quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Geopolítica: a ciência dos inteligentes?

Anda na moda falar em “geopolítica”. E não apenas entre generais golpistas ou pensadores conservadores. Para os próprios formadores de opinião na esquerda brasileira, esta pseudociência parece agora ocupar um lugar prestigioso em nosso vocabulário militante. Curiosamente, numa era em que o politicamente correto na linguagem cotidiana atinge seu ápice de importância para os setores progressistas, a contaminação do nosso léxico com a sujeira semântica da “geopolítica” volta à tona. Sorrateiramente, este discurso instalou-se entre nossas fileiras e, de forma inocente, passamos a incorporar um imaginário e reproduzir uma visão de mundo reacionária, totalmente alheia à nossa. Mas por qual razão? E a que custo?

O nascimento da geopolítica data dos fins do século XIX, na jovem Alemanha imperial. Seu pai-fundador, Friedrich Ratzel, acreditava que as nações eram literalmente organismos vivos, que deveriam crescer ou morrer. É por isto que a ele pertence o famoso conceito de ‘espaço vital’ (lebensraum) que seria retomado por seus maiores fãs décadas depois: os estrategistas nazistas. Antes de publicar sua obra-mor, Geografia Política, em 1897, Ratzel trabalhara como farmacêutico e formara-se em zoologia, o que explica o imaginário organicista e biologizante que ele trouxe para o estudo das relações espaciais. Mas é a sua militância política que revela mais nitidamente a base ideológica sobre a qual esta nova ciência (sic!) pretendia estar fundada: ele era membro da Sociedade Colonial Alemã, da Liga Pangermânica e da Liga da Frota Alemã, que propagavam propaganda belicista e imperialista pela opinião pública de seu país, fazendo crer aos alemães que seu destino estava em risco caso não humilhassem Inglaterra, França e Rússia nas guerras imperialistas. Para tanto, seria preciso engolir nações mais débeis pelo caminho, destruir povos menos guerreiros e racialmente inferiores. 

O racismo está, portanto, no coração (ou no DNA) da geopolítica.

Aliás, o Destino Manifesto foi uma ideia que Ratzel aprendeu em viagem aos Estados Unidos. O genocídio contra os indígenas americanos foi-lhe fonte de grande inspiração. Como bom cientista – isto é, como pretenso dono da verdade – ele dividiu toda a humanidade, desde a Antiguidade, em categorias hierárquicas climáticas (adivinhe quem estava no topo) e vaticinou que a falta de expansionismo significa a morte dos menos adaptados, numa espécie de darwinismo social internacional – ou, simplesmente, “geopolítica”. Mas a cunhagem do termo, tal qual o conhecemos hoje, coube a um aluno seu, outro homem branco reacionário, o sueco Rudolf Kjellén, professor de Estatística, Eloquência e Governo, além de membro do Parlamento da Suécia, pelo partido conservador.

Num livro de 1899, esta palavra que hoje permeia nosso vocabulário foi apresentada pela primeira vez. Seguindo as mesmas indicações organicistas de seu mestre, o Estado seria, para ele, um conjunto de órgãos nobres (coração, pulmão) e órgãos menos nobres, que podem ser sacrificados, caso necessário. Neste imaginário, dissidências políticas são consideradas como pragas invasoras ao corpo político, parasitas que devem ser eliminados como “piolhos” (como diria o próprio Hitler sobre os judeus pouco depois, apropriando-se dessas ideias). Não por acaso, Kjellén também foi dos pioneiros na utilização do termo ‘nacional-socialismo’ (nazismo, em alemão) para descrever uma forma de governo ideal, em sua opinião. 

Mas quem se importa com isso na hora de lacrar nas redes sociais hoje em dia, não é mesmo? Sigamos adiante.

A tradição de pensamento “geopolítico” cresceu pari passu ao avanço da corrida imperialista, com cada potência gerando o seu expoente intelectual. Na Grã-Bretanha, o grande nome desta ciência dos brutos foi, obviamente, Halford Mackinder, outro acadêmico conservador e parlamentar ocasional. Coube a ele o desenho dos mapas “científicos” que dividem o globo em ilhas continentais, dentro das quais haveria regiões estratégicas para aquilo que os imperialistas mal conseguem disfarçar: seu desejo de dominar o mundo. “Aquele que domina a Europa oriental domina a Heartland; aquele que domina a Heartland controla a ilha mundial; e quem domina a ilha mundial comanda o mundo inteiro”, lia-se em seu ensaio “O Pivô Geográfico da História” (1904), que daria origem a toda uma tradição de geografias imaginárias mas que, para os arautos da geopolítica, funciona como uma tábua de esmeraldas, de onde pode-se extrair alguma verdade ou ensinamentos úteis. Digo isto com todo respeito aos alquimistas, é claro, pois quem adorava esses mapas era Karl Haushofer, general nazista e amante da geopolítica.

Mackinder era um anticomunista ferrenho (que surpresa!) e chegou a ser despachado para a Rússia entre 1919 e 1920 como Alto Comissário Britânico para lutar contra os bolcheviques, ao passo que defendia na opinião pública britânica a necessidade de apoiar de todas as formas os Exércitos Brancos contra o Exército Vermelho comandado por Trotsky e cia. Mas o público não deu muita bola para sua histeria anticomunista em 1922, quando foi derrotado nas eleições parlamentares escocesas após acusar seus adversários de “defensores de bolcheviques”. No melhor estilo imperialista da Belle Époque, ele dizia que os geógrafos deviam ser “exploradores e aventureiros”, o que significava organizar, como ele, expedições para a África e servir como chairman de instituições como o Imperial Economic Committee. Como se não bastasse, ele foi o primeiro a sugerir a criação de uma Aliança do Atlântico Norte, que infelizmente se materializou com a OTAN.   

Nos Estados Unidos, a geopolítica também deveria produzir seus pensadores de plantão assim que se tornassem uma potência imperialista. O mais famoso deles foi o almirante Alfred Mahan, detestável figura que defendeu o expansionismo naval yankee sobre o Caribe e o Pacífico, culminando no estabelecimento de bases militares ao redor de todo o globo. Para ele, “quem controla os mares, controla o mundo”. Defensor do uso de armas químicas, Mahan também foi um grande idealizador da política externa do Big Stick (grande porrete) para lidar com os latino-americanos: gente incivilizada, infantil e primitiva, em sua visão “científica” de mundo. 

Ele tornou-se grande parceiro do presidente Theodore Roosevelt, aquele do Corolário Roosevelt da Doutrina Monroe, que estabelecia o direito de intervenção militar prévia em assuntos internos dos países da América Latina e Caribe quando os interesses estadunidenses estivessem em jogo. Também idealizou a construção do Canal do Panamá (roubando parte do território colombiano) e a anexação do Havaí. Sua teoria geopolítica misturava-se com sua profunda devoção religiosa ao cristianismo, levando-o a acreditar que a missão dos EUA era conquistar, civilizar e evangelizar corpos inferiores ou espíritos recalcitrantes. Apesar de suas péssimas qualidades como comandante de navios (ele mesmo preferia não estar a bordo), sua influência ideológica fez com que a academia de guerra naval dos EUA fosse batizada com seu nome. Quem se sentir representado que invoque suas teorias!

A esta altura, pareceria desnecessário seguir elencando exemplos dos expoentes da “geopolítica”, pois já deveria estar claro que esta tradição é inimiga da nossa. O ápice desta infame história intelectual foi atingido com o regime nazista, o que deveria bastar para colocar a “geopolítica” no mesmo lugar das outras “ciências” nazistas, como a eugenia: na lata de lixo da História. Foi lá que a geopolítica permaneceu após a II Guerra Mundial devido à identificação com o regime de Hitler até que estrategistas da OTAN e figuras alucinadas como Zbigniew Brzezinski a reabilitassem dentro dos círculos neo-imperialistas ocidentais. Na periferia do sistema-mundo, não faltou quem se aproveitasse deste ressurgimento, como o general Golbery do Couto e Silva, arquiteto do golpe de 1964 e autor de (surpresa!) Geopolítica do Brasil, obra cheia de fantasias cartográficas – como as teorias dos “círculos concêntricos” e das “fronteiras ideológicas” -, mas que serviam ao propósito de enquadrar o destino brasileiro dentro da hegemonia americana, contra o comunismo internacional e baluarte da civilização cristã, o que quer que isto signifique (sabemos o que significou entre 1964 e 1985). Foi com tais argumentos “geopolíticos”, por sinal, que o governo Castelo Branco juntou-se aos estadunidenses na invasão sangrenta da República Dominicana em 1965, maior vergonha exterior do Brasil desde a Guerra do Paraguai, um século antes.  

Hoje em dia, a “geopolítica” foi reabilitada aos poucos na academia ocidental, cada vez mais militarizada, mas o seu verdadeiro sucesso contemporâneo advém de latitudes mais distantes e ideologias menos disfarçadas, como é o caso do neo-fascismo russo (o termo é dele) de Alexander Dugin. É verdade que houve tentativas de suavizar este imaginário ao longo das décadas. A chamada escola possibilista francesa (“a natureza põe, o homem dispõe”) de Yves Lacoste e cia. bem que tentou mitigar o determinismo geográfico das formulações originais, mas no fundo não passou de uma versão plus sophistiqué do mesmo desejo imperial travestido de teoria internacional. Mais longe, pero no mucho, foram as tentativas gramscianas de John Agnew ou as propostas de ‘geopolítica crítica’ e ‘geopolítica popular’, que mais parecem subprodutos do mundo universitário profissionalizado, onde professores e pesquisadores progressistas tentam cavar um nicho para si dentro de uma área (reacionária) já consolidada. Seu alcance político é praticamente nulo, sendo mais adequado entendê-las como uma ironia acadêmica descompromissada.

A única subversão de peso do imaginário geopolítico feita por dentro seria aquela realizada pelo brilhante Josué de Castro que, na esteira do sucesso do seu Geografia da Fome, também lançou um prolongamento intitulado Geopolítica da Fome (1951). No entanto, a sua intervenção deve ser lida mais como uma tentativa de desconstrução ou desestabilização da “geopolítica” em si do que uma aderência a esta tradição, totalmente avessa à geografia que ele praticava. Ao roubar-lhe o estado-centrismo, o chauvinismo e o racismo, por um lado, e acrescentar uma ontologia de classes sociais inspirada no marxismo, de outro, Josué de Castro na verdade produziu uma anti-geopolítica, teórica e ideologicamente falando. No mínimo, ele sabia muito bem o que estava fazendo ao empregar conscientemente este conceito no intuito de transformá-lo ou diluí-lo. Jamais o utilizou ingenuamente como se não fosse problemático ou desprovido de uma herança imperial macabra. 

Assim, é preciso repensar com urgência os motivos e consequências de estarmos comprando hoje um pacote discursivo cujo conteúdo é, no mínimo, assustador. Ao que tudo indica, uma das explicações para a disseminação deste conceito maldito é a vontade de parecer mais inteligente do que se é, dando uma áurea de saber especializado, algo inacessível aos leigos. Quem não parece sabichão ao bradar numa discussão: “Ah, mas isto é uma questão geopolítica”, não é verdade? No entanto, militantes e influenciadores precisam se desapegar desta ciência dos inteligentes que somente revela ignorância teórica e despreparo político. Nós possuímos um rico léxico dentro da tradição anticapitalista que nos permite analisar a política em qualquer escala, do local ao internacional ou global, sem nos tornarmos reféns daquele imaginário reacionário que procura nos fazer crer que a História não importa e que o único adjetivo que a política precisa é de um “geo”, determinista e biologizado, à frente. É difícil pensar em um dispositivo discursivo tão machista e patriarcal (baseado na premissa da virilidade das nações pujantes), transfóbico e capacitista (dado seu naturalismo vulgar e darwinismo social), racista, eurocêntrico, capitalista e imperialista do que a invocação moribunda da “geopolítica” pode oferecer.

Será possível dar bom dia para “todas, todos e todes” para, em seguida, reproduzir o linguajar predileto da direita reacionária e fascista? Vale notar que a geopolítica tem muitos pais fundadores, mas nenhuma mãe…

Numa era em que a linguagem é – felizmente – cada vez mais levada a sério pela esquerda, seguir compactuando com a velhacaria geopolítica é paradoxal, senão suicida. A ideologia contida neste conceito (e na sua família conceitual) é incontornável. Ou por acaso vamos começar a falar em raça superior também, somente porque algum nazista disse que o racismo era “científico”? Ao fim, para que deixemos de ser cúmplices na difusão desta representação da realidade altamente distorcida (como todo mapa, aliás), é necessário ter coragem o suficiente para fazermos nossas análises baseadas em bons argumentos, não em autoridades nominais ou disciplinares, muito menos aquelas pseudocientíficas como a “geopolítica” sempre pretendeu ser. Caso contrário, seguiremos como o alienista Simão Bacamarte, de Machado de Assis, cheios de pompa no linguajar científico e postura arrogante perante os não-iniciados, mas que no fim descobre, por força da própria realidade, que tudo não passava de um delírio narcisista, ególatra e expansionista, disfarçado de teoria científica. Não é difícil ser melhor que isto. Às vezes, basta falar simples, ou silenciar-se, caso não haja nada real a dizer.

 

Fonte: Por Miguel Borba de Sá, para Opera Mundi

 

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