Geopolítica:
a ciência dos inteligentes?
Anda
na moda falar em “geopolítica”. E não apenas entre generais golpistas ou
pensadores conservadores. Para os próprios formadores de opinião na esquerda
brasileira, esta pseudociência parece agora ocupar um lugar prestigioso em
nosso vocabulário militante. Curiosamente, numa era em que o politicamente
correto na linguagem cotidiana atinge seu ápice de importância para os
setores progressistas, a contaminação do nosso léxico com a sujeira semântica
da “geopolítica” volta à tona. Sorrateiramente, este discurso instalou-se entre
nossas fileiras e, de forma inocente, passamos a incorporar um imaginário e
reproduzir uma visão de mundo reacionária, totalmente alheia à nossa. Mas por
qual razão? E a que custo?
O
nascimento da geopolítica data dos fins do século XIX, na jovem Alemanha imperial.
Seu pai-fundador, Friedrich Ratzel, acreditava que as nações eram literalmente
organismos vivos, que deveriam crescer ou morrer. É por isto que a
ele pertence o famoso conceito de ‘espaço vital’ (lebensraum) que seria
retomado por seus maiores fãs décadas depois: os estrategistas nazistas. Antes
de publicar sua obra-mor, Geografia Política, em 1897, Ratzel
trabalhara como farmacêutico e formara-se em zoologia, o que explica o
imaginário organicista e biologizante que ele trouxe para o estudo das relações
espaciais. Mas é a sua militância política que revela mais nitidamente a base
ideológica sobre a qual esta nova ciência (sic!) pretendia estar
fundada: ele era membro da Sociedade Colonial Alemã, da Liga
Pangermânica e da Liga da Frota Alemã, que propagavam
propaganda belicista e imperialista pela opinião pública de seu país, fazendo
crer aos alemães que seu destino estava em risco caso não humilhassem
Inglaterra, França e Rússia nas guerras imperialistas. Para tanto, seria
preciso engolir nações mais débeis pelo caminho, destruir povos menos
guerreiros e racialmente inferiores.
O
racismo está, portanto, no coração (ou no DNA) da geopolítica.
Aliás,
o Destino Manifesto foi uma ideia que Ratzel aprendeu em
viagem aos Estados Unidos. O genocídio contra os indígenas americanos foi-lhe
fonte de grande inspiração. Como bom cientista – isto é, como pretenso dono da
verdade – ele dividiu toda a humanidade, desde a Antiguidade, em categorias
hierárquicas climáticas (adivinhe quem estava no topo) e vaticinou que a falta
de expansionismo significa a morte dos menos adaptados, numa espécie de darwinismo
social internacional – ou, simplesmente, “geopolítica”. Mas a cunhagem
do termo, tal qual o conhecemos hoje, coube a um aluno seu, outro homem branco
reacionário, o sueco Rudolf Kjellén, professor de Estatística, Eloquência e
Governo, além de membro do Parlamento da Suécia, pelo partido conservador.
Num
livro de 1899, esta palavra que hoje permeia nosso vocabulário foi apresentada
pela primeira vez. Seguindo as mesmas indicações organicistas de seu mestre, o
Estado seria, para ele, um conjunto de órgãos nobres (coração, pulmão) e órgãos
menos nobres, que podem ser sacrificados, caso necessário. Neste imaginário,
dissidências políticas são consideradas como pragas invasoras ao corpo
político, parasitas que devem ser eliminados como “piolhos” (como diria o
próprio Hitler sobre os judeus pouco depois, apropriando-se dessas ideias). Não
por acaso, Kjellén também foi dos pioneiros na utilização do termo
‘nacional-socialismo’ (nazismo, em alemão) para descrever uma forma de
governo ideal, em sua opinião.
Mas
quem se importa com isso na hora de lacrar nas redes sociais
hoje em dia, não é mesmo? Sigamos adiante.
A
tradição de pensamento “geopolítico” cresceu pari passu ao
avanço da corrida imperialista, com cada potência gerando o seu expoente
intelectual. Na Grã-Bretanha, o grande nome desta ciência dos brutos foi,
obviamente, Halford Mackinder, outro acadêmico conservador e parlamentar
ocasional. Coube a ele o desenho dos mapas “científicos” que dividem o globo em
ilhas continentais, dentro das quais haveria regiões estratégicas para aquilo
que os imperialistas mal conseguem disfarçar: seu desejo de dominar o mundo.
“Aquele que domina a Europa oriental domina a Heartland; aquele que domina a Heartland controla a ilha
mundial; e quem domina a ilha mundial comanda o mundo
inteiro”, lia-se em seu ensaio “O Pivô Geográfico da História” (1904), que
daria origem a toda uma tradição de geografias imaginárias mas que, para os
arautos da geopolítica, funciona como uma tábua de esmeraldas, de onde pode-se
extrair alguma verdade ou ensinamentos úteis. Digo isto com todo respeito aos
alquimistas, é claro, pois quem adorava esses mapas era Karl Haushofer, general
nazista e amante da geopolítica.
Mackinder
era um anticomunista ferrenho (que surpresa!) e chegou a ser despachado para a
Rússia entre 1919 e 1920 como Alto Comissário Britânico para lutar contra os
bolcheviques, ao passo que defendia na opinião pública britânica a necessidade
de apoiar de todas as formas os Exércitos Brancos contra o Exército Vermelho
comandado por Trotsky e cia. Mas o público não deu muita bola para sua histeria
anticomunista em 1922, quando foi derrotado nas eleições parlamentares
escocesas após acusar seus adversários de “defensores de bolcheviques”. No
melhor estilo imperialista da Belle Époque, ele dizia que os geógrafos deviam
ser “exploradores e aventureiros”, o que significava organizar, como ele,
expedições para a África e servir como chairman de
instituições como o Imperial Economic Committee. Como se não
bastasse, ele foi o primeiro a sugerir a criação de uma Aliança do Atlântico
Norte, que infelizmente se materializou com a OTAN.
Nos
Estados Unidos, a geopolítica também deveria produzir seus pensadores de plantão
assim que se tornassem uma potência imperialista. O mais famoso deles foi o
almirante Alfred Mahan, detestável figura que defendeu o expansionismo
naval yankee sobre o Caribe e o Pacífico, culminando no
estabelecimento de bases militares ao redor de todo o globo. Para ele, “quem
controla os mares, controla o mundo”. Defensor do uso de armas químicas, Mahan
também foi um grande idealizador da política externa do Big Stick (grande
porrete) para lidar com os latino-americanos: gente incivilizada, infantil e
primitiva, em sua visão “científica” de mundo.
Ele
tornou-se grande parceiro do presidente Theodore Roosevelt, aquele do Corolário
Roosevelt da Doutrina Monroe, que estabelecia o direito de
intervenção militar prévia em assuntos internos dos países da América Latina e
Caribe quando os interesses estadunidenses estivessem em jogo. Também idealizou
a construção do Canal do Panamá (roubando parte do território colombiano) e a
anexação do Havaí. Sua teoria geopolítica misturava-se com sua profunda devoção
religiosa ao cristianismo, levando-o a acreditar que a missão dos EUA era
conquistar, civilizar e evangelizar corpos inferiores ou espíritos
recalcitrantes. Apesar de suas péssimas qualidades como comandante de navios
(ele mesmo preferia não estar a bordo), sua influência ideológica fez com que a
academia de guerra naval dos EUA fosse batizada com seu nome. Quem se sentir
representado que invoque suas teorias!
A
esta altura, pareceria desnecessário seguir elencando exemplos dos expoentes da
“geopolítica”, pois já deveria estar claro que esta tradição é inimiga da
nossa. O ápice desta infame história intelectual foi atingido com o regime
nazista, o que deveria bastar para colocar a “geopolítica” no mesmo lugar das
outras “ciências” nazistas, como a eugenia: na lata de lixo da História. Foi lá
que a geopolítica permaneceu após a II Guerra Mundial devido à identificação
com o regime de Hitler até que estrategistas da OTAN e figuras alucinadas como
Zbigniew Brzezinski a reabilitassem dentro dos círculos neo-imperialistas
ocidentais. Na periferia do sistema-mundo, não faltou quem se aproveitasse
deste ressurgimento, como o general Golbery do Couto e Silva, arquiteto do
golpe de 1964 e autor de (surpresa!) Geopolítica do Brasil, obra
cheia de fantasias cartográficas – como as teorias dos “círculos concêntricos”
e das “fronteiras ideológicas” -, mas que serviam ao propósito de enquadrar o
destino brasileiro dentro da hegemonia americana, contra o comunismo
internacional e baluarte da civilização cristã, o que quer que isto signifique
(sabemos o que significou entre 1964 e 1985). Foi com tais argumentos
“geopolíticos”, por sinal, que o governo Castelo Branco juntou-se aos
estadunidenses na invasão sangrenta da República Dominicana em 1965, maior
vergonha exterior do Brasil desde a Guerra do Paraguai, um século
antes.
Hoje
em dia, a “geopolítica” foi reabilitada aos poucos na academia ocidental, cada
vez mais militarizada, mas o seu verdadeiro sucesso contemporâneo advém de
latitudes mais distantes e ideologias menos disfarçadas, como é o caso do neo-fascismo russo
(o termo é dele) de Alexander Dugin. É verdade que houve tentativas de suavizar
este imaginário ao longo das décadas. A chamada escola possibilista francesa
(“a natureza põe, o homem dispõe”) de Yves Lacoste e cia. bem que tentou
mitigar o determinismo geográfico das formulações originais, mas no fundo não
passou de uma versão plus sophistiqué do mesmo desejo imperial
travestido de teoria internacional. Mais longe, pero no mucho,
foram as tentativas gramscianas de John Agnew ou as propostas de ‘geopolítica
crítica’ e ‘geopolítica popular’, que mais parecem subprodutos do mundo
universitário profissionalizado, onde professores e pesquisadores progressistas
tentam cavar um nicho para si dentro de uma área (reacionária) já consolidada.
Seu alcance político é praticamente nulo, sendo mais adequado entendê-las como
uma ironia acadêmica descompromissada.
A
única subversão de peso do imaginário geopolítico feita por dentro seria aquela
realizada pelo brilhante Josué de Castro que, na esteira do sucesso do
seu Geografia da Fome, também lançou um prolongamento
intitulado Geopolítica da Fome (1951). No entanto, a sua
intervenção deve ser lida mais como uma tentativa de desconstrução ou
desestabilização da “geopolítica” em si do que uma aderência a esta tradição,
totalmente avessa à geografia que ele praticava. Ao roubar-lhe o
estado-centrismo, o chauvinismo e o racismo, por um lado, e acrescentar uma
ontologia de classes sociais inspirada no marxismo, de outro, Josué de Castro
na verdade produziu uma anti-geopolítica, teórica e ideologicamente falando. No
mínimo, ele sabia muito bem o que estava fazendo ao empregar conscientemente
este conceito no intuito de transformá-lo ou diluí-lo. Jamais o utilizou
ingenuamente como se não fosse problemático ou desprovido de uma herança
imperial macabra.
Assim,
é preciso repensar com urgência os motivos e consequências de estarmos
comprando hoje um pacote discursivo cujo conteúdo é, no mínimo, assustador. Ao
que tudo indica, uma das explicações para a disseminação deste conceito maldito
é a vontade de parecer mais inteligente do que se é, dando uma áurea de saber
especializado, algo inacessível aos leigos. Quem não parece sabichão ao bradar
numa discussão: “Ah, mas isto é uma questão geopolítica”, não é verdade? No
entanto, militantes e influenciadores precisam se desapegar desta ciência
dos inteligentes que somente revela ignorância teórica e despreparo
político. Nós possuímos um rico léxico dentro da tradição anticapitalista que
nos permite analisar a política em qualquer escala, do local ao internacional
ou global, sem nos tornarmos reféns daquele imaginário reacionário que procura
nos fazer crer que a História não importa e que o único adjetivo que a política
precisa é de um “geo”, determinista e biologizado, à frente. É difícil pensar
em um dispositivo discursivo tão machista e patriarcal (baseado na premissa da
virilidade das nações pujantes), transfóbico e capacitista (dado seu
naturalismo vulgar e darwinismo social), racista, eurocêntrico, capitalista e
imperialista do que a invocação moribunda da “geopolítica” pode oferecer.
Será
possível dar bom dia para “todas, todos e todes” para, em seguida,
reproduzir o linguajar predileto da direita reacionária e fascista? Vale notar
que a geopolítica tem muitos pais fundadores, mas nenhuma mãe…
Numa
era em que a linguagem é – felizmente – cada vez mais levada a sério pela
esquerda, seguir compactuando com a velhacaria geopolítica é paradoxal, senão
suicida. A ideologia contida neste conceito (e na sua família conceitual) é
incontornável. Ou por acaso vamos começar a falar em raça superior também,
somente porque algum nazista disse que o racismo era “científico”? Ao fim, para
que deixemos de ser cúmplices na difusão desta representação da realidade
altamente distorcida (como todo mapa, aliás), é necessário ter coragem o
suficiente para fazermos nossas análises baseadas em bons argumentos, não em
autoridades nominais ou disciplinares, muito menos aquelas pseudocientíficas
como a “geopolítica” sempre pretendeu ser. Caso contrário, seguiremos como o
alienista Simão Bacamarte, de Machado de Assis, cheios de pompa no linguajar
científico e postura arrogante perante os não-iniciados, mas que no fim
descobre, por força da própria realidade, que tudo não passava de um delírio
narcisista, ególatra e expansionista, disfarçado de teoria científica. Não é
difícil ser melhor que isto. Às vezes, basta falar simples, ou silenciar-se,
caso não haja nada real a dizer.
Fonte: Por Miguel Borba de Sá, para
Opera Mundi
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