Rita von Hunty: Identitarismo - Muito barulho por nada (?)
No rápido movimento que faço para abrir este prefácio,
espero dar contorno ao intento do texto. O título faz referência à peça de
William Shakespeare cuja trama tem por motor as identidades
(nacional/estrangeiro, soldado/nobre, donzela/mulher corrompida). Escrita nos
últimos anos do século XVI, Muito barulho por nada captura o espírito do tempo da modernidade
inglesa1, sobretudo em
cenas que ocorrem em um baile de máscaras onde certas identidades são suspensas
e surgem outras formas de laços sociais e disputas de poder.
Em segundo lugar, neste texto, uma drag queen de esquerda radical
e educadora popular apresenta o brilhante livro de um filósofo negro de
esquerda radical, ambos na periferia do capitalismo. Cada uma dessas marcas
sociais é fundamental para a produção de uma leitura da realidade, de uma
identidade social e de um lócus para a ação política.
Por fim, a epígrafe escolhida advém de um incendiário
manifesto2que resultou de
mais de três décadas de lutas contra as opressões de classe, raça, gênero e
epistemologia e da construção de uma rede de intelectuais, militantes e
ativistas que se estende por todo o mundo. Ela encapsula algo que deveria ser
óbvio para quem reflete com seriedade e honestidade intelectual sobre identidade e luta política:
via de regra, as posições subalternas no interior dos paradigmas de
identificação de sujeitos não são “autoatribuídas”, mas violentamente
produzidas de forma material e ideológica sobre os corpos vencidos,
superexplorados, escravizados e subvertidos em estranhos-abjetos na
modernidade. O que os autores do manifesto depreendem da realidade é que as
novas formas de laço social, produzidas tanto entre quanto intra minorias, são
forças necessárias e capazes de produzir mudanças que levam à transformação do
mundo como o conhecemos. Ora, não é exatamente assim que se encerra outro
manifesto3fundamental para a
história da luta social no Ocidente, quando pede a todos os trabalhadores do
mundo que se unam?
Por que será, então, que se tornou tão comum ver e
ouvir críticas aos “identitários”? Por que os conservadores e reacionários têm
dirigido tanta energia contra esses movimentos e por que setores
autointitulados “tradicionais” das esquerdas têm adjetivado tudo aquilo que
lhes desagrada ou lhes escapa à compreensão de “pós-moderno” e “identitário”?
Uma vez que há muito tempo os campos das teorias críticas e da psicologia
social reclamam a noção de identidade ao seio da política como forma de
possibilitar a existência degrupos e universalizar demandas ao Estado4, como é possível
ainda haver tanto atraso e ausência de qualificação nesses debates?
Neste livro, Douglas Barros oferece, de forma generosa,
didática e minuciosa, tanto um caminho para a compreensão do que são as
identidades políticas e o dito “identitarismo” quanto uma possibilidade de
resposta às perguntas que levantei aqui.
A tarefa inicial de quem o lê é aceitar complexificar o
debate. Ora, que alegria seria se todas as pessoas negras se opusessem ao
colonialismo e aos seus desdobramentos nefastos que produziram a ideia de raça5, que avanço e que
vitórias seriam possíveis se todas as mulheres tomassem como objetivo primeiro
de sua existência política a destruição do patriarcado, e se as pessoas
LGBTQIAPN+ fizessem o mesmo com a cis-heteronorma6. A realidade,
contudo, nos confronta com uma pluralidade de sujeitos, como Sérgio Camargo,
Margaret Thatcher e Eduardo Leite, cuja filiação política à estrutura de poder
colonial, capitalista e sexista nos explicita que não há nenhuma
particularidade inerente às identidades subalternizadas que as propeliria
“naturalmente” à luta política por emancipação das categorias das quais fazem
parte em relação à lógica que as oprime.
Talvez esta seja a primeira dobra de profundidade neste
debate: a identidade não obedece a uma gramática cartesiana, racionalista,
iluminista ou pragmática: ela se localiza em outro campo. Da mesma forma que a
religião e a política, as identidades adotam lógicas menos evidentes. Apesar de
serem forças que movem a realidade, elas não são formas de estar no mundo que
se ordenam / orientam apenas pela objetividade dos fatos. Assim como aquiloque
a psicanálise chama de gozo7, as identidades
são opacas à razão iluminista. Aqui está outro grande acerto deste livro:
valer-se do ferramental da teoria psicanalítica no que ela possui de mais
radical para a crítica da ideologia e no entendimento de como formas
estruturais de exploração se cristalizam como sintomas na cultura8.
Para além da internalização do mal-estar cultural nos
sujeitos, na esfera psicossocial, Douglas Barros já esquematizou, em outros
textos9, como a gestão
neoliberal das identidades opera um “esvaziamento” das lutas coletivas. Ao
passo que no momento histórico atual a identidade é tomada como finalidade
última do sujeito, ela funciona como dinâmica de alienação / reificação dele,
resultando em afirmações singulares incapazes de interferir nos processos de
organização do status
quo.
“Podemos reclamar de nossas dores desde que elas não se globalizem no tecido
social, desde que elas permaneçam algo de grupos específicos”.10Tanto essas reclamações individuais
quanto as dores que elas expressam são acomodadas como demandas de consumo por
uma lógica social que submete tudo à forma mercadoria. Tal forma social se
beneficia das dores e reclamações também ao hierarquizar sofrimentos e repor a
lógica do “todos contra todos”, criando sujeitos empreendedores de si mesmos
que “se esforçaram o bastante” para se tornarem vencedores, em oposição aos
demais, perdedores no interior da categoria. “Negros no topo” e “Mulheres no
topo” são slogans exemplificadores da
ficção neoliberal que apaga a trajetóriahistórico-material que produziu a
“base” e o “topo” da estrutura social, bem como sua racialização e
generificação, por exemplo.
Embotados pela sanha identitária, os sujeitos no
capitalismo tardio se veem incapacitados inclusive de mutação subjetiva
(pressuposto da condição humana): são negros, mulheres, LGBTQIAPN+s sem se questionarem
quais lógicas os racializaram, generificaram e identificaram a partir de
práticas sexuais, transformando-os em “outros”.11 O mais perverso é que tal
aprisionamento não é consciente ou voluntário, mas estrutural. Por exemplo: é a
lógica racista que permite a existência, a ação e a rentabilidade de um
movimento identitário liberal negro limitado a disputar melhores colocações dentro
da hierarquia do sistema (em vez de sua superação), configurando-se um
“antirracismo-racista”. Essa é uma dinâmica em operação sistêmica, o que
significa que ela captura qualquer luta dissidente e a subverte em luta por uma
identidade. É o caso dos “modelos sociais de deficiência”12, que elegem um
funcionamento dos corpos como ideal (leia-se ideal para a extração de
mais-valor, ideal para a ausência de políticas públicas, ideal para o
funcionamento “autossuficiente” dos corpos) e, assim, transformam qualquer
outro corpo em “deficiente”.
Isso não significa, de maneira alguma, que as lutas de
minorias políticas sejam descartáveis em nome de uma luta “maior”. O próprio
Marx já pensava o trabalho racializado como componente fundamental da luta de
classes13. A posição marxista
radical tem sido a de considerar a importância estratégica e tática14da luta contra as
opressões no âmbito da luta de classes, com base na perspectiva de superação do
sistema capitalista. Ora, a classe trabalhadora não é uma abstração, ela tem
materialidade histórico-concreta, formada por posições de gênero, raça,
sexualidade etc. Daí a importância de formular compreensões que articulem a
exploração econômica e as formas de opressão em sentido emancipatório radical.
Vale ressaltar que o termo “política identitária” foi introduzido no discurso
político por um grupo de militantes marxistas negras e lésbicas que compreendem
suas identidades como construções sociais e históricas, não como essências dos
sujeitos15. Para elas, as
identidades dão sentido à prática política e articulam exploração/opressão.
Tal compreensão não é uma novidade, ela existia já nas
primeiras décadas do século XX, na experiência das feministas soviéticas16e sua conclusão de
que, ao emancipar as mulheres da esfera reprodutiva do trabalho, a Revolução
Russa produziria “novas mulheres” (novos sujeitos, portanto); ela também
existia entre militantes marxistas LGBTQIAPN+17ao redor do mundo
que compreendiam a problemática de sua “questão sexual” como intrinsicamente
gerada e gerida pela lógica capitalista; e existia também em uma miríade de
autorias negras 18que fizeram o mesmo
no que diz respeito à noção de raça. Frantz Fanon, por exemplo, compreendia que
a resistência das minorias racializadas era apenas um “momento de organização
simbólica do racializado que lhe fornece uma identidade evanescente, é a ponte
que ele atravessa para superar de maneira radical a própria estrutura social
que divide a humanidade em raças”19.
Este livro nos urge a compreender a dimensão da questão
das identidades, de sua produção pelas estruturas sociais de poder e de sua
gestão no tempo presente. Sem essa compreensão, estaremos de mãos atadas para a
transformação social. É urgente que a esquerda radical ofereça uma saída ao
impasse que o neoliberalismo impôs ao capturar as pautas identitárias.
Precisamos formular uma resposta à altura da manobra ideológica que neutralizou
sujeitos dissidentes e seus movimentos com potencial revolucionário em espaços
de apaziguamento das diferenças nos quais gestores representantes das minorias
são mais bem colocados, gerando assim a falsa sensação de que, com algum
mérito, qualquer sujeito também pode ascender socialmente e minimizar sua
opressão / exploração. Nossa tarefa é dura porque exige um combate duplo: ao
senso comum produzido pela hegemonia ideológica, mas também à simplificação
preguiçosa dos setores autoproclamados “tradicionais” de esquerda, que jogam
fora a tradição do pensamento marxista em nome de uma abstração de classe que
silencia as minorias e suas denúncias da opressão social sob a pecha de
“barulhentos”. Nosso barulho não é (e nunca foi) por nada. É o grito dos
revoltados que corporificam os dejetos da moenda humana que chamamos de
capitalismo. É chama viva da revolução, que necessita ser alimentada e
direcionada para realizar seu potencial incendiário.
Seguimos em movimento e luta, como diz Rosa Luxemburgo,
“por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e
totalmente livres”.
Fonte: Outras
Palavras
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