Márcio Chaer:
Supressão do artigo 19 terceiriza culpa por conteúdos criminosos
No julgamento em
curso no Supremo Tribunal Federal, sobre a ampliação da responsabilidade das
chamadas “redes sociais”, falta um personagem na história. O debate se
concentra em quem indexa ou reproduz conteúdo — o que abstrai ou minimiza a
culpa dos caluniadores e autores das ofensas.
A mera exclusão do
artigo 19 do Marco
Civil da Internet não
mata o mal na raiz. Pior: terceiriza a responsabilidade que deve ser,
principalmente, de quem dá causa aos crimes. O principal alvo, em caso de
ofensas a direitos, é o seu autor — que deve ser chamado à lide. Afinal, se o
conteúdo ilícito é suprimido na origem, não haverá como indexá-lo.
Evidente que, em
casos óbvios que se relacionem a delitos gravíssimos, como pedofilia, atentados
contra a democracia, racismo, tráfico de drogas e conexos, a própria plataforma
deve providenciar a supressão. Mas, para casos menos evidentes, o juiz é o agente
adequado para decidir.
Debate se concentra
em quem indexa ou reproduz conteúdo — o que abstrai ou minimiza a culpa dos
caluniadores e autores das ofensas
Caso contrário, se
delegará a empresas privadas funções de Estado. E cabe ao Estado reprimir e
punir com rigor os detratores que, não raro, ofendem, desmoralizam e
achincalham pessoas por encomenda. Ou seja: por dinheiro.
·
Culpados
absolvidos
São diversas as
situações em que autores de calúnias, injúrias e difamações são eximidos de
responsabilidade. O maior lote de notícias fraudulentas da história do Brasil
se deu nos anos áureos do esquema que se apelidou de “lava jato”.
Esse caso é
paradigmático para dar contexto ao julgamento no STF. Agentes públicos, como
delegados, procuradores e juízes, deflagraram uma campanha sem quartel contra
empresas, empresários e ministros do STF.
Com a cumplicidade
da imprensa, montou-se uma agência de notícias falsas. Empresas foram à
falência. Os ministros passaram a ser perseguidos e ameaçados. O mutirão
criminoso emparedou o STF para sustentar o falso movimento de “combate à
corrupção”.
Ao final, viu-se
que o verdadeiro objetivo do esquema não era identificar culpados e levá-los a
condenações. Tratava-se de um projeto de poder. Foram as engrenagens dessa
grande agência de publicidade que levaram ao Planalto e ao Congresso uma leva
de oportunistas.
Responsabilizar
quem indexou esse tipo de conteúdo tem dois efeitos: condena o autor errado e
absolve os malfeitores — o
que acaba por estimular a repetição dos delitos, que já são fabricados em
escala industrial.
Os direitos
fundamentais são cláusulas pétreas e as redes devem investir um pouco do que
ganham no zelo quanto ao que difunde. Mas isso não tira dos ombros do espaço de
origem a sua culpa.
O voto do ministro
Dias Toffoli segue a clara estratégia de radicalizar o raciocínio para jogar
luzes no debate e propiciar reflexão que leve ao caminho do meio. Atenuar a
prepotência das empresas que estão perto de governar o planeta. Há um oceano de
exemplos de abusos a exigir regras.
·
Gol
contra
A atribuição de
responsabilidade por meio do sistema judicial é sempre necessária para casos
mais complexos — aspecto em que o artigo 19 é inatacável. Mas há situações
nebulosas em que delegar a uma plataforma a incumbência de juiz ou polícia não
atende o interesse público.
Outro exemplo de
situação foi a Resolução 23.732 do Tribunal Superior Eleitoral. Feita às
pressas e sem exame de impacto, estabeleceu que entrevistas que mencionassem
projetos de leis configuram propaganda eleitoral.
Para
proteger-se, o
Google seguiu a regra de forma literal e vetou a difusão, por sua via paga,
de entrevistas que mencionassem, por exemplo, a reforma tributária.
Mesmo colidindo com
o interesse público, configurou-se situação exemplar de caso em que a delegação
do ato de “julgar” às plataformas mostrou-se nociva.
Novamente: não foi
a plataforma que deu causa ao mal-entendido e só deve responder
subsidiariamente — e não em primeiro lugar, caso haja ofensa a direito. O
primeiro a ser acionado deverá ser sempre o autor dos crimes contra honra ou o
que se assemelhe.
O debate ganhará
mais sentido se houver mais empenho na identificação e punição (exemplar) dos
criminosos que, muitas vezes por dinheiro, destroem reputações e colocam as
vidas de inocentes em perigo.
¨ Entenda o Artigo 19: Direito à liberdade de opinião e
expressão
Por que uma
organização de direitos humanos iria à Justiça para apoiar alguém com visões
políticas extremistas ou posições éticas fundamentalmente opostas? Um
pornógrafo talvez, ou um anarquista? Por conta dos direitos afirmados no Artigo 19 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), todos nós temos o
direito de formar nossas próprias opiniões e de expressá-las e compartilhá-las
livremente.
“Se não
acreditarmos na liberdade de expressão para pessoas que desprezamos, nós não
acreditamos nela de maneira alguma”, diz o linguista e ativista político Noam
Chomsky. A Human Rights Watch acrescenta: “liberdade de expressão é um
indicador: como qualquer sociedade tolera minorias, desfavorecidos ou até mesmo
aqueles com pontos de vista desagradáveis irá frequentemente mostrar seu
desempenho sobre direitos humanos de forma mais geral”.
Este direito
sustenta muitos outros, como de liberdade de religião, de reunião pacífica e a
habilidade de participar em questões políticas, mas a liberdade de expressão
não é ilimitada. Uma metáfora comum para descrever seus limites é que você não
pode gritar “fogo” falsamente em um teatro lotado e causar pânico e possíveis
danos. Outras formas de expressão geralmente não protegidas incluem pornografia
infantil, perjúrio, chantagem e incitação à violência.
Os redatores da
DUDH lutaram com a questão de quão tolerante uma sociedade deve ser com pessoas
como nazistas e fascistas, que são intolerantes. Eles estavam extremamente
conscientes sobre o papel desempenhado pela mídia e pela indústria
cinematográfica nazista na criação de um ambiente que permitiu o massacre de 6
milhões de judeus e outros grupos, como o povo roma (ciganos) e pessoas com
deficiências. Após a chegada ao poder em 1933, os nazistas usaram uma série de
novas leis e regulamentos para esmagar a mídia independente, colocando uma
máquina totalitária de propaganda em seu lugar, sob comando de Joseph Goebbels,
ministro da Propaganda.
Como resultado,
qualquer ação de ódio por questão nacional, racial ou religiosa que constitui
incitação à discriminação, hostilidade ou violência foi explicitamente proibida
quando a DUDH foi traduzida em lei internacional vinculante através de tratados
subsequentes. No Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a
liberdade de expressão ocupa a mesma posição (Artigo 19) da DUDH, fornecendo
critérios explícitos do que governos precisam cumprir quando restringem
liberdade de expressão. O Artigo 20 estabelece os limites da proibição de
incitação.
Os resultados
possivelmente letais de discursos de ódio – incluindo sua habilidade de
permitir violação ao direito à vida em larga escala – foram graficamente
demonstrados quando a rádio Mille Collines, de Ruanda, criou as bases para o
genocídio de 1994, ao desumanizar cidadãos e classificá-los como inimigos.
Aproximadamente 800 mil pessoas foram mortas. Mais recentemente, em Mianmar,
mensagens de incitação ao ódio e violência se espalharam em velocidade
alarmante nas redes sociais e podem ter contribuído para genocídio e crimes
contra a humanidade. A missão independente para descoberta de fatos em Mianmar
destacou o uso do Facebook pelo Exército de Mianmar para incitar ódio e
espalhar informações falsas com o objetivo de justificar ações contra civis. Em
reação, o Facebook fechou diversas destas contas.
Você tem direito a
ter qualquer opinião, não importa quão ruim seja, mas a expressão desta opinião
– se representar incitação – deve ser declarada ilegal, com exemplos históricos
claros do que pode acontecer quando isto não acontece.
Quando um tabloide
britânico reviveu o estilo da rádio Mille Collines em 2015, ao se referir a
migrantes e refugiados como “baratas”, o então chefe de Conselho de Direitos
Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein, pediu para países europeus adotarem uma
posição mais firme em relação ao racismo e à xenofobia. “Sob o disfarce de
liberdade de expressão, está sendo permitido alimentar um vicioso ciclo de
difamação, intolerância e politização de migrantes, assim como de minorias
europeias marginalizadas, como o povo roma”, afirmou.
Liberdade de
expressão é, no entanto, explicitamente protegida na maioria das esferas, e há
crescentes preocupações atualmente com os contínuos, e possivelmente
crescentes, esforços para uso incorreto do conceito de “discurso de ódio” ou
“incitação” como uma desculpa para calar dissidências ou críticas a um governo
no poder, frequentemente usando legislação antiterrorismo como meio legal para
o que, sob lei internacional, é um fim ilegal.
A ONU criticou em
diversas ocasiões leis domésticas problemáticas que suprimem a oposição ou
dissidência em nome do combate ao “discurso de ódio”. O relator especial sobre
a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, David
Kaye, destacou que “Estados frequentemente fazem proibições vagas relativas à
‘defesa do ódio’ que não representam incitação”.
O Artigo 19 inclui
o direito de “procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer
meios e independentemente de fronteiras”. Embora indivíduos usufruam dos meios
direitos online e offline, Estados também estão censurando, e às vezes
criminalizando, uma ampla gama de conteúdos online através de leis vagas ou
ambíguas proibindo “extremismo”, “blasfêmia”, “difamação”, linguagem
“ofensiva”, “notícias falsas” e “propaganda”.
Se jornalistas são
alvos de ataques, espionagem, prisão ou até mesmo assassinados quando suas
buscas por informações são interpretadas por governos ou organizações
criminosas como uma ameaça, pessoas podem ser incapazes de formar uma opinião ou
tomar decisões informadas.
O Comitê para
Proteger Jornalistas afirma que, em 2017, 262 jornalistas foram presos no
mundo, e a Repórteres Sem Fronteiras diz que 90% dos crimes contra jornalistas
não são punidos. Mesmo em democracias que se orgulham de serem livres, a
demonização de jornalistas e acusações de “fake news” e limitações sobre a
proteção de fontes jornalísticas estão prejudicando seus trabalhos.
Conforme esforços
para controlar discursos e informações aumentam, o Escritório do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) forneceu
diretrizes sobre como distinguir liberdade de expressão de discurso de ódio
através do “Plano de Ação de Rabat”, que sugere a criação de um patamar alto
para interpretar as restrições criadas pela lei internacional de direitos
humanos na limitação de liberdade de expressão.
Fonte: Conjur/Naçõs Unidas Brasil
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