terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Feminicídio: penas mais duras vão proteger as mulheres?

Cerca de 70% das vítimas dos feminicídio registrados no primeiro semestre deste ano foram mortas dentro de casa, segundo dados do Instituto Sou da Paz. A maioria dos assassinos eram companheiros ou ex-companheiros, que mataram essas mulheres por serem mulheres, conforme a definição de feminicídio das leis e da justiça. 

O número de feminicídios bateu recorde em 2023, foram 1463 mortes, equivalente a mais de 4 vítimas por dia. As informações do Fórum de Segurança Pública mostram ainda que a maioria das mulheres assassinadas são negras.

Integrantes do Ministério Público do Distrito Federal analisaram boletins de ocorrência registrados por mulheres antes de seus assassinatos, para entender em qual contexto um feminicídio acontece. A publicação de 2021 mostra que os crimes aconteceram após episódios de ciúme excessivo, ameaças, separação ou tentativa de rompimento, e de agressões. 

A conclusão é que essas mulheres já sofriam violência doméstica e familiar e suas mortes poderiam ter sido evitadas – caso uma intervenção tivesse sido feita a tempo. 

PENAS MAIS DURAS SÃO UMA SOLUÇÃO?

A pena para feminicídio aumentou este ano. Antes o criminoso podia ser punido com 12 a 30 anos de prisão, agora o assassino pode ficar de 20 a 40 anos recluso. Para especialistas em direito das mulheres essa não é a medida mais efetiva. “A punição por si só não é pedagógica. Ela [a punição] não consegue fazer a sociedade entender que determinadas condutas problemáticas não podem ser reproduzidas na sociedade”, defendeu Juliana Borges, autora do livro “Encarceramento em Massa”, da coleção Feminismos Plurais, nessa reportagem. 

O termo ‘punitivismo’ é atribuído ao criminologista Anthony Bottoms. Na década de 90, ele escreveu um artigo sobre o comportamento de políticos que defendiam determinadas penas. Bottoms observou que as medidas que se mostravam mais efetivas (para transformar o contexto social em que os crimes aconteciam) eram trocadas por aquelas que tinham mais apelo entre os eleitores. 

Dessa forma, os grupos de reflexão e responsabilização previstos na Lei Maria da Penha (LMP) são considerados uma alternativa mais eficaz que o encarceramento. 

Uma análise com 69 homens que participaram de Grupos Reflexivos sobre Gênero e Violência Doméstica aponta que, após seis meses, o índice de reincidência foi de 8%. A média nacional, sem a participação em ações semelhantes, gira em torno de 20%. Em alguns estados chega a 80%, conforme dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.  

Especialistas em direito das mulheres levantam outra ponderação: no punitivismo, o cuidado da vítima também é esquecido. Já que o foco está – apenas – em encarcerar o assassino. E, em alguns casos, isso não é suficiente para elas sentirem que a justiça foi feita. “Ser escutada e considerada são partes fundamentais para ela se sentir capaz de ter uma vida minimamente satisfatória”, contribui Débora Eisele Barberis nessa reportagem.   

FALTA DE INFORMAÇÃO

Sofrer em segredo agrava a situação. E muitas mulheres se encontram nessa situação por falta de apoio, dependência financeira, medo e desconhecimento de seus direitos. Apenas 20% das brasileiras sabem, por exemplo, o que é a Lei Maria da Penha (LMP). 

A LMP determina auxílio aluguel em caso de violência doméstica e prioridade para matricular os filhos em uma nova escola, em caso de mudança, dentre outras coisas. A lei também permite que a vítima se afaste  do trabalho por até seis meses, sem ser demitida. 

Eliminar o feminicídio exige o enfrentamento do que vem antes dele: a violência doméstica. E isso passa por acolher, apoiar, ajudar a denunciar e compartilhar informação. Mas também passa por entender que o feminicídio é o último nível de uma escalada de violência. Quando ele acontece, significa que toda a sociedade falhou com essa mulher.

 

¨      O que é a tal “lua de mel” da violência doméstica?

Uma relação abusiva não começa de forma violenta. Quando conhecem seus parceiros, muitas mulheres têm a sensação de que estão vivendo uma espécie de conto de fadas da vida real. Sentem que suas necessidades são atendidas antes de serem verbalizadas, e, são, constantemente, surpreendidas com elogios, presentes e gestos carinhosos. Então, quando os abusos aparecem, a impressão é que eles são um acidente. Uma exceção. Na realidade, são os primeiros sinais de um ciclo de violência que já começou e que geralmente tem 3 fases, como explica o Instituto Maria da Penha.

1ª FASE: AUMENTO DA TENSÃO

É a primeira fase do ciclo de violência. Nesse momento o companheiro fica tenso e irritado por motivos insignificantes. E extravasa a raiva de forma intimidadora – dando murros em paredes, fazendo ameaças, humilhando e controlando os movimentos da parceira. Muitas mulheres vivem isso em segredo, acreditando que o comportamento é reflexo de um problema externo, como um momento difícil no trabalho e falta de dinheiro. Como se a agressividade tivesse uma justificativa. 

Com medo de “gerar ainda mais problemas”, a vítima vigia o próprio comportamento e se culpa pelo que está acontecendo. A crença é que se tiver paciência, tudo vai passar em breve. Mas não. Essa situação pode durar dias ou anos e a tendência é que se agrave. E isso leva à próxima fase.

2ª FASE: ATO DE VIOLÊNCIA  

É quando a tensão explode e leva a uma violência mais evidente. Nessa hora, o que era ameaça, vira realidade. “Pode ser uma agressão física direta, a destruição de algo valioso para a vítima – uma situação que desencadeia medo e crise de ansiedade”, explica a gerente do aplicativo Penhas d’AzMina, Mari Leal. É nessa hora que vem o choque. O momento que muitas mulheres reconhecem que estão numa relação abusiva e tentam buscar ajuda em abrigos, delegacias ou em casa de amigos e familiares. O medo faz com que se afastem, e aí vem a terceira fase. 

3ª FASE: A “LUA DE MEL”

Nessa etapa, aquele homem agressivo muda da água pro vinho. É o momento que ele diz frases como: 

“não sei o que me deu”, 

“nunca quis te machucar”, 

“não sei o que vou fazer da minha vida sem você”

“perdi a mulher que eu mais amei”

Junto com isso vem presentes, gentilezas e surpresas. Ele parece fazer coisas que antes não gostava, como dividir os cuidados com a casa, ser presente nas finanças, tratar bem pessoas próximas. Muitas vezes a vítima aceita as promessas de mudança, com a sensação de que o cara legal por quem ela se apaixonou está de volta. Se instala, então, um período de calma. Mas tudo não passa de manipulação. 

A fase da “lua de mel” não é o fim das agressões, só é uma pausa da violência mais óbvia.  Um jeito que o agressor encontra de convencer a vítima que agora será diferente. Mas é só ele se sentir no domínio de novo, que de repente o ciclo recomeça. Conforme o tempo passa, o intervalo entre as fases diminui e o comportamento do agressor fica cada vez mais violento – o que pode acabar em feminicídio. 

É preciso buscar ajuda e reconhecer que “a lua de mel” é parte de um ciclo, que não vai parar. Essa fase tem cara de amor, mas não é. O nome nem devia ser lua de mel (expressão romântica para os dias de prazer após o casamento). Chamar assim confunde algo que é bom, com aquilo que deveria ser um sinal de alerta. Quando a gente olha de perto, dar o mesmo nome para duas coisas tão diferentes é romantizar a violência.  

 

Fonte: AzMina

 

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