quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Rita von Hunty: Identitarismo - Muito barulho por nada (?)

No rápido movimento que faço para abrir este prefácio, espero dar contorno ao intento do texto. O título faz referência à peça de William Shakespeare cuja trama tem por motor as identidades (nacional/estrangeiro, soldado/nobre, donzela/mulher corrompida). Escrita nos últimos anos do século XVI, Muito barulho por nada captura o espírito do tempo da modernidade inglesa1, sobretudo em cenas que ocorrem em um baile de máscaras onde certas identidades são suspensas e surgem outras formas de laços sociais e disputas de poder.

Em segundo lugar, neste texto, uma drag queen de esquerda radical e educadora popular apresenta o brilhante livro de um filósofo negro de esquerda radical, ambos na periferia do capitalismo. Cada uma dessas marcas sociais é fundamental para a produção de uma leitura da realidade, de uma identidade social e de um lócus para a ação política.

Por fim, a epígrafe escolhida advém de um incendiário manifesto2que resultou de mais de três décadas de lutas contra as opressões de classe, raça, gênero e epistemologia e da construção de uma rede de intelectuais, militantes e ativistas que se estende por todo o mundo. Ela encapsula algo que deveria ser óbvio para quem reflete com seriedade e honestidade intelectual sobre identidade e luta política: via de regra, as posições subalternas no interior dos paradigmas de identificação de sujeitos não são “autoatribuídas”, mas violentamente produzidas de forma material e ideológica sobre os corpos vencidos, superexplorados, escravizados e subvertidos em estranhos-abjetos na modernidade. O que os autores do manifesto depreendem da realidade é que as novas formas de laço social, produzidas tanto entre quanto intra minorias, são forças necessárias e capazes de produzir mudanças que levam à transformação do mundo como o conhecemos. Ora, não é exatamente assim que se encerra outro manifesto3fundamental para a história da luta social no Ocidente, quando pede a todos os trabalhadores do mundo que se unam?

Por que será, então, que se tornou tão comum ver e ouvir críticas aos “identitários”? Por que os conservadores e reacionários têm dirigido tanta energia contra esses movimentos e por que setores autointitulados “tradicionais” das esquerdas têm adjetivado tudo aquilo que lhes desagrada ou lhes escapa à compreensão de “pós-moderno” e “identitário”? Uma vez que há muito tempo os campos das teorias críticas e da psicologia social reclamam a noção de identidade ao seio da política como forma de possibilitar a existência degrupos e universalizar demandas ao Estado4, como é possível ainda haver tanto atraso e ausência de qualificação nesses debates?

Neste livro, Douglas Barros oferece, de forma generosa, didática e minuciosa, tanto um caminho para a compreensão do que são as identidades políticas e o dito “identitarismo” quanto uma possibilidade de resposta às perguntas que levantei aqui.

A tarefa inicial de quem o lê é aceitar complexificar o debate. Ora, que alegria seria se todas as pessoas negras se opusessem ao colonialismo e aos seus desdobramentos nefastos que produziram a ideia de raça5, que avanço e que vitórias seriam possíveis se todas as mulheres tomassem como objetivo primeiro de sua existência política a destruição do patriarcado, e se as pessoas LGBTQIAPN+ fizessem o mesmo com a cis-heteronorma6. A realidade, contudo, nos confronta com uma pluralidade de sujeitos, como Sérgio Camargo, Margaret Thatcher e Eduardo Leite, cuja filiação política à estrutura de poder colonial, capitalista e sexista nos explicita que não há nenhuma particularidade inerente às identidades subalternizadas que as propeliria “naturalmente” à luta política por emancipação das categorias das quais fazem parte em relação à lógica que as oprime.

Talvez esta seja a primeira dobra de profundidade neste debate: a identidade não obedece a uma gramática cartesiana, racionalista, iluminista ou pragmática: ela se localiza em outro campo. Da mesma forma que a religião e a política, as identidades adotam lógicas menos evidentes. Apesar de serem forças que movem a realidade, elas não são formas de estar no mundo que se ordenam / orientam apenas pela objetividade dos fatos. Assim como aquiloque a psicanálise chama de gozo7, as identidades são opacas à razão iluminista. Aqui está outro grande acerto deste livro: valer-se do ferramental da teoria psicanalítica no que ela possui de mais radical para a crítica da ideologia e no entendimento de como formas estruturais de exploração se cristalizam como sintomas na cultura8.

Para além da internalização do mal-estar cultural nos sujeitos, na esfera psicossocial, Douglas Barros já esquematizou, em outros textos9, como a gestão neoliberal das identidades opera um “esvaziamento” das lutas coletivas. Ao passo que no momento histórico atual a identidade é tomada como finalidade última do sujeito, ela funciona como dinâmica de alienação / reificação dele, resultando em afirmações singulares incapazes de interferir nos processos de organização do status quo. “Podemos reclamar de nossas dores desde que elas não se globalizem no tecido social, desde que elas permaneçam algo de grupos específicos”.10Tanto essas reclamações individuais quanto as dores que elas expressam são acomodadas como demandas de consumo por uma lógica social que submete tudo à forma mercadoria. Tal forma social se beneficia das dores e reclamações também ao hierarquizar sofrimentos e repor a lógica do “todos contra todos”, criando sujeitos empreendedores de si mesmos que “se esforçaram o bastante” para se tornarem vencedores, em oposição aos demais, perdedores no interior da categoria. “Negros no topo” e “Mulheres no topo” são slogans exemplificadores da ficção neoliberal que apaga a trajetóriahistórico-material que produziu a “base” e o “topo” da estrutura social, bem como sua racialização e generificação, por exemplo.

Embotados pela sanha identitária, os sujeitos no capitalismo tardio se veem incapacitados inclusive de mutação subjetiva (pressuposto da condição humana): são negros, mulheres, LGBTQIAPN+s sem se questionarem quais lógicas os racializaram, generificaram e identificaram a partir de práticas sexuais, transformando-os em “outros”.11 O mais perverso é que tal aprisionamento não é consciente ou voluntário, mas estrutural. Por exemplo: é a lógica racista que permite a existência, a ação e a rentabilidade de um movimento identitário liberal negro limitado a disputar melhores colocações dentro da hierarquia do sistema (em vez de sua superação), configurando-se um “antirracismo-racista”. Essa é uma dinâmica em operação sistêmica, o que significa que ela captura qualquer luta dissidente e a subverte em luta por uma identidade. É o caso dos “modelos sociais de deficiência”12, que elegem um funcionamento dos corpos como ideal (leia-se ideal para a extração de mais-valor, ideal para a ausência de políticas públicas, ideal para o funcionamento “autossuficiente” dos corpos) e, assim, transformam qualquer outro corpo em “deficiente”.

Isso não significa, de maneira alguma, que as lutas de minorias políticas sejam descartáveis em nome de uma luta “maior”. O próprio Marx já pensava o trabalho racializado como componente fundamental da luta de classes13. A posição marxista radical tem sido a de considerar a importância estratégica e tática14da luta contra as opressões no âmbito da luta de classes, com base na perspectiva de superação do sistema capitalista. Ora, a classe trabalhadora não é uma abstração, ela tem materialidade histórico-concreta, formada por posições de gênero, raça, sexualidade etc. Daí a importância de formular compreensões que articulem a exploração econômica e as formas de opressão em sentido emancipatório radical. Vale ressaltar que o termo “política identitária” foi introduzido no discurso político por um grupo de militantes marxistas negras e lésbicas que compreendem suas identidades como construções sociais e históricas, não como essências dos sujeitos15. Para elas, as identidades dão sentido à prática política e articulam exploração/opressão.

Tal compreensão não é uma novidade, ela existia já nas primeiras décadas do século XX, na experiência das feministas soviéticas16e sua conclusão de que, ao emancipar as mulheres da esfera reprodutiva do trabalho, a Revolução Russa produziria “novas mulheres” (novos sujeitos, portanto); ela também existia entre militantes marxistas LGBTQIAPN+17ao redor do mundo que compreendiam a problemática de sua “questão sexual” como intrinsicamente gerada e gerida pela lógica capitalista; e existia também em uma miríade de autorias negras 18que fizeram o mesmo no que diz respeito à noção de raça. Frantz Fanon, por exemplo, compreendia que a resistência das minorias racializadas era apenas um “momento de organização simbólica do racializado que lhe fornece uma identidade evanescente, é a ponte que ele atravessa para superar de maneira radical a própria estrutura social que divide a humanidade em raças”19.

Este livro nos urge a compreender a dimensão da questão das identidades, de sua produção pelas estruturas sociais de poder e de sua gestão no tempo presente. Sem essa compreensão, estaremos de mãos atadas para a transformação social. É urgente que a esquerda radical ofereça uma saída ao impasse que o neoliberalismo impôs ao capturar as pautas identitárias. Precisamos formular uma resposta à altura da manobra ideológica que neutralizou sujeitos dissidentes e seus movimentos com potencial revolucionário em espaços de apaziguamento das diferenças nos quais gestores representantes das minorias são mais bem colocados, gerando assim a falsa sensação de que, com algum mérito, qualquer sujeito também pode ascender socialmente e minimizar sua opressão / exploração. Nossa tarefa é dura porque exige um combate duplo: ao senso comum produzido pela hegemonia ideológica, mas também à simplificação preguiçosa dos setores autoproclamados “tradicionais” de esquerda, que jogam fora a tradição do pensamento marxista em nome de uma abstração de classe que silencia as minorias e suas denúncias da opressão social sob a pecha de “barulhentos”. Nosso barulho não é (e nunca foi) por nada. É o grito dos revoltados que corporificam os dejetos da moenda humana que chamamos de capitalismo. É chama viva da revolução, que necessita ser alimentada e direcionada para realizar seu potencial incendiário.

Seguimos em movimento e luta, como diz Rosa Luxemburgo, “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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