Sidney Jard: Semipresidencialismo de classe
- limites legislativos do pacote fiscal
O semipresidencialismo é um sistema de governo no qual
o presidente, eleito pelo povo, é o chefe do Estado, e o primeiro-ministro,
eleito pelo Poder Legislativo, é o chefe de governo. Não obstante suas enormes
diferenças culturais, econômicas, políticas e sociais, países como Argélia,
França, Egito, Portugal, Romênia, Rússia e Ucrânia adotam este modelo político
institucional, entre outros.
Embora o Brasil seja um país formalmente
presidencialista, na prática, cada vez mais, tem caminhado para um sistema semipresidencialista
no qual, em última instância, é o Congresso Nacional que define quem governa,
como governa e até quando governa. Em poucas palavras: presidencialista de jure,
semipresidencialista de
facto.
Os governos Fernando Collor de Melo (1990-1992), à direita, e
Dilma Vana Rousseff (2011-2016), à esquerda, são as expressões mais nítidas dos
estreitos limites institucionais desse sistema de governo.
Em termos de políticas públicas, a reforma tributária
do Governo Lula 3, por sua vez, é um bom exemplo dos limites de classe desse
sistema político. O projeto do Executivo foi pensado para ser aprovado em duas
fases:
I)
reforma
sobre o consumo e
II)
reforma
sobre a renda.
No entanto, até o momento, prosperou apenas a
racionalização da tributação indireta (consumo) enquanto o aumento da
tributação direta (renda) sofre grande resistência no Congresso Nacional.
Neste ponto, é sintomático que, no auge do debate sobre
os desequilíbrios das contas públicas, o ministro Fernando Haddad tenha
anunciado que a segunda
fase da reforma tributária ficará para 2025 e concentre sua política
fiscal na revisão dos gastos públicos. Trata-se de uma evidente antecipação das
dificuldades que enfrentaria (e enfrentará) para aprovar quaisquer projetos
legislativos que aumentem a taxação sobre os mais ricos. Não por acaso, também
avança no Congresso Nacional uma proposta alternativa de corte de gastos que
concentra os custos dessa medida sobre os mais pobres.
<><> A política institucional
das elites
Considerando os distintos interesses econômicos representados
pelo Poder Legislativo, eleito predominantemente em pleitos proporcionais, e
pelo Poder Executivo, eleito em pleito majoritário, defino esse sistema
político como semipresidencialismo de classe, no sentido de demandar uma
constante negociação parlamentar em torno dos interesses de classe e frações de
classe representados por esses dois poderes da República, sobretudo quando um
presidente de origem popular e progressista precisa governar com um Congresso
de origem elitista e conservadora. Nesse peculiar sistema político, ao
contrário do que ocorre no presidencialismo, no parlamentarismo e no
semipresidencialismo clássicos, o presidente da República depende da
sustentação parlamentar para manter o seu mandato.
O semipresidencialismo de classe é mais do que um
sistema de governo; é uma pré-condição política institucional imposta pelas
elites para jogar o jogo democrático com as massas, sem correr o risco de
goleadas. O Judiciário, por sua vez, como árbitro tecno-político, não hesita em
referendar impedimentos, leia-se impeachments, quando quaisquer indícios de
transgressão das regras esportivas que favorecem os mais ricos são apontados
pelo VAR dos interesses de classes.
Embora também seja por voto popular, desde a
redemocratização do país é evidente a tendência plutocrática do legislativo
brasileiro. Muito mais do que a popularidade dos candidatos, o que efetivamente
define a probabilidade de se assumir uma cadeira no Congresso Nacional são os
recursos financeiros de cada campanha. Assim, cada vez mais a composição
política do legislativo se afasta da morfologia social da sociedade brasileira.
Já no que se refere à Presidência da República, desde
2002, os candidatos de origem popular tendem a ter mais chances de vencer a
eleição do que aqueles originários das elites econômicas e intelectuais do
país. Assim, mesmo que situados em polos opostos do espectro político, não é
por acaso que o ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-capitão Jair
Messias Bolsonaro tenham protagonizado a última disputa eleitoral. Ambos,
candidatos de origem popular, discurso popular e carisma, representam as
contradições de classe da sociedade brasileira, cindida entre a esquerda
pragmática institucionalista (a julgar pelo último pacote, leia-se fiscalista)
e a extrema-direita populista (a julgar pelos últimos intentos, leia-se
golpistas).
Ocorre que independentemente da sua orientação política
e ideológica, seja quem for o Presidente da República, este terá que fazer
concessões de classe para cumprir o seu mandato. O que poderá variar é a
densidade e intensidade dessas concessões, a depender do quanto os interesses
de classe de quem ocupa a Presidência da República se distanciam ou se
aproximam dos interesses de classe representados no Congresso Nacional. No
jargão da Ciência Política, o quanto as preferências do Executivo convergem ou
divergem das preferências do Legislativo.
É exatamente o que acontece agora com o pacote fiscal
do ministro Fernando Haddad. É pouco provável que o Congresso referende medidas
que atinjam as classes mais abastadas e bem representadas no legislativo,
inclusive militares de alta patente e alto escalão do funcionalismo público. O
mais provável é que o custo do equilíbrio das contas públicas seja jogado sobre
os ombros dos mais pobres: trabalhadores que recebem um salário-mínimo,
beneficiários de políticas sociais e outros desvalidos da classe trabalhadora.
<><> Quem paga mais, classe
dominante ou classe dominada
Eventualmente, parte da classe média poderá até ser
beneficiada com a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5.000,00
por mês, mas é muito difícil que o Congresso ratifique o aumento da alíquota do
mesmo imposto para quem ganha mais de R$ 50.000,00 mensais. Assim, na prática,
o grosso do corte de gastos recairá sobre os benefícios destinados aos pobres:
ajustes no abono salarial, na correção do salário-mínimo, no Bolsa Família, no
BPC etc. Em poucas palavras, a contenção do ajuste salarial e dos benefícios
sociais dos que ganham um salário-mínimo pagará a isenção do imposto de renda
de quem ganha cinco salários-mínimos. Simples assim, até os estagiários do
Ministério da Fazenda sabem fazer este cálculo político elementar.
Embora no atual sistema de governo, a classe dominada
(empregados, subempregados, desempregados) possa até eleger o Presidente da
República, a composição majoritária do Congresso Nacional é prerrogativa das
classes dominantes (banqueiros, empresários, ruralistas). E são estes setores
da sociedade que, no semipresidencialismo de classe, definem o que cortar, como
cortar, quando cortar e de quem cortar (leia-se dos mais pobres).
Em 2022, a maior liderança popular forjada pelas
classes trabalhadoras do país elegeu-se pela terceira vez o Presidente (em
tese, chefe de governo e chefe de Estado), mas as principais políticas governamentais,
sobretudo aquelas relacionadas à esfera fiscal, continuarão sendo definidas por
aqueles que se deslocam dos luxuosos escritórios empresariais para os
requintados gabinetes legislativos. No semipresidencialismo de classe, o povo
trabalhador até pode chegar à Presidência da República, mas quem governa de
fato são os representantes das elites empresariais instaladas no Congresso
Nacional.
¨ Lula
hospitalizado não impede aprovação do pacote da maldade este ano pelo
Congresso, diz Padilha
O ministro de Relações
Institucionais, Alexandre Padilha, disse nesta terça-feira que o fato de o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva estar hospitalizado não impede a aprovação
do pacote fiscal pelo Congresso Nacional ainda este ano.
"O procedimento que
Lula passou na madrugada, o fato de estar hospitalizado, não impede que esse
ritmo e compromisso de votações tenham continuidade para que possamos concluir
o ano com essas regras do marco fiscal consolidadas", disse Padilha em
entrevista a repórteres em Brasília.
Lula passou por uma cirurgia
de emergência na madrugada desta terça-feira, em São Paulo, para drenagem de um
hematoma no crânio, após sentir dores de cabeça na véspera. Segundo a equipe
médica, ele está consciente, conversando e se alimentando normalmente, mas só
deverá retornar à capital na próxima semana.
Padilha contou que antes de
ir ao hospital Lula ouviu dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do
Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em uma reunião no Palácio do Planalto, o
compromisso deles de votar ainda este ano as medidas que reforçam o marco
fiscal.
Segundo Padilha, a
orientação do governo, que foi repassada a Lira e Pacheco no encontro, é
acelerar a execução das emendas parlamentares para facilitar o ambiente de
votação no Congresso.
O ministro disse que deve
sair em breve um parecer com força executória da Advocacia-Geral da União (AGU)
sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que liberou, com
condicionantes, o repasse das emendas. Ele falou que a iniciativa da AGU vai
permitir aos ministérios que possam dar continuidade à execução das emendas.
"Óbvio que a execução
dos recursos orçamentários melhora ainda mais o ambiente para essa
votação", reconheceu o ministro.
Desde a semana passada, o
impasse em torno da decisão do ministro do STF Flávio Dino sobre as emendas e o
próprio ritmo de liberação desses recursos têm travado a votação do pacote
fiscal do governo, ameaçando jogá-lo para 2025.
No entanto, segundo Padilha,
Lira e Pacheco se comprometeram a fazer tudo que estiver ao alcance deles para
votar o pacote ainda este ano. Entre as iniciativas, citou, pautar urgências,
colocar sessões de votação todos os dias na Câmara e acelerar a discussão para
a escolha dos relatores das matérias.
A despeito do momento de
insatisfação de aliados na Câmara, o ministro afirmou que em nenhum momento
Lula falou de promover uma reforma ministerial. "Não é um tema que está
sendo tratado neste momento", frisou.
¨
O mercado financeiro: o
guardião da instabilidade conveniente. Por Diogo Almeida Camargos
O mercado financeiro, apesar de sua
reputação como guardião do progresso econômico, sempre encontra razões para
desaprovar qualquer governo que não abrace a agenda neoliberal. Recentemente,
mesmo diante de bons indicadores econômicos, como a redução da inflação,
crescimento do PIB e fortalecimento do mercado de trabalho, o mercado
financeiro – essa entidade tão sensível e exigente – continua a torcer o nariz.
É como se os bons números não fossem suficientes para agradar e acomodar o seu
ego insaciável.
Essa postura levanta uma questão
importante: o mercado financeiro está realmente preocupado e interessado no
crescimento e na estabilidade econômica? Se sim, na estabilidade e no
crescimento de quem ou do quê? Erik Olin Wright, em sua obra Como
ser Anticapitalista no Século XXI[1],
mostra que “o capitalismo, ao se basear na lógica do mercado e na acumulação de
lucro, torna-se intrinsicamente resistente a qualquer tentativa de redistribuir
riqueza ou empoderar as classes trabalhadoras”. A lógica do mercado financeiro
não é, portanto, apenas econômica, mas também política e ideológica: ele opera
como um instrumento de dominação de classe, onde o lucro dos rentistas e
especuladores prevalece sobre o bem-estar social. No livro Dinheiro:
o poder da abstração real[2], Luiz Gonzaga Belluzzo
e Gabriel Galípolo apontam que “as decisões cruciais no capitalismo são tomadas
pelos donos da riqueza e de sua forma suprema, o dinheiro”.
<><> “Tadinho” do mercado financeiro: sempre
injustiçado
Existe o fetiche de se apresentar como
vítima de políticas públicas “inadequadas”, que geram “gastos para o Governo”,
sempre que um governo ousa priorizar o combate às desigualdades, investir em
programas sociais ou apenas fazer com que os detentores do capital contribuam
um pouco mais. Contudo, mesmo alcançando um crescimento econômico acima do
esperado, o mercado se queixa da “falta de reformas estruturais” e da “falta de
controle do gasto público”, um eufemismo para medidas que reduzam direitos
sociais.
David Harvey explica em seu livro Crônicas Anticapitalistas[3], que na lógica do poder capitalista, a
acumulação de riqueza se torna um poder de controle dos outros, principalmente
sobre a classe operária e trabalhadora. De tal forma que os capitalistas,
detentores do poder econômico, têm a capacidade de tornar o Estado em um
operador de suas próprias causas. Além disso, Harvey reflete sobre quem tem a
legitimidade de deter o poder no “interior” do Estado, de modo que haverá
sempre uma disputa eterna sobre como o poder econômico é exercido no aparelho
estatal.
Curiosamente, o mercado financeiro parece
ter uma memoria seletiva quando se trata de quem realmente paga a conta. Entre
as propostas de tributação de dividendos, grandes fortunas e o fim de isenções
fiscais para os setores privilegiados, o discurso mórbido do “risco a economia”
emerge com força. Para o mercado, tais medidas seriam uma afronta a liberdade
econômica e ao progresso – uma retorica que, no fundo, busca proteger
interesses exclusivos da elite rentista. Então, por que não discutir seriamente
a implementação dessas medidas em prol de uma sociedade mais justa?
<><> O Estado:
ferramenta que o mercado ama odiar
Jessé de Souza, em A
Elite do Atraso[4], chama nossa atenção para como
o mercado financeiro brasileiro se beneficia de um sistema que é,
essencialmente, “um pacto oligárquico”. Essa elite rentista utiliza o mercado
como mecanismo de drenagem de recursos das classes populares para os estratos
mais altos da sociedade. Programas sociais ou políticas de valorização do salário
mínimo são, invariavelmente, vistas como populismo fiscal, ainda que seus
impactos econômicos positivos sejam comprovados.
A hipocrisia do mercado financeiro parece
ter uma “memória seletiva” quando se trata de quem realmente paga a conta.
Benefícios fiscais concedidas a grandes empresas e setores econômicos
privilegiados são tolerados como “necessários” para o funcionamento da
economia. Entretanto, quando surge a oportunidade de reverter essas isenções ou
aumentar a tributação de grandes fortunas, o mercado financeiro clama por
“responsabilidade fiscal”, enquanto silencia diante dessas mesmas benesses.
<><> Quem paga a
conta? Sempre os mesmos
A contradição entre os bons indicadores
econômicos e a desaprovação do mercado financeiro demonstra que ele não está
interessado em progresso coletivo. Como Jesse de Souza afirma: “A neutralidade
do mercado é, na melhor das hipóteses, uma ficção, usada para justificar tal
resistência a qualquer mudança estrutural que ameace seus lucros. Mesmo quando
os números demonstram que a economia está crescendo, a inflação está sob
controle e o desemprego está em queda, o mercado exige mais – mais reformas,
mais cortes de gastos, mais flexibilização. Essa postura revela sua verdadeira
essência: um sistema que, longe de promover o bem-estar social, trabalha
incessantemente para preservar e ampliar as desigualdades.”
<><> Conclusão: o
mercado e sua contradição infinita
O mercado adota a postura de um juiz
onipotente, cujas sentenças parecem divorciadas da realidade dos números. Ainda
que o Brasil ostente hoje indicadores econômicos positivos, como a redução da
inflação, o fortalecimento do emprego e o aumento do PIB além do esperado, o
mercado continua a reprovar políticas que não atendam aos seus interesses e
necessidades. Essa aparente inconsistência revela algo fundamental: o mercado
financeiro não se opõe a resultados econômicos favoráveis, mas sim a resultados
que não assegurem a reprodução de seus privilégios e da elite.
David Harvey argumenta, com clareza, que o
poder econômico é a chave para entender como o capitalismo transforma o Estado
em um executor de seu interesse. Nesse contexto, a insatisfação do mercado
financeiro não é fruto da preocupação genuína com a estabilidade econômica; é
uma reação política contra qualquer tentativa de redistribuir riqueza ou
desafiar sua hegemonia.
Esse mercado não é neutro nem vítima. Ele é
o arquiteto de um sistema que valoriza o lucro acima do bem-estar, que reage
negativamente as politicas de inclusão social e que instrumentaliza o Estado
para moldá-lo aos seus interesses. A maior ironia é que, embora o mercado tenha
aversão ao Estado e ao intervencionismo, ele recorre a essa mesma estrutura
estatal para garantir seus privilégios em momentos de crises.
Em última análise, os governos não são
desaprovados pelos seus resultados econômicos, mas sim por não serem de sua
matriz ideológica. É preciso enxerga-lo não como aliado de um progresso, mas
como um agente de interesse. E, ao reconhecermos isso, temos a chance de
construir uma econômica que não seja refém de seu capricho.
Fonte: Le Monde/Reuters
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