quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Márcio Chaer: Supressão do artigo 19 terceiriza culpa por conteúdos criminosos

No julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, sobre a ampliação da responsabilidade das chamadas “redes sociais”, falta um personagem na história. O debate se concentra em quem indexa ou reproduz conteúdo — o que abstrai ou minimiza a culpa dos caluniadores e autores das ofensas.

A mera exclusão do artigo 19 do Marco Civil da Internet não mata o mal na raiz. Pior: terceiriza a responsabilidade que deve ser, principalmente, de quem dá causa aos crimes. O principal alvo, em caso de ofensas a direitos, é o seu autor — que deve ser chamado à lide. Afinal, se o conteúdo ilícito é suprimido na origem, não haverá como indexá-lo.

Evidente que, em casos óbvios que se relacionem a delitos gravíssimos, como pedofilia, atentados contra a democracia, racismo, tráfico de drogas e conexos, a própria plataforma deve providenciar a supressão. Mas, para casos menos evidentes, o juiz é o agente adequado para decidir.

Debate se concentra em quem indexa ou reproduz conteúdo — o que abstrai ou minimiza a culpa dos caluniadores e autores das ofensas

Caso contrário, se delegará a empresas privadas funções de Estado. E cabe ao Estado reprimir e punir com rigor os detratores que, não raro, ofendem, desmoralizam e achincalham pessoas por encomenda. Ou seja: por dinheiro.

·        Culpados absolvidos

São diversas as situações em que autores de calúnias, injúrias e difamações são eximidos de responsabilidade. O maior lote de notícias fraudulentas da história do Brasil se deu nos anos áureos do esquema que se apelidou de “lava jato”.

Esse caso é paradigmático para dar contexto ao julgamento no STF. Agentes públicos, como delegados, procuradores e juízes, deflagraram uma campanha sem quartel contra empresas, empresários e ministros do STF.

Com a cumplicidade da imprensa, montou-se uma agência de notícias falsas. Empresas foram à falência. Os ministros passaram a ser perseguidos e ameaçados. O mutirão criminoso emparedou o STF para sustentar o falso movimento de “combate à corrupção”.

Ao final, viu-se que o verdadeiro objetivo do esquema não era identificar culpados e levá-los a condenações. Tratava-se de um projeto de poder. Foram as engrenagens dessa grande agência de publicidade que levaram ao Planalto e ao Congresso uma leva de oportunistas.

Responsabilizar quem indexou esse tipo de conteúdo tem dois efeitos: condena o autor errado e absolve os malfeitores — o que acaba por estimular a repetição dos delitos, que já são fabricados em escala industrial.

Os direitos fundamentais são cláusulas pétreas e as redes devem investir um pouco do que ganham no zelo quanto ao que difunde. Mas isso não tira dos ombros do espaço de origem a sua culpa.

O voto do ministro Dias Toffoli segue a clara estratégia de radicalizar o raciocínio para jogar luzes no debate e propiciar reflexão que leve ao caminho do meio. Atenuar a prepotência das empresas que estão perto de governar o planeta. Há um oceano de exemplos de abusos a exigir regras.

·        Gol contra

A atribuição de responsabilidade por meio do sistema judicial é sempre necessária para casos mais complexos — aspecto em que o artigo 19 é inatacável. Mas há situações nebulosas em que delegar a uma plataforma a incumbência de juiz ou polícia não atende o interesse público.

Outro exemplo de situação foi a Resolução 23.732 do Tribunal Superior Eleitoral. Feita às pressas e sem exame de impacto, estabeleceu que entrevistas que mencionassem projetos de leis configuram propaganda eleitoral.

Para proteger-se, o Google seguiu a regra de forma literal e vetou a difusão, por sua via paga, de entrevistas que mencionassem, por exemplo, a reforma tributária.

Mesmo colidindo com o interesse público, configurou-se situação exemplar de caso em que a delegação do ato de “julgar” às plataformas mostrou-se nociva.

Novamente: não foi a plataforma que deu causa ao mal-entendido e só deve responder subsidiariamente — e não em primeiro lugar, caso haja ofensa a direito. O primeiro a ser acionado deverá ser sempre o autor dos crimes contra honra ou o que se assemelhe.

O debate ganhará mais sentido se houver mais empenho na identificação e punição (exemplar) dos criminosos que, muitas vezes por dinheiro, destroem reputações e colocam as vidas de inocentes em perigo.

 

¨      Entenda o Artigo 19: Direito à liberdade de opinião e expressão

Por que uma organização de direitos humanos iria à Justiça para apoiar alguém com visões políticas extremistas ou posições éticas fundamentalmente opostas? Um pornógrafo talvez, ou um anarquista? Por conta dos direitos afirmados no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), todos nós temos o direito de formar nossas próprias opiniões e de expressá-las e compartilhá-las livremente.

“Se não acreditarmos na liberdade de expressão para pessoas que desprezamos, nós não acreditamos nela de maneira alguma”, diz o linguista e ativista político Noam Chomsky. A Human Rights Watch acrescenta: “liberdade de expressão é um indicador: como qualquer sociedade tolera minorias, desfavorecidos ou até mesmo aqueles com pontos de vista desagradáveis irá frequentemente mostrar seu desempenho sobre direitos humanos de forma mais geral”.

Este direito sustenta muitos outros, como de liberdade de religião, de reunião pacífica e a habilidade de participar em questões políticas, mas a liberdade de expressão não é ilimitada. Uma metáfora comum para descrever seus limites é que você não pode gritar “fogo” falsamente em um teatro lotado e causar pânico e possíveis danos. Outras formas de expressão geralmente não protegidas incluem pornografia infantil, perjúrio, chantagem e incitação à violência.

Os redatores da DUDH lutaram com a questão de quão tolerante uma sociedade deve ser com pessoas como nazistas e fascistas, que são intolerantes. Eles estavam extremamente conscientes sobre o papel desempenhado pela mídia e pela indústria cinematográfica nazista na criação de um ambiente que permitiu o massacre de 6 milhões de judeus e outros grupos, como o povo roma (ciganos) e pessoas com deficiências. Após a chegada ao poder em 1933, os nazistas usaram uma série de novas leis e regulamentos para esmagar a mídia independente, colocando uma máquina totalitária de propaganda em seu lugar, sob comando de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda.

Como resultado, qualquer ação de ódio por questão nacional, racial ou religiosa que constitui incitação à discriminação, hostilidade ou violência foi explicitamente proibida quando a DUDH foi traduzida em lei internacional vinculante através de tratados subsequentes. No Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a liberdade de expressão ocupa a mesma posição (Artigo 19) da DUDH, fornecendo critérios explícitos do que governos precisam cumprir quando restringem liberdade de expressão. O Artigo 20 estabelece os limites da proibição de incitação.

Os resultados possivelmente letais de discursos de ódio – incluindo sua habilidade de permitir violação ao direito à vida em larga escala – foram graficamente demonstrados quando a rádio Mille Collines, de Ruanda, criou as bases para o genocídio de 1994, ao desumanizar cidadãos e classificá-los como inimigos. Aproximadamente 800 mil pessoas foram mortas. Mais recentemente, em Mianmar, mensagens de incitação ao ódio e violência se espalharam em velocidade alarmante nas redes sociais e podem ter contribuído para genocídio e crimes contra a humanidade. A missão independente para descoberta de fatos em Mianmar destacou o uso do Facebook pelo Exército de Mianmar para incitar ódio e espalhar informações falsas com o objetivo de justificar ações contra civis. Em reação, o Facebook fechou diversas destas contas.

Você tem direito a ter qualquer opinião, não importa quão ruim seja, mas a expressão desta opinião – se representar incitação – deve ser declarada ilegal, com exemplos históricos claros do que pode acontecer quando isto não acontece.

Quando um tabloide britânico reviveu o estilo da rádio Mille Collines em 2015, ao se referir a migrantes e refugiados como “baratas”, o então chefe de Conselho de Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein, pediu para países europeus adotarem uma posição mais firme em relação ao racismo e à xenofobia. “Sob o disfarce de liberdade de expressão, está sendo permitido alimentar um vicioso ciclo de difamação, intolerância e politização de migrantes, assim como de minorias europeias marginalizadas, como o povo roma”, afirmou.

Liberdade de expressão é, no entanto, explicitamente protegida na maioria das esferas, e há crescentes preocupações atualmente com os contínuos, e possivelmente crescentes, esforços para uso incorreto do conceito de “discurso de ódio” ou “incitação” como uma desculpa para calar dissidências ou críticas a um governo no poder, frequentemente usando legislação antiterrorismo como meio legal para o que, sob lei internacional, é um fim ilegal.

A ONU criticou em diversas ocasiões leis domésticas problemáticas que suprimem a oposição ou dissidência em nome do combate ao “discurso de ódio”. O relator especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, David Kaye, destacou que “Estados frequentemente fazem proibições vagas relativas à ‘defesa do ódio’ que não representam incitação”.

O Artigo 19 inclui o direito de “procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Embora indivíduos usufruam dos meios direitos online e offline, Estados também estão censurando, e às vezes criminalizando, uma ampla gama de conteúdos online através de leis vagas ou ambíguas proibindo “extremismo”, “blasfêmia”, “difamação”, linguagem “ofensiva”, “notícias falsas” e “propaganda”.

Se jornalistas são alvos de ataques, espionagem, prisão ou até mesmo assassinados quando suas buscas por informações são interpretadas por governos ou organizações criminosas como uma ameaça, pessoas podem ser incapazes de formar uma opinião ou tomar decisões informadas.

O Comitê para Proteger Jornalistas afirma que, em 2017, 262 jornalistas foram presos no mundo, e a Repórteres Sem Fronteiras diz que 90% dos crimes contra jornalistas não são punidos. Mesmo em democracias que se orgulham de serem livres, a demonização de jornalistas e acusações de “fake news” e limitações sobre a proteção de fontes jornalísticas estão prejudicando seus trabalhos.

Conforme esforços para controlar discursos e informações aumentam, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) forneceu diretrizes sobre como distinguir liberdade de expressão de discurso de ódio através do “Plano de Ação de Rabat”, que sugere a criação de um patamar alto para interpretar as restrições criadas pela lei internacional de direitos humanos na limitação de liberdade de expressão.

 

Fonte: Conjur/Naçõs Unidas Brasil

 

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