O “choque do petróleo” e o
choque eleitoral
O ano de 1974 iniciou-se com a economia capitalista internacional
sofrendo o impacto do “choque do petróleo”, um dos mais claros e importantes
exemplos da interconexão dialética da economia e da política em nossa época. Em
outubro de 1973, Egito e Síria lançaram uma ofensiva contra o Estado colonial israelense.
Os Estados Unidos imediatamente organizaram uma ponte aérea para transportar as
armas e os equipamentos bélicos que permitiram a seus protegidos de Tel Aviv
reequilibrar a relação de forças no campo de batalha e contra-atacar.
Indignados com a descarada intervenção estadunidense, os Estados
exportadores árabes de petróleo, Arábia Saudita à frente, decidiram aumentar os
preços e reduzir de 5% ao mês a produção, até que fossem evacuados os
territórios da Palestina ocupados pelos colonialistas. Decretaram também o
embargo total das exportações de petróleo para os Estados Unidos e para seu
principal lacaio europeu, a Holanda. O preço médio do barril passou de 3 a 18
dólares em algumas semanas, tendendo a se estabilizar, no final do ano, em
11,65.
Quando o general Ernesto Geisel iniciou seu governo, os preços das
importações brasileiras de petróleo estavam crescendo drasticamente (entre três
e quatro vezes em relação a 1973), acentuando as fortes pressões inflacionárias
que vinham se manifestando durante o cruel “milagre” econômico de Delfim Neto.
A pequena burguesia perdeu a euforia dos anos anteriores, do patriotismo
futebolístico da Copa do Mundo de 1970 ao ilusório “empreendedorismo”
financeiro expresso no slogan: “não tome uma Brahma, compre ações da Brahma!”
etc.
Junto com os da gasolina, os preços dos bens básicos de consumo não
paravam de subir e com eles a desilusão e o descontentamento. Não obstante, o
êxito dos exportadores árabes em seu enfrentamento com o colonialismo sionista
e com seus protetores do Pentágono e de Wall Street, certamente pesou na adoção
da nova política externa brasileira. O “terceiro mundo” mostrara sua força:
valia a pena desatrelar-se da subserviência aos Estados Unidos. Tal foi a
diretriz de Geisel, a despeito das dificuldades internas.
Mostrando uma visão das relações internacionais em ruptura com o
alinhamento subalterno de seus predecessores no campo estadunidense ele tomou
uma série de iniciativas convergentes que confirmaram não se tratar de decisões
isoladas, mas de uma postura coerente de política externa independente. Ele
reatou relações diplomáticas com a China Popular, rompidas pelos golpistas de
1964; reconheceu a independência dos povos africanos em luta contra o
colonialismo português; rompeu o acordo militar com os Estados Unidos.
No plano interno, porém, diferentemente de Garrastazu Médici, que ao ser
empossado em 1969 manifestou a expectativa de “restabelecer a democracia”, mas
deu carta branca aos agentes do terrorismo de Estado para exterminar a
resistência armada, Ernesto Geisel absteve-se de promessas inconsequentes,
ponderando que a revogação do Ato 5 pressupunha o aniquilamento dos que se
opunham ao regime com armas na mão.
Em longa série de entrevistas de caráter autobiográfico conduzida por
dois pesquisadores do CPDOC (entre julho de 1993 e março de 1994), ele comentou
a pergunta “se o governo Médici era uma perspectiva de normalização” (sic).
Dentro dos limites da polidez protocolar, após dizer que ele era “um homem de
bem”, Ernesto Geisel acrescentou: “Era simpático, todos gostavam dele. Tinha as
condições para a tarefa. É verdade que não era um homem de grandes luzes,
também não era um homem de trabalhar muito… Ficava nas grandes linhas. E era
apaixonado pelo futebol”.
Traduzindo em linguagem mais crua: Garrastazu Médici era um medíocre
funcionário público fardado, sem ideias próprias, preguiçoso, principalmente
interessado em futebol, deixando a Delfim Neto as decisões de política
econômica. Quanto à alusão dos entrevistadores à “perspectiva de normalização”
de Médici (cujo governo tornou norma a tortura sistemática em larga escala dos
presos políticos), Ernesto Geisel foi evasivo: “Naquela situação, naquela
emergência, foi a melhor escolha. Quem poderia ter sido se não fosse o Médici?”
(Ernesto Geisel, Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 214). Traduzindo
novamente: em setembro-outubro, na caótica crise do regime, Médici era o menos
pior dos generais de quatro estrelas disponíveis para assumir a chefia do
Executivo ditatorial.
Quanto a sua própria designação, em 1974, para presidir a ditadura,
Ernesto Geisel se ateve a generalidades protocolares, insistindo em que não
trabalhou para ser candidato. Queixou-se, porém, dos “descontentes” e
“maledicentes” que espalharam que ele era o candidato mais forte porque tinha
oito estrelas, quatro dele e quatro de seu irmão Orlando (p. 259).
Havia outros pressupostos, além do aniquilamento da luta armada, que ele
não explicitou. O principal era que ele não pretendia renunciar aos poderes de
exceção de que estava investido antes de consolidar sua autoridade. A
perspectiva de uma vitória eleitoral da oposição legal nas eleições
legislativas de novembro de 1974 reforçou essa decisão.
Nas eleições anteriores, em 1970, no auge do terror da ditadura, mas
também do eufórico nacionalismo fascistóide (“Brasil, ame-o ou deixe-o”) e das
taxas de crescimento anual superiores a 10%, boa parte da oposição havia
preconizado o voto nulo. A vitória dos candidatos do regime, reunidos na ARENA
(Aliança Renovadora Nacional), sobre o MDB (Movimento Democrático Brasileiro,
partido da “oposição consentida”), foi esmagadora: obtiveram dois terços da
Câmara Federal e 59 das 66 cadeiras do Senado. Mas o efeito de legitimação do
regime foi quase nulo. Dentro e fora do Brasil, ficou claro que se tratava de
uma farsa eleitoral e que a ditadura era de fato um “regime de partido único”.
Tendo em vista essa imagem pejorativa, Ernesto Geisel afrouxou
consideravelmente a censura e o controle policial no processo eleitoral de
1974. De seu ponto de vista, era o risco a correr para conferir credibilidade
ao projeto de “abertura” do regime. O custo político, para ele, foi pesado. Nas
eleições de 15 de novembro, em que o voto para senador assumiu caráter
claramente plebiscitário, o MDB elegeu 16 senadores, das 22 cadeiras em disputa
e 161 deputados, 44% do total de 364 cadeiras em disputa na Câmara Federal. Em
São Paulo, na disputa pelo Senado, Orestes Quércia, do MDB, derrotou o
ex-governador Carvalho Pinto, da ARENA, por 4,3 milhões de votos contra 1,5
milhões.
Ernesto Geisel reagiu com habilidade à fragorosa derrota, declarando em
sua mensagem de fim de ano: “Ressentimentos – e não há razão para cultivá-los –
não me tolhem, nem sinto simples constrangimento – que até seria compreensível
– ao registrar que o MDB alcançou substancial avanço na autenticidade de sua
crescida expressão política”. Reconheceu os resultados, mas obviamente não iria
dizer que iniciativas tomaria para contrabalançar o avanço eleitoral da
oposição.
A objetividade histórica, de qualquer modo, obriga reconhecer que
através das alternâncias de abertura e fechadura, aos trancos e barrancos como
se dizia outrora, ele não perdeu o rumo de seu projeto institucional: usar o
Ato 5 para revogar o Ato 5.
Fonte: Por João Quartim de Moraes, em A Terra
é Redonda
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