que as FDI lançaram cerca de 300 ataques aéreos na Síria até agora.

Tel Aviv insiste que suas ações são motivadas por preocupações de segurança. Mas Furkan Halit Yolcu, especialista em segurança e pesquisador do Instituto do Oriente Médio da Universidade Sakarya, rejeitou a narrativa de Israel e chamou suas ações de uma apropriação de terras ofensiva.

"A história diz que este não é um movimento de proteção, mas é tudo sobre uma mentalidade ofensiva que está acontecendo, aproveitando oportunidades e reivindicando território passo a passo", disse Yolcu à Sputnik. "Sempre que há uma oportunidade, sempre que há uma chance, Israel parece estar aproveitando o momento e tentando ganhar um pouco mais de território quando pode."

Yolcu duvida que Israel consiga escapar impune e espera que a questão seja definitivamente abordada pela ONU assim que um novo governo sírio for formado.

"Pode se tornar um problema maior do que é agora porque [a Síria não] tem um governo ainda", enfatizou o especialista. "Mas quando o governo estiver lá e for oficialmente reconhecido pela comunidade como as Nações Unidas, então as disputas territoriais começarão com certeza."

As Colinas de Golã são um planalto montanhoso de origem vulcânica que se estende de norte a sul, cobrindo uma área de 1.800 quilômetros quadrados. Fica a cerca de 60 km ao sul de Damasco e faz fronteira com o rio Yarmouk ao sul e o mar da Galileia a oeste.

Considerado uma área estratégica fundamental em termos militares, o terreno montanhoso do planalto elevado oferece uma linha de defesa natural e uma vista privilegiada contra qualquer ataque militar terrestre da Síria, além de possuir uma riqueza de recursos naturais considerável.

No domingo (8), a emissora estatal israelense Kan afirmou que o Exército israelense assumiu o posto avançado sírio no Monte Hermon depois que o Exército sírio se retirou de suas posições na zona tampão — uma faixa de terra que separa duas entidades geográficas, biogeográficas ou políticas diferentes.

Na terça-feira (10), as FDI afirmaram ter destruído a maioria das armas estratégicas da Síria, temendo que membros da oposição armada síria possam tomar o controle de instalações militares perto das Colinas de Golã e usá-las contra o país, segundo autoridades israelense afirmaram ao The New York Times.

¨      Como a crise na Síria pode mudar o mapa energético do Oriente Médio?

Embora as reservas de petróleo da Síria sejam pequenas, sua localização estratégica a torna um centro logístico crucial para os produtores de petróleo e gás do Oriente Médio. Quais rotas energéticas estão propostas para atravessar a Síria?

Estratégia dos Quatro Mares

então presidente sírio Bashar al-Assad visava conectar o Mediterrâneo, Cáspio, mar Negro e golfo Pérsico em uma rede energética, posicionando a Síria como um hub estratégico.

<><> Rotas existentes

# Gasoduto Árabe (AGP):

Projetado para exportar gás egípcio para Israel, Jordânia, Síria, Líbano, Turquia e Europa. O AGP enfrentou repetidos atrasos, especialmente no trecho sírio entre Aleppo e Kilis, na Turquia, interrompido pela guerra civil em 2011.

# Oleoduto Iraque-Síria:

Antigamente, funcionava como um corredor para o petróleo iraquiano até o Mediterrâneo. Este oleoduto foi danificado na guerra do Iraque em 2003 e sofreu impactos adicionais durante a guerra civil síria em 2011.

<><> Rotas potenciais

# Gasoduto Catar-Síria-Turquia:

Uma proposta de gasoduto de 1,5 mil quilômetros ligando o Catar a Turquia e Europa via Síria foi supostamente rejeitada pela Síria em 2009.

# Gasoduto Irã-Iraque-Síria:

Um acordo preliminar foi assinado em 2011 para transportar gás iraniano para a Europa através do Iraque, Síria, Líbano e Mediterrâneo. No entanto, o projeto foi engavetado.

<><> Impacto da crise síria nas rotas de energia

# Reestruturação de rotas: a queda do governo sírio pode, segundo alguns observadores, reestruturar as rotas de gasodutos e oleodutos para Turquia e Europa.

# Revitalização do Gasoduto Catar-Síria-Turquia: publicações turcas sugerem que este projeto pode ser reconsiderado.

# Interesse do Iraque na reconstrução: em 2023, o Iraque demonstrou interesse na reconstrução do antigo oleoduto para a Síria, visando exportar petróleo para a Europa.

# Reações do mercado: apesar da queda do governo sírio em 9 de dezembro, os mercados de petróleo não reagiram fortemente. Entretanto, os preços do gás natural subiram cerca de 10%.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Sputnik Brasil

 

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